Dois modelos de Igreja

Imagem: Mário Wallner
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LEONARDO BOFF*

Os conservadores insistem e persistem na antiga estruturação de uma Igreja hierárquica e piramidal, cheia de privilégios

Na atual Igreja romano-católica se confrontam dois modelos de organizar a comunidade dos fiéis. Dito numa linguagem de fácil visualização: o modelo de uma Igreja-sociedade de fiéis e uma Igreja-comunhão entre todos os fiéis.

A Igreja-sociedade de fiéis organiza-se de forma hierárquica: papa-bispos-padres-leigos. O conceito organizador é o “poder sagrado” (sacra potestas) exercido pelos que receberam o sacramento da Ordem: o clero. O supremo poder está na cabeça, no Papa, se distribui entre os bispos e em menor escala nos presbíteros, excluídos os leigos e leigas por não terem sido investidos no sacramento da Ordem.

Como se depreende é uma sociedade de desiguais: por um lado, o clero com poder e com a palavra e por outro, os leigos sem poder e sem a palavra. Foi dito explicitamente pelo Papa Gregório XVI (1831-846): “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes e outros como servidores. Estes são os leigos, aquele são os clérigos”. Pio X (1903-1914) foi ainda mais explícito: Somente o colégio dos pastores têm o direito de dirigir e de governar. A massa não tem direito nenhum a não ser de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu pastor”.

Pode-se discutir se este modelo se conforma com os evangelhos e a prática do Jesus histórico. Mas é o dominante nos dias de hoje.

O outro modelo, de Igreja-comunhão de todos, ganhou sua expressão nas milhares de comunidades eclesiais de base (CEBs) especialmente no Brasil, na América Latina, no Caribe e em outras partes do mundo cristão. Devido à falta generalizada de sacerdotes, os leigos, homens e mulheres de fé, completamente desassistidos, assumiram a tarefa de levar avante a mensagem e a prática de Jesus. É importante observar que geralmente são os pobres e os fiéis que se reúnem em forma de comunidades de 15-20 famílias ao redor da escuta do Evangelho, lido, discutido entre todos. À sua luz se discutem os problemas da vida. Em seguida se fazem celebrações criativas e se tiram consequências práticas para o cotidiano. Eles são a base, num duplo sentido: social (classes populares) e eclesial (leigos e leigas).

O eixo estruturador é a “comunhão” (communio/koinonia) entre todos que se sentem iguais, irmãos e irmãs. Todos participam sem exceção. Logicamente, nem todos fazem todas as coisas. Por isso distribuem entre si os vários serviços (que São Paulo chama de carismas): quem cuida dos doentes, quem faz a catequese das crianças, quem alfabetiza, quem prepara as celebrações, quem se articula com outros movimentos, quem se responsabiliza pela coordenação para que tudo flua e se mantenha a unidade dos serviços para o bem de todos. Tudo é circular, próprio do espírito comunitário.

Aqui surge uma maneira nova de ser Igreja – próxima da Igreja dos primórdios, como é testemunhada nas epístolas de São Paulo, quando os fiéis se reuniam nas casas desta ou daquela pessoa. Fala-se entre os próprios membros das CEBs: é uma Igreja que nasce da fé do povo pelo Espírito de Deus. Teólogos e bispos que se inseriram neste modo de ser Igreja cunharam a expressão: eclesiogênese: a gênese de uma Igreja ou a re-inversão da Igreja de Jesus e dos apóstolos na força do Espírito Santo.

Não se percebe um conflito entre os dois modelos: os das CEBs querem os bispos e os padres dentro das comunidades e muitíssimos bispos e padres apoiam e se inserem neste modo de viver a fé evangélica. A única tensão e, às vezes, conflito, é entre aqueles grupos de bispos e padres que não fizeram a opção pelo povo pobre e sua expressão eclesial nas comunidades de base e persistem no caráter piramidal da Igreja-sociedade.

De todos os modos, aqui emerge uma Igreja que não é uma organização mas um organismo vivo, sempre aberto a novas formas de se comunicar e de viver o evangelho, unido à vida e em diálogo com todos, mas especialmente com os oprimidos e empobrecidos em suas lutas por libertação.

Tenho a nítida impressão de que o Papa Francisco ao propor para o Sínodo dos Bispos em 2023 o tema “Uma Igreja sinodal: comunhão-participação-evangelização” tem em mente a experiência das Comunidades Eclesiais de Base que ele bem conhece e que tão bem foram expostas na Conferência do CELAM em Aparecida, cujo documento ele foi o principal redator. O Papa entende a Igreja “constitutivamente sinodal”, “uma Igreja em sínodo permanente” vale dizer, uma Igreja que vai além de sua estruturação hierárquica, mas se entende, na linha do Vaticano II, como Igreja-povo-de-Deus. Para ele é fundamental ouvir e dar a voz àqueles que nunca tiveram a palavra e nunca foram ouvidos na Igreja: os leigos e leigas. Trata-se de “ouvir o povo”, “escutar a totalidade dos batizados”, sempre a partir de baixo, do local, do paroquial, do diocesano e chegar ao nacional, ao continental e ao universal.

Ao celebrar os 50 anos de existência da instituição do Sínodo, ele foi contundente: “A sinodalidade é uma dinâmica de circularidade fecunda…um dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”.

Isso não é uma aspiração ou um desiderato. Esta visão é já vivida e desenvolvida pelas milhares de Comunidades Eclesiais de Base e seriamente fundamentada eclesiologicamente pelos teólogos latino-americanos. A sinodalidade equivale à eclesiogênese, a reinvenção do modo de ser Igreja a partir da fé das grandes maiorias pobres e crentes sob a inspiração do Espírito do Jesus morto e ressuscitado.

O Papa Francisco toma um conceito da tradição, o Sínodo, e alarga sua extensão para além do episcopado, para toda a Igreja, a começar de baixo, daqueles que eram feitos invisíveis e considerados “massa de fregueses” (Pio X): cristãos leigos, homens e mulheres.

A sinodalidade universal representa uma reforma das estruturas da Igreja a partir de dentro e de baixo, por obra e graça do discernimento espiritual do Papa. Ele se pôs à escuta do curso da história e da ânsia universal por comunhão e participação nos destinos de nossa história e da Mãe Terra, ameaçada ecologicamente. A Igreja se faz sinodal e comunhão atendendo a esta ânsia.

Agora entendemos melhor por que muitos se opõem ao Papa Francisco, pois o ele deixa para trás, aquela visão que fazia do clero uma facção dentro da Igreja e a transformou com uma função (um carisma) de serviço junto e com todo o povo de Deus. Os conservadores insistem e persistem na antiga estruturação de uma Igreja hierárquica e piramidal, cheia de privilégios que dificilmente se justificam face à prática do Jesus histórico e dos Evangelhos.

Um caminho foi aberto. Devemos palmilhá-lo e consolidá-lo. Somente desta forma a Igreja pode mais facilmente se desocidentalizar e se planetizar.

*Leonardo Boff é teólogo. Autor, entre outros livros, de Igreja: carisma e poder (Vozes).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES