Elza Soares

Imagem: Joan-Josep Tharrats
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Por PEDRO ALEXANDRE SANCHES*

Considerações sobre a trajetória artística e a produção musical da cantora recém-falecida

Elza Soares morreu em 20 de janeiro de 2022, o mesmo dia em que seu ex-marido Mané Garrincha morreu (em 1983) e o mesmo dia em que a travesti preta Linn da Quebrada entrou na casa do Big Brother Brasil, na Rede Globo. São apenas símbolos, mas bastante eloquentes. Na música e no futebol, Elza e Garrincha suportaram cargas pesadas despejadas por um país repressor e reprimido – ela sobreviveu, ele não. Na música e no comportamento, Linn terá de aparar as cargas pesadas de transfobia, homofobia e racismo vomitados por uma sociedade bolsonarizada, tal qual sua admiradora Elza carregou o Brasil nas costas dos anos 30 do século passado até 2022, agora mais uma vez sob o rasgo de opressão, autoritarismo, fascismo, negacionismo – Linn terá que sobreviver, Elza se cansou aos (presumidos) 91 anos de vida.

Não foi à toa que as costas de Elza Soares foram ficando frágeis com o tempo e motivaram Chico Buarque a compor “Dura na Queda” para sua voz, 20 anos antes de ela descansar. Não foi à toa que, no mesmo ano de 2002, Elza imortalizou numa versão interpretada do fundo do peito um reggae pouco conhecido da banda Farofa Carioca (do futuro ator hollywoodiano Seu Jorge, que a compôs com Marcelo Yuka), “A Carne”: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. O impacto da letra e da leitura de Elza para as gerações negras que cresceriam no século XX não fica a dever à força das palavras transformadoras de Mano Brown nos Racionais MC’s.

Quando sobravam às travestis as esquinas sujas das grandes cidades, Elza se impôs artisticamente como mulher, preta, favelada, artista etc., num cenário de ódio velado (quando não escancarado) por mulheres, pretas, faveladas, artistas, travestis etc. Representante viçosa de tudo que foi rotineiramente interpretado como polo negativo da humanidade, precisou ter costas largas para segurar o peso do mundo.

Elza se fez notada inventando o samba-jazz (um índice de “impureza” e hibridez, portanto de marginalidade) a partir de 1959 com “Se Acaso Você Chegasse” (de Lupicínio Rodrigues), em versões em português de “Mack the Knife” (de Bertolt Brecht e Kurt Weill, gravada por seus pares estadunidenses Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e por ela com o título “Assalto”) e “In the Mood” (standard instrumental da orquestra de Glenn Miller, convertida pelo versionista Aloysio de Oliveira em “Edmundo”). Estreou em LP em 1960, um ano após o álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. O sucesso de “Se Acaso Você Chegasse” batizou o primeiro disco, mas apareceu também ali na capa um subtítulo que já revelava a que vinha Elza Soares: A bossa negra. Era isso o samba-jazz, a bossa nova de quem (ainda) não frequentava os apartamentos de Copacabana.

Não tardou a reação contra a “audácia” da garota que descera o morro do “planeta fome” na condição de mãe adolescente esfarrapada, mas aspirante (aos 13 anos) ao palco radiofônico do apresentador e compositor Ary Barroso. Garrincha ainda era casado com outra mulher, no início do romance com Elza, e o artifício moral foi usado (como de hábito, no entretenimento ou na política) para quebrar a espinha da jovem audaciosa. Bastou Elza regravar “Eu sou a outra”, de Ricardo Galeno, em 1963, para que o mundo desabasse sobre ela, como desabara, dez anos antes, pela intérprete original, Carmen Costa, também negra. “Ele é casado/ e eu sou a outra que o mundo difama/ e que a vida ingrata maltrata/ e sem dó cobre de lama”, cantaram Carmen e Elza, excitando a falsa moralidade que sempre se presta a silenciar as vozes dos polos interpretados (pela sociedade branca) como negativos, incômodas por essas e por outras razões. Elza retrucou às críticas moralistas cantando “Volta por cima” (1963), de Paulo Vanzolini: “Reconhece a queda e não desanima/ levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”.

