Dom Paulo Arns, 100 anos

Imagem: Adrien Olichon
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ELIÉZER RIZZO DE OLIVEIRA*

O arcebispo elegeu os direitos humanos como fundamento da sua atuação

É muito impressionante, emocionante mesmo, a autobiografia de D. Paulo Evaristo Arns, Da esperança à utopia. Testemunho de uma vida (Rio de Janeiro: Sextante, 2001), depoimento histórico sobre o Brasil posterior à II Guerra Mundial, essencialmente sobre o pós-64.

Prevalece o tom coloquial num estilo tranquilo, mesmo quando os temas e situações não o são. O autor fala de si, dos pais e irmãos, dos imigrantes alemães, da influência da Igreja em sua formação, da sua trajetória de seminarista a Cardeal Arcebispo de São Paulo. Revela-se o político sagaz, o estrategista que reorganizou a Igreja paulistana, o prelado que enfrentou a ditadura com clara e precisa dimensão da sua autoridade (daí apresentar-se com as vestes eclesiais sempre que esta condição era determinante, como nas visitas aos presos políticos), mas também a sua refinada diplomacia. D. Paulo faz desfilar o povo, o pobre, o excluído; os padres e freiras, os poderosos da Igreja e do Estado, civis e militares sobre os quais D. Paulo terá sempre uma palavra de avaliação ou reconhecimento.

Por esta razão, é uma pena que esta obra magnífica não contenha índice de nomes, ou que o próprio autor os tenha omitido, em diversas ocasiões, quando eram essenciais para o entendimento da narrativa.

Sob a ótica da Igreja, o operariado se transforma em sujeito político no contexto das pastorais operárias, dos grupos de reflexão, da leitura da Bíblia, das atividades litúrgicas e das comunidades de base. Não apenas o trabalhador de fábricas, mas o pobre, o desempregado, o imigrante. Ou seja, o povo de Deus em relação ao qual a utopia nega tanto o capitalismo quanto o comunismo, por excluírem o homem do centro de seus sistemas econômicos e de poder. Já a esperança se orienta pelas encíclicas do papa João XXIII.

D. Paulo, que não trabalhou sozinho, compartilha com muitas pessoas o seu labor. Dentre eles o teólogo Frei Gorgulho, dominicano. Soube valorizar o pároco, promover o leigo, incentivar a mulher, acolher o estudante. Foi muito criticado pelo Vaticano, sob o poder supremo de João Paulo II, porque não impediu, ao contrário, autorizou a publicação de obras da Teologia da Libertação que ganharam o Brasil e a América Latina. Como não publicá-las se eram aprovadas previamente por rigorosas comissões de especialistas? Como abafar o sopro do Espírito, ainda que o encantamento desta teologia com o marxismo ferisse de morte as autoridades civis e militares da ditadura, empenhadas numa guerra frontal contra o comunismo?

Fecundado pelo Vaticano II, o movimento ecumênico de São Paulo enraizou-se na política, no social, na religiosidade católica e no diálogo inter-cristão (vejam-se as referências gratas ao pastor pentecostal Manoel de Mello e ao rev. Philip Porter, do Conselho Mundial de Igrejas) e com outras religiões também, especialmente com o judaísmo, berço do cristianismo. Por esta razão, o pastor presbiteriano Jaime Wright, morto recentemente, aparece com tanto destaque: por ser tão próximo de D. Paulo, era conhecido como “bispo auxiliar”.

D. Paulo viveu sob a mira da truculência militar, mas resistiu com a não-violência. No dia 13 de dezembro de 1968, o autoritarismo impôs-se ao país através do Ato Institucional nº 5: a tortura tornou-se símbolo e sina dos que combatiam a ditadura, ainda que por vias pacíficas. A ditadura impôs-se também ao aparelho militar, constrangendo e controlando militares dignos que não compartilharam da violência ilegal e inominável contra presos políticos, como é o caso do brigadeiro Eduardo Gomes, que reconhecia D. Paulo como seu bispo.

Por vezes, tive dificuldade para identificar o teólogo, pois o quadro político e eclesiástico aparece com muita força e destaque. Mas o teólogo está lá, em ideias simples como o Evangelho. Sobre o incrédulo: “Durante meus estudos na Sorbonne havia encontrado pessoas excelentes e que confessavam não terem fé num Deus que influi na História. Eu me perguntava onde buscavam apoio para tanta persistência na bondade e solidariedade”. E sobre o necessitado: “Nunca perguntei pela cor política ou ideológica de uma pessoa. Só me interessou saber se a imagem de Deus estava sendo respeitada e se eu podia prestar-lhe algum auxílio em horas de solidão e de perseguição. O Deus da Justiça é o mesmo Deus do Amor”.

A todos a Cúria acolhia. Nos sangrentos anos 70, quando uma pessoa caía nas mãos da repressão, era a D. Paulo que se recorria, pois ele tinha contatos na área militar que também rejeitavam a tortura. Muitas pessoas foram salvas deste modo.

Daí a importância do seu depoimento afetivo e emocionado sobre Golbery do Couto e Silva, militar e intelectual, ministro do governo Geisel e interlocutor frequente do arcebispo. D. Paulo reconhece a “ação generosa do general Golbery do Couto e Silva, que se tornou meu amigo e resolveu diversos casos que poderiam ter provocado reação nacional e até internacional. Tanto ele quanto eu achávamos que o diálogo é a arma mais eficiente para todas as situações críticas e mesmo para aquelas que parecem insolúveis”. O prelado dos direitos humanos faz justiça a este quadro do regime militar que operou a transição política: “era homem muito inteligente, informado e curioso, com uma conversa informal agradabilíssima. O que era novo para mim é que ele procurava interlocutores na Igreja, que ele considerava mais bem informada que o próprio SNI (…) Golbery logo se revelou totalmente contrário às torturas e chegou a contar pormenores de casos horripilantes (…) Confessava abertamente que aceitava nossa luta contra a tortura e as prisões arbitrárias”.

O arcebispo que levou dezenas de pessoas até Golbery, em busca de seus queridos, teve no militar um parceiro “que também ajudou a preparar um final menos desastroso do que temíamos para a terrível ditadura que sofremos”.

D. Paulo elegeu os direitos humanos como fundamentos da sua atuação, através da Comissão de Justiça e Paz e de pastorais específicas, com forte sensibilidade para a classe média. É possível que alguns leitores e leitoras tenham participado do lançamento desta Comissão de nossa cidade, no dia 25.08.77, na Catedral, quando, numa cerimônia singela e emocionante, D. Paulo afirmou que “vivemos numa época de medo, mas precisamos declarar bem alto que o cristão não tem direito a ter medo”.

Como se vê, foi muito corajoso este homem de Deus. A reação contra os assassinatos de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, na prisão, encontrou D. Paulo à frente da sociedade civil, contribuindo para o fim do regime militar. Pois, para este apóstolo, “o pastor não abandona o seu rebanho quando há uma ameaça”.

*Eliézer Rizzo de Oliveira é professor titular aposentado de ciência política na Unicamp.

Publicado originalmente no jornal Correio Popular, em 28 de novembro de 2001.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • O belicismo de Sir Keir Starmer, o trabalhistabélico uk 18/10/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Sir Keir Starmer já conseguiu superar o chanceler alemão Olaf Scholz como a liderança mais belicista dentro da Europa, em relação à escalada da Guerra na Ucrânia

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES