Lenin e a atualidade de seu legado

Imagem: Sasha Kruglaya
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Alguns elementos centrais na produção teórica e política de Lenin que contribuem para compreender as contradições do presente

Neste mês de janeiro, completam-se cem anos da morte de Vladimir Lenin. Este marco deve inspirar debates ao longo do ano, tanto por acadêmicos como pelas organizações de esquerda, sejam aqueles que reivindicam o legado de Lenin, sejam os que o criticam. Mas, não importa a perspectiva que se assuma em relação a Lenin, seu legado político e teórico para a história das lutas dos trabalhadores e do marxismo se constitui como central para compreender a realidade atual.

No âmbito econômico, uma de suas mais importantes contribuições passa pelo estudo acerca do desenvolvimento econômico da Rússia. Escrito em 1899, Lenin mostra que a compreensão do desenvolvimento econômico deveria escapar de esquematismos e, no caso da Rússia, mostrava que era insuficiente a ideia de países “maduros” ou “atrasados”. Lenin, ao utilizar a ideia de desenvolvimento desigual e combinado (embora se refira a “caráter desigual do desenvolvimento econômico”), elaborada por Marx e Engels e depois aprofundada por Trotsky, mostra como o capitalismo na Rússia concentrava tanto relações de produção industriais como elementos rurais. Lenin afirma:

“Dada a própria natureza do capitalismo, esse processo de transformação não pode ocorrer de outro modo senão em meio a uma série de desigualdades e desproporções: aos período de prosperidade sucedem os de crise, o desenvolvimento de um ramo industrial provoca o declínio de outro, o progresso da agricultura afeta aspectos da economia rural que variam segundo as regiões, o desenvolvimento do comércio e da indústria supera o da agricultura etc.” (O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 373).

O desenvolvimento dessas relações econômicas e sociais não se dava de forma isolada na Rússia, mas inserida na dinâmica da economia mundial. Nesse sentido, Lenin aponta que o capitalismo “destrói o isolamento e o particularismo (e, consequentemente, a estreiteza da vida espiritual e política) dos antigos sistemas econômicos, reunindo todos os países do mundo numa só totalidade econômica” (O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 31).

Essa discussão sobre a economia mundial aproxima as primeiras reflexões econômicas de Lenin com uma de suas obras mais populares, em que investiga o imperialismo. Escrito em 1916, seu livro analisa a mudança que vinha ocorrendo nas relações entre as nações, passando do colonialismo, que havia perdurado durante séculos, em que o papel do Estado-nação era determinante, para uma situação em que seriam os grandes conglomerados econômicos de um pequeno punhado de países que passaria a controlar paulatinamente o capitalismo em âmbito mundial. O processo foi assim descrito por Lenin:

“O imperialismo surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral. Mas o capitalismo tornou-se imperialismo capitalista apenas quando chegou a um determinado estágio, muito elevado, de seu desenvolvimento, quando algumas de suas características fundamentais começaram a se transformar no seu oposto, quando ganharam corpo e se manifestaram em toda a linha os traços da época de transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada. Economicamente, é fundamental nesse processo a substituição da livre concorrência pelos monopólios capitalistas” (Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 113).

O capital financeiro, fundindo o capital industrial e o capital bancário, superando dialeticamente a exportação de mercadorias pela exportação de capitais, controlado por bancos e agências financeiras que representam os capitalistas dos países dominantes, passa a ser o elemento central nesse processo. Lenin procurava mostrar como se dava essa ação do capital financeiro:

“As dimensões gigantescas do capital financeiro, concentrado em poucas mãos, criando uma rede extraordinariamente vasta e densa de relações e conexões e subordinando as massas não só dos pequenos e médios, mas também dos mais insignificantes capitalistas e empresários, por um lado, e, por outro, a exacerbação da luta contra outros grupos nacionais-estatais de financistas pela partilha do mundo e pelo domínio sobre outros países, tudo isso origina a transição indiscriminada de todas as classes possuidoras para o lado do imperialismo” (Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 135).

Embora se possam apontar limites para as elaborações de Lenin – por exemplo, o mecanismo de dominação da dívida pública não era uma realidade na época nem os Estados Unidos eram a potência dominante em âmbito mundial – os elementos centrais do método de análise estão em sua obra. Cabe lembrar também que o capitalismo mundial na época de Lenin ainda aparecia como um sistema colonial, que começou a ruir apenas com as lutas de libertação na África e na Ásia, décadas depois. Ou seja, em sua análise, Lenin procurou trazer à tona um elemento que ainda não estava tão evidente, no que se refere à relação de dominação imperialista, mas que já tinha influência central na situação econômica e política em âmbito mundial. Inclusive, no que se refere à caracterização dos países, Lenin chamava a atenção para o fato de que a relação entre os países poderia se mostrar de diferentes formas:

“[…] o capital financeiro e sua política internacional correspondente, que se traduz na luta das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, criam um sem-número de formas transitórias de dependência estatal. Para essa época, são típicos não só os dois grupos fundamentais de países – os que possuem colônias e as colônias -, mas também as diversas formas de países dependentes que, politicamente, formalmente, são independentes, mas, na prática, estão emaranhados nas teias da “dependência” financeira e diplomática” (Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 110).