O linguajar dos anos 1960 não era gentil, e a moça que evoluía aos trancos e barrancos tinha de tropeçar em vícios machistas (“não tenho nome, trago o coração ferido/ mas tenho muito mais classe/ do que quem não soube prender o marido”, também de “Eu Sou a Outra”) e racistas, como na “Mulata assanhada” de Ataulfo Alves (“ai, meu Deus, que bom seria se voltasse a escravidão/ eu comprava uma mulata, prendia no meu coração/ e depois a pretoria é que resolvia a questão”), em 1960, ou “Princesa Isabel” (“hoje todo preto é bem contente/ leva a vida diferente/ a rezar e olhar para o céu/ quando vem chegando a tardinha/ ele acende uma vela e faz uma prece/ agradece à princesa Isabel”), em 1964. Depois dos scats fundadores de “Edmundo”, Elza mudou o estilo de interpretação por um período, por vezes imitando o canto agudo de uma de suas inspiradoras, Dalva de Oliveira. Não parece ter sido espontânea a guinada para longe do jazz.

A expectativa de que toda cantora negra fosse única e exclusivamente sambista a pressionava rumo ao samba tradicional, em enredos de carnaval (“O Mundo Encantado de Monteiro Lobato“, 1967, “Bahia de Todos os Deuses”, “Heróis da Liberdade” e “Lendas e Mistérios da Amazônia”, 1969, “Lendas do Abaeté”, 1972, “Aquarela Brasileira”, 1973), sambas de quadra (“Portela Querida”, 1967, “Sei Lá, Mangueira”, 1968) e carnaval de rua (“Bloco de Sujo”, 1969), que, no entanto, Elza, liberta da fase de cópia de Dalva, cantava com entonação jazzística e sob arranjos metálicos.

Enquanto o chamado mercado tentava confiná-la ao samba, Elza Soares escapava pelas beiradas em todas as ocasiões possíveis: gravava sambalanços de Roberto Carlos e Erasmo Carlos (“Toque Balanço, Moço!”, em 1966, e “Rainha de Roda”, em 1972); dividia uma série de discos de sambalanço com o cantor Miltinho; seguia cantando bossa nova, fazendo-se acompanhar na bateria pelo fera Wilson das Neves; colocava Jorge Bem (Jor) no repertório (na virada dos 1960 para os 1970, gravou versões samba-jazz de “Chove, Chuva”, “Mas Que Nada” e “Pulo, Pulo”); regravava em samba-pilantragem o “Tributo a Martin Luther King” de Simonal (em 1970, quando a luta antirracista não aportara ainda no país).

Ao mesmo tempo, aproveitava o melhor que o samba “puro” tinha a oferecer, cantando Assis Valente (“Fez Bobagem”, em 1961), Monsueto Menezes (“Ziriguidum”, 1961), Geraldo Pereira (“Escurinho”, 1962), Dorival Caymmi (“Rosa Morena”, 1963, “Samba da Minha Terra”, 1965), Noel Rosa (“Conversa de Botequim” e “O Orvalho Vem Caindo”, 1967), Wilson Baptista (“Louco – Ela É o Seu Mundo”, 1967), Ataulfo Alves (“Leva Meu Samba”, 1967), Ismael Silva (“Antonico”, 1967), Paulo da Portela (“Pam Pam Pam”, 1968), Paulinho da Viola (“Sei Lá, Mangueira”, 1968, “Recado”, 1970), Elton Medeiros (“Pressentimento”, 1970), Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (“Pranto de Poeta”, 1973), Candeia (“Dia de Graça”, 1973), Cartola (“Festa da Vinda”), mas também contemplando sambistas iniciantes, como João Nogueira (“Mais do Que Eu”, 1972, “Do Jeito Que o Rei Mandou”, 1974), Antonio Carlos & Jocafi (“Cheguendengo”, 1972) ou Roberto Ribeiro (com quem dividiu o LP Sangue, Suor e Raça, em 1972).

Mesmo com um repertório de respeito, Elza perdia espaço na Odeon para a ascendente Clara Nunes, que tivera um início titubeante na gravadora, em 1966, e a partir de 1971 começou a se firmar como cantora de samba, com foco em samba-enredo e nos temas do candomblé. Na capa do seu último LP pela Odeon, Elza Soares (1973), a cantora surge com o cabelo totalmente raspado, segundo consta devido a uma promessa para que o marido Garrincha parasse de beber. Um indício de que estava turbulenta a relação com a gravadora é que esse álbum existe com duas capas diferentes, aquela despida e uma segunda com Elza paramentada de passista em desfile de carnaval, o que já acontecera antes na capa de Elza, Carnaval e Samba (1967).

Elza em 1972 – foto Twitter @ElzaSoares

Em 1974, desligada da Odeon, Elza se transferiu para uma gravadora bem menor, a Tapecar, na qual lançaria quatro discos também pautados pelo samba, mas agora sem compositores estrelados para abastecer o reservatório de composições. Nesse período, gravou poucos autores que eram ou se tornariam inquestionáveis no futuro: Luiz Reis (no incendiário samba carnavalesco “Salve a mocidade”, em 1974), Lupicínio Rodrigues (“Quem Há de Dizer”, 1974), Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (“Saudade Minha Inimiga”, 1975), Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho (“Samba, Minha Raiz”, 1976), Silas de Oliveira (“Amor Aventureiro”, 1977). A maioria dos autores que gravou na Tapecar se perdeu no esquecimento, mas ela eventualmente cantou gente de sucesso momentâneo ou duradouro, como Zé Di, Romildo e Toninho (fornecedores de sucessos de massa, mas para Clara Nunes), Gilson de Souza, Jorge Aragão, Sidney da Conceição, Efson, o futuro produtor de samba Rildo Hora…

Enquanto Romildo e Toninho forneciam para Clara Nunes sambas perenes como “Conto de Areia (1974), “A Deusa dos Orixás” (1975), para Elza destinaram sambas ardidos como “Primeiro Eu” (“primeiro eu, depois o samba/ ela se engana/ quando pensa que venceu”) e “Debruçado em Meu Olhar” (“a chama vai se apagando/ meus cabelos prateando/ como fios de luar/ a desilusão já me domina/ a mocidade termina/ e a gente para pra pensar”), ambas em 1975.

Apesar do êxito comercial modesto da fase Tapecar, foi ali que Elza gravou um dos álbuns mais formidáveis de sua história: o Elza Soares de estreia na nova casa, em 1974. O orgulho afro-brasileiro despontava na capa e na linda “Deusa do Rio Niger” (“tira os olhos de mim, eu não quero você”). A polaridade negativa imposta de fora para dentro povoava os lamentos de dor e ressentimento “Pranto livre” (“chora/ desabafa teu peito/ chora/ você tem o direito”), “Desabafo” (“quero cantar/ pois a vida é melhor assim/ cantando eu consigo esquecer quem ontem zombou de mim”), “Partido do Lê-Lê-Lê” (“seu reinado e coroa um dia tem que terminar”) e o samba-rock “Giringonça” (“aos amigos do peito eu dou o direito/ de fazer julgamento de mim/ aos amigos da onça eu fico mudo/ e reforço atitudes sonsas ficando cego, surdo, sim”). No mesmo rumo ia o primeiro samba apresentado pela bissexta Elza Soares compositora, “Louvei Maria”: “Olha o negro sentado num toco, sentindo cansaço de tanto chorar/ mas se Cristo olhasse pra baixo/ muita gente ia ter que pagar”. A descontração suavizava parte menor do disco, nos sambas de terreiro “Bom-Dia Portela”, “Meia-noite já é dia” e “Não é hora de tristeza” e nos sambas-rocks “Xamego de Crioula” e “Falso Papel” (“você soube fazer o seu papel/ até o dia em que a verdade apareceu”).