O tema do imperialismo também se relaciona a outra fundamental reflexão de Lenin, a do Estado. Logo no começo de seu estudo, Lenin aponta sua situação do Estado na época imperialista:

“[…] o imperialismo, época do capital bancário, época dos gigantescos monopólios capitalistas, época de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado, mostra o reforço extraordinário da “máquina de Estado”, o crescimento inaudito do seu aparelho burocrático e militar em ligação com o reforço da repressão contra o proletariado, tanto nos países monárquicos quanto nos países republicanos mais livres” (O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 55).

Seguindo os passos da obra clássica de Engels sobre o Estado, Lenin mostra o seu papel em relação à dominação de classe. Contudo, ao relacionar esse debate à revolução e às lutas dos trabalhadores, Lenin também mostra o papel do Estado em sua ação contra-revolucionária e como os reformistas da esquerda acabam por, invariavelmente, ser cooptados pelas instituições burguesas. Lenin, sem levantar qualquer dúvida, é claro em delimitar a questão:

“O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge onde, quando e na medida em que as contradições de classe não podem objetivamente ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis” (O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 29).

Criticando diferentes setores do movimento socialista, desde anarquistas até os social-democratas, Lenin também procura refletir sobre o papel da democracia burguesa, que, seja no contexto da escrita da obra de Lenin, seja ainda no presente, provoca todo o tipo de ilusões. Nesse sentido, afirma o revolucionário russo:

“A democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. Por consequência, como todo Estado, ela é o exercício organizado, sistemático, da coação sobre os homens. Isso por um lado. Por outro lado, é ela o reconhecimento formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual de todos de determinar a forma do Estado e administrá-lo” (O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 125).

Lenin é preciso ao afirmar o papel do Estado, o definindo assim: “é a organização especial do poder, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer” (O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 47). No capitalismo, segundo Lenin, “temos o Estado no sentido próprio da palavra, uma máquina especialmente destinada ao esmagamento de uma classe por outra, da maioria pela minoria” (O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 115-6). Portanto, a conclusão de Lenin é de que, do ponto de vista da transformação social, não caberia outra coisa aos trabalhadores, no que se refere às instituições burguesas, destruir o Estado e construir um novo poder baseado em suas organizações.

Contudo, essa derrubada do Estado e a transformação social não é um processo natural, em que basta aos trabalhadores a vontade de formar um movimento espontâneo que derrube o status quo. Os trabalhadores precisam de uma direção, que atue em dois processos. O primeiro processo é de desenvolvimento da consciência, passando de uma visão imediatista, economicista, para uma compreensão científica, profunda, da realidade. Os revolucionários, para Lenin,

“[…] não só não podem se restringir à luta econômica, mas nem sequer podem aceitar a organização das denúncias como sua principal atividade. Devemos empreender ativamente a tarefa da educação política da classe operária, do desenvolvimento de sua consciência política” (Que fazer? São Paulo: Martins, 2006, p. 166).

O segundo processo passa pela perspectiva de dirigir um processo de transformação, por meio de uma organização permanente de revolucionários que aponte para a necessidade de derrubar os pilares da sociedade capitalista. Lenin alertava que o “culto da espontaneidade do movimento de massa” e o “rebaixamento da política” ao nível da política economicista “se resume justamente em preparar o terreno para transformar o movimento operário em um instrumento da democracia burguesa” (Que fazer? São Paulo: Martins, 2006, p. 211). Nesse sentido, afirmava de forma categórica que “só um partido dirigido por uma teoria de vanguarda é capaz de cumprir a missão de combatente de vanguarda” (Que fazer? São Paulo: Martins, 2006, p. 129).

Esses são alguns dos elementos centrais na produção teórica e política de Lenin e que podem contribuir para compreender as contradições do presente. Passa, por um lado, pela necessidade de estudo apurado da realidade concreta e, ainda que sem abrir mão da teoria, entender que é preciso compreender a realidade e não apenas encaixá-la em esquemas teóricos. Contudo, essa compreensão se mostra inútil se não se colocar no sentido da transformação social, da luta concreta, que não pode ser apenas pela melhoria do capitalismo e da conquista de reformas, mas de apontar para uma mudança real, concreta, radical, que coloque no horizonte uma nova sociedade.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).


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