A fossa se abrandou em 1979, na mudança para a gravadora CBS, onde gravou samba-enredo sobre circo (“Hoje Tem Marmelada”), samba de protesto disfarçado de gastronômico (“Põe Pimenta”: “Põe pimenta malagueta/ põe pimenta só pra ver se o povo aguenta”), africanidade (“Afoxé”, 1979, “Timbó” e “Samba do Mirerê”, 1980), canções de Nei Lopes e Wilson Moreira (“Paródia do Consumidor”, 1979, “Como Lutei”, 1980), mais um e outro samba de ressentimento (“Cobra caninana”, 1977). O lamento “Oração de Duas Raças” (do então marido Gerson Alves, 1980) tentava dialogar com “O Canto das Três Raças” (1977) de Clara, num tom que Elza não voltaria a usar no futuro: “Não devemos criticar os nossos semelhantes/ devem se manter distante das coisas alheias também/ não deve haver distinção de ambiente nem cor/ tanto o negro como o branco têm o mesmo sangue, sentem a mesma dor”.

A fase de baixa se estendeu, a ponto de a cantora que era a cara do Brasil cogitar abandonar o Brasil. A reabilitação veio pelas letras de Caetano Veloso, que convidou Elza para dividir com ele os vocais da pós-moderna “Língua” (1984) e uma pergunta-chave: “O que quer, o que pode esta língua?”. A experiência desaguou em mais um momento de alta estatura em sua obra (embora mais uma vez sem êxito junto ao chamado mercado): o álbum Somos Todos Iguais (Som Livre, 1985), primeiro grito de libertação do samba “puro” desde os tempos de samba-jazz e sambalanço. O que queria, o que podia essa Elza?

O samba continuava presente, em criações inspiradas de Martinho da Vila com João Donato (“Daquele Amor, Nem Me Fale”), Jorge Aragão (“Osso, Pele e Pano”) e autores emergentes da geração fundo de quintal, em “Da Fuga Fez Sua Verdade” (de Sombra, Sombrinha e Adilson Victor) e na latina “Cacatua” (de Ronaldo Barcelos, que o Grupo Raça regravaria à beira dos anos 1990, nas águas do pagode). Essa última atualizava a mitologia dos passarinhos engaiolados de Luiz Gonzaga (como o “Assum Preto” de 1950) e terminava com a cacatua batendo asas para desconsolo da “dona”, uma metáfora para a liberdade que a própria Elza ainda almejava alcançar.

Somos Todos Iguais, no entanto, distendia de modo altivo os limites do samba, por exemplo, ao transformar o samba-enredo sobre o período da escravização “Heróis da Liberdade” (1969) em pungente grito de libertação cantado em tom de soul music, antes de se dissolver na bateria pesada do Império Serrano. A transmutação tinha tudo a ver com o samba de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola, cuja letra original já dialogava com “essa brisa que a juventude afaga” do bossanovista negro Johnny Alf.

O inflar das asas prosseguia na cortante balada soul “Antes do Sol”, no blues-rock “Milagre” (de Cazuza e Frejat para a banda Barão Vermelho), na cubanidade da faixa-título (composta por Elza) e, sobretudo, na versão ultrajazzística de “Sophisticated Lady”, de Duke Ellington, com versos em português de Augusto de Campos e vocais de Caetano. “Sofisticada e doida ilusão/ um velho amor rói seu coração”, cantava, jazzística e prestes a receber o rótulo modernizador de “Tina Turner brasileira”, a bordo de cabelões, pernas expostas, encontros musicais com os Titãs e rock gravado ao lado de Lobão (“A Voz da Razão”, 1986).

Vale aqui o clichê de que o Brasil não estava pronto para Elza em 1985, e a normatização (racista) imposta pelo status aos polos negativos quo resultou em Voltei (RGE, 1988), de retorno ao samba mais quadrado e mais uma vez sem qualquer eco no mercado fonográfico. Outra década foi consumida até mais uma volta por cima, no (ainda) sambista Trajetória (Universal, 1997). Entre pagodes de Almir Guineto e Arlindo Cruz e uma participação especial de Zeca Pagodinho no samba de passarinho “Sinhá Mandaçaia”, Elza intrometeu sambas-MPB tortos de Guinga e Aldir Blanc (“Rio de Janeiro”) e Chico Buarque (“O Meu Guri”).

As cicatrizes familiares, que em 1986 já haviam gerado a contundência da releitura soul de “Tiro de Misericórdia” (de João Bosco e Aldir Blanc, 1977), fizeram do samba de infanticídio “O Meu Guri” (original de 1981) um manifesto matador: “Quando, seu moço, nasceu meu rebento/ não era o momento dele rebentar/ já foi nascendo com cara de fome/ e eu não tinha nem nome pra lhe dar”. A interpretação uterina desatou o grito de liberdade que ficara preso no ar em “Heróis da Liberdade” e “Tiro de Misericórdia” e abriu caminho para que Elza Soares, a coluna já começando a fraquejar, desse o definitivo grito de independência, mais meia década depois, no álbum Do Cóccix Até o Pescoço (2002), sob a direção artística do vanguardista paulista e acadêmico José Miguel Wisnik. Daí correram para o mundo “Dura na Queda” e “A Carne”, citadas no início deste texto, e mais não-sambas de Jorge Ben Jor (“Hoje É Dia de Festa”, com scratches e sample de “O Namorado da Viúva”, do autor), Caetano Veloso (o libelo antirracista rappeado “Haiti” e a nova “Dor de Cotovelo”), Arnaldo Antunes (“Eu Vou Ficar Aqui”, com o grupo de samba-rock Funk Como le Gusta), Carlinhos Brown (“Etnocopop”), Luiz Melodia (o genial fado “Fadas”, de 1978), Wisnik (“Flores Horizontais”, sobre texto do modernista Oswald de Andrade), e apenas um pot-pourri de samba “tradicional”.

Esse álbum precipitou a identidade neotropicalsita da Elza Soares do século XXI, polido inicialmente no híbrido e moderno Vivo Feliz, produzido pelos jovens paulistas da banda Jumbo Elektro. Aí se intensificou o mergulho gostoso de Elza no repertório das gerações mais novas: a vanguarda paulista “Elza Soares” (de e com Itamar Assumpção); o manguebeat “Computadores fazem arte” (1994), de Fred Zeroquatro; o samba-soul “Mandingueira”, de Eduardo BiD e Iara Rennó. O hábito de ouvir e dar voz aos novos se estendeu até o final, em gravações como o funk carioca “Rap da Felicidade” (2007), lançado em 1995 por Cidinho e Doca; o samba-funk “Isabela” (com a nova encarnação da Banda Black Rio, 2011); a versão de “A Pedida É Samba” em bossa eletrônica (com Bossacucanova, 2012); o eslavosamba “Sim” (de e com Cacá Machado, 2013); o afrofuturismo baiano de “Território Conquistado” (de e com Larissa Luz, 2016); o rock-balada feminista “Na Pele” (de e com Pitty, 2017); o MPB-samba “Da Vila Vintém para o Mundo” (de e com Ana Carolina, 2019); o rap “Negrão negra” (de e com Flávio Renegado, “contra o racismo estrutural/ barra pesada”, 2020), o pop-funk “A coisa tá preta” (de e com MC Rebecca, 2020)…

“Eu só quero ser feliz/ andar tranquilamente na favela em que eu nasci”, cantou a menina que carregava a lata d’água na cabeça, reconectando-se com as próprias origens. Eram tempos de emancipação social, e a favela em que Elza nasceu se chamava Brasil.

Em 2016, Elza se apresentou na abertura das Olimpíadas no Brasil e elegeu disseminar para o mundo o “Canto de Ossaha” (1966) de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Com a presidenta Dilma Rousseff afastada do cargo e o usurpador Michel Temer ocupando provisoriamente seu lugar, Elza escolheu apoiar o polo negativo. Enquanto a mídia golpista dizia que ela estava “homenageando as favelas”, Elza mandava um discurso que se ajustava como luva à situação de golpe contra o Brasil: “O homem que diz dou não dá/ porque quem dá mesmo não diz/ o homem que diz vou não vai/ porque quando foi já não quis/ o homem que diz sou não é/ porque quem é mesmo é não sou/ o homem que diz tô não tá/ porque ninguém tá quando quer/ coitado do homem que cai/ no canto de Ossanha traidor”. Machos traidores entenderiam.

O próximo e definitivo voo de fênix começou em 2015, na associação com a gravadora Deck (que duraria até o final) e no álbum A Mulher do Fim do Mundo, com direção artística e produção do neo-antropofágico Celso Sim e dos neovanguardistas paulistas Romulo Fróes e Guilherme Kastrup. Elza passou a falar muito, e muito alto, por melodias e versos novos de Romulo Fróes e Alice Coutinho (“A Mulher do Fim do Mundo”, “Dança”, “Comigo”), Kiko Dinucci (“Luz Vermelha”, “Pra Fuder”), Rodrigo Campos (“Firmeza?!”, “O Canal”)… “Luz Vermelha” conectou Elza com o cinema marginal de Rogério Sganzerla, em versos rascantes de Dinucci: “Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda/ quem tinha tudo na mão, quem não prestou atenção, quem tem tamanco não sobra/ quem tem cabeça, pulmão bexiga, rim, coração já vai pulando na cova/ quem é doente do pé?, o pai de todos quem é?/ cadê o rei da cocada?/ tá na quebrada, quebrou, o mundo todo afundou no dia da pá virada”.

Entre todos esses, adentrou a história com H épico o compositor Douglas Germano, tal qual Elza um artista de elo entre o samba e a vanguarda. É ele o autor do libelo feminista-antiviolência-antifeminicídio “Maria da Vila Matilde” (Porque se a da Penha É Brava, Imagina a da Vila Matilde): “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Com 70 anos de carreira, Elza podia dar voz a estilos musicais e posicionamentos que, no passado, jamais a indústria fonográfica multinacional permitiu que ela adotasse.

Apocalíptico apesar de pré-covid, A Mulher do Fim do Mundo se desdobrou em Deus É Mulher (2018), novamente disposto a gritar “O Que Se Cala” (título da faixa de abertura de Douglas Germano), em novas peças de força de Kiko Dinucci (“Hienas na TV”), Edgar (“Exu nas Escolas”, em parceria com Dinucci, sobre os levantes secundaristas dos turbulentos anos 2010), Tulipa Ruiz (“Banho”), Romulo Fróes e Alice Coutinho (o frevo eletrônico “Eu quero comer você”, “Língua Solta”), Rodrigo Campos (“Clareza”), Mariá Portugal (“Um Olho Aberto”)… Já sob a égide bolsonarista e sem a produção do grupo paulista, Planeta Fome (2019) tentou manter o pique dos dois discos anteriores, diluindo suas premissas, mas atando nós engajados entre o Gonzaguinha de “Comportamento geral” (“você deve rezar pelo bem do patrão/ e esquecer que está desempregado”, 1973) e o afrofuturismo da faixa de abertura, “Libertação”.

“Eu não vou sucumbir”, prometeu Elza em “Libertação”, de Russo Passapusso, secundada por Baiana System, a Orkestra Rumpilezz de Letieres Leite (que morreria precocemente em 2021) e o vozeirão samba-reggae de Virgínia Rodrigues. Elza seguia reagindo como mais nenhum artista da música ao avanço protofascista que deve estar discretamente feliz com sua morte. Ela não sucumbiu, nem vai sucumbir no futuro.

Ouvidos em retrospecto, os álbuns A Mulher do Fim do Mundo, Deus É Mulher e Planeta Fome e os singles “Na Pele” (2017) e “Juízo Final” (2020, pensada em sintonia com a devastação promovida pelos vírus, o presidencial e o outro) promoviam uma despedida passo a passo de uma das mais valentes intérpretes brasileiras dos séculos XX e XXI. “Me deixem cantar até o fim”, cravava “Mulher do Fim do Mundo”, de Romulo Fróes e Alice Coutinho, carnavalesca e apocalíptica a um só tempo.

Em outubro do ano passado, Elza Soares & João de Aquino se tornou o último registro lançado em vida, com uma gravação de voz e violão em data indeterminada da segunda metade dos anos 1990. Fica, ali, uma amostra a mais do que Elza Soares poderia ter feito no período pré-Do Cóccix Até o Pescoço se o senso comum movido a preconceitos machistas, racistas, LGBTQIAP+fóbicos, classistas e mercadistas não a amassasse na constante tentativa de limitá-la (exclusivamente) ao samba. As fronteiras entre o que é e o que não é samba, hoje mais borradas que nunca, se dissolvem em pó nas interpretações intimistas para Gilberto Gil (“Drão”, “Super-Homem, a Canção”), Taiguara (“Hoje”), Luiz Melodia (“Juventude Transviada”), Lulu Santos (“Como uma Onda”) etc.

Consta que Elza vinha trabalhando febrilmente nos dias anteriores à morte, gravando DVD (na segunda e na terça pré-dia 20) e álbum novo. Nas versões ao vivo mais recentes de “A Carne”, ela costumava adaptar a letra para “a carne mais barata do mercado foi a carne negra”, em sintonia com a afirmação racial inédita que ela ajudou a construir e a conduzir nestes primeiros anos 2000, enquanto seguia cantando (e trabalhando duramente) até o fim. “Se essas são marcas externas/ imagine as de dentro”, explicou em 2017, pela pena de Pitty em “Na Pele”. Essa era a mesma Elza que, dois anos depois, avançava nas reivindicações de igualdade, dividindo a lírica profunda e as dores clandestinas de “Foi Você, Fui Eu” com Liniker. Juntas, as duas choraram pela “vida clandestina” que elas e suas semelhantes levaram e afrontaram em tempos e circunstâncias diferentes, e que vai longe de se resolver apesar dos diversos progressos conquistados.

Não à toa, já em 2017 Elza Soares saudou a música trans-preta que enriquece o Brasil dos anos 2020 contra tudo e contra todos, segundo relata o jornalista Chico Feliti., sobre um episódio de quando ele lhe pediu a indicação de um talento da nova música brasileira. “Ela me entende. Porque a travesti é a mulher preta de 60 anos atrás”, decifrou Elza Soares, referindo-se a Linn da Quebrada, a moça que agora carrega nas costas, em pleno BBB, pesos e estigmas que Elza cansou de carregar. Se existe uma certeza, é de que Elza aparou toneladas sobre os ombros crescentemente arqueados. Como a matriarca sempre soube, Deus é mulher, e o nome dela é Elza Soares.

*Pedro Alexandre Sanches, jornalista e crítico musical, é autor, entre outros livros, de Coleção Álbum: a história da música brasileira por seus discos (Edições Sesc).

Publicado originalmente no site farofafá.

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