Dois anos de desgoverno – a desconstrução do Estado

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Por TADEU VALADARES*

Como escapar da jaula de ferro que nos aprisiona a todos?

“A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita ilusões” (Karl Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel)

“E aviso o meu povo do inimigo / E os disciplino contra os ventos que se avolumam / E os esmurro no coração” (Carlos Henrique Escobar, A Notícia da Ave).

Mal havia o governo Bolsonaro completado dois anos de sistemática obra de destruição do estado, da economia e das garantias liberais-democráticas, o inesperado ocorreu, a inimaginável decisão monocrática do ministro Edson Fachin. Dia 8 de março, pouco mais de 40 páginas transformaram em profundidade, numa espécie de jato não lavável, a cena política brasileira. Em decorrência, o jogo político ingressou noutra fase, marcada pelo fortalecimento das expectativas de que, em havendo eleições em 2022, candidato de esquerda possa derrotar Bolsonaro e o neofascismo.

Dois dias depois do raio disparado por Júpiter Fachin, Lula voltou à vida política de maneira espetacular, com um discurso que de imediato se tornou referência maior, ao sinalizar, no concernente à futura eleição presidencial, que nada será como antes. A fala, presidencial no estilo, discurso de grande estadista no conteúdo, cravou o momento em que a equação eleitoral, até então desfavorável ao campo da esquerda, começou a caducar. Prova maior: a direita, tanto a tradicional ou oligárquica quanto a extremista cujo paradoxal limite é a falta de limites do neofascismo bolsonariano, prontamente acusou o golpe.

Se olhamos para o campo extremista, a decisão monocrática, em meio ao dissabor gerado no Planalto, ao menos destinou a Bolsonaro notícia algo consoladora: Moro e a “república de Curitiba” se esvaem, sangramento aparentemente sem remédio, cabendo aos bolsonaristas, no executivo, no congresso, no “movimento” e na mídia, evitar, com todos os recursos do ódio, qualquer intento de recuperação da imagem do ex-juiz parcial e ex-ministro da Justiça, hoje detestado pelo Planalto, que o anime a se lançar, com alguma chance de êxito, não como mero coadjuvante, na corrida pela presidência. Limpeza parcial do campo reacionário. Lucro líquido de Bolsonaro.

Em contrapartida, o capitão e seus fanáticos foram notificados de que o surgimento de Lula como candidato, por enquanto “in pectore”, à chefia do Estado materializa o pior dos cenários possíveis para o neofascismo em construção. Uma coisa é “polarizar” contra Haddad, Boulos ou Dino. Outra, ter de se haver com Lula.

Para a direita tradicional ou oligárquica, cujos esforços, desde o fiasco de 2018 , se concentraram em explorar trilhas de uma “operação Lázaro”, milagre que lhe permitisse ressuscitar política e eleitoralmente o ilusório “centro”, o feito por Fachin, terremoto de alta intensidade na escala Richter, multiplicador de efeitos negativos. Suas réplicas, que continuam a ser registradas nos sismógrafos mais sensíveis, tendencialmente desmontam os planos mais ou menos alinhavados dessa direita que tem muito da elegância discreta dos meninos paulistas.

Esse corpo de ilustrados, cuja participação no golpe de 2016 foi estelar, com razão vê no regresso de Lula à cena política obstáculo realisticamente insuperável, uma espécie de atestado de óbito “in fieri” das ambições presidenciais de vários partidos, muito especialmente do PSDB. Até agora, a exceção manifesta ao desânimo que tomou o centro que é direita, o otimismo panglossiano de Jereissatti. De fato, não há, nesse conjunto de personalidades e partidos, sequer um nome com expressivo peso próprio, capaz de fazer frente a Bolsonaro. Daí que a canibal criatura continue a devorar seus intelectuais criadores.

Se os do centro que é miragem não conseguem enfrentar a travessia do deserto que lhes impõe o agora execrado miliciano, que chances terão num embate contra Lula? Desde 10 de março e até onde a vista alcança, os liberais que se proclamam democratas, mas que historicamente se revelam golpistas a cada tanto, parecem condenados a outra desmoralizante derrota eleitoral, talvez pior do que a imposta a Alkmin em 2018.

O cenário que esboço, bem o sei, é brutalmente simplificador. Ainda assim, e por defeituoso que seja, aponta para o mais importante: o eventual retorno do PT ao Palácio do Planalto deixou de ser um voto do coração militante. Tornou-se inarredável parte do curso real do mundo político brasileiro.

Tanto assim que, passado o primeiro momento da estonteante surpresa “fachiniana”, boa parte das lideranças que pertencem ao arco da esquerda – alguns com entusiasmo quase petista, outros nem tanto assim, mas devidamente motivados pela sobriedade realista que impõe reconhecer não disporem seus partidos de candidatos potenciais capazes de fazer sombra ao ex-presidente – já começa a se preparar para as negociações que , chegado, ano próximo, o momento decisivo, lhes permita somar-se ao projeto que, bem-sucedido, dará a Lula seu terceiro mandato presidencial.

No segundo turno, tal como desenhado pelas pesquisas eleitorais mais recentes, tudo parece indicar que Lula enfrentará Bolsonaro. Em função do que hoje ainda não passa de tendência larvar, não confluir com o PT, brincar de Ciro Gomes, arrisca permitir que o neofascismo neoliberal, ao continuar a comandar o executivo, passe a dispor de condições ótimas para concluir a obra corrosiva iniciada por Temer, aquele olvidado pontífice do futuro.

Da perspectiva da esquerda que na prática – quando não também na teoria – centra no jogo político-eleitoral e em seus cronogramas partidários o essencial da política, o futuro imediato, que se estende até a conclusão da disputa pela sucessão presidencial, passa a apresentar perfil favorável. De fato, o que parecia impossível um ano atrás, passou ao realisticamente viável. Mas o êxito da operação contra Bolsonaro e o bolsonarismo depende da habilidade da esquerda parlamentar em evitar excessos de cretinismo que terminem por conduzi-la ao fracionamento selvagem e à autofagia que de momento caracterizam a direita como um todo.

O que era utopia de esquerda, aquilo de o horizonte se deslocar à medida em que para ele ilusoriamente avançamos, agora se manifesta como algo relativamente estabilizado. Em lugar de horizonte perpetuamente móvel, percebemos a árvore eleitoral bem fincada no solo de 2022, salvo eclosão de golpe militar ou cívico-militar. O fruto dessa árvore, a reconquista da chefia do executivo, pomo quase ao alcance da mão esquerda.

É nessa moldura maior que o discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos, absolutamente superior a qualquer roteiro improvisado ou a qualquer meramente indicativo portulano, surgiu como sofisticado mapa da viagem que, sim, será dramática, mas que pode, em seu momento conclusivo, tornar-se vitória épica. Não sem motivos o clima geral imperante na esquerda passou a ser de celebração, de esperança, de “freiriano” esperançar. Essa atmosfera nova, exato inverso da melancolia manifesta e prolongada até então predominante. Mas exatamente porque esse é o clima instalado a partir da titânica fala de Lula, quem sabe se torna aconselhável refletir sobre o perigoso impulso que ameaça reviver velhas ilusões.

A derrota de Bolsonaro e do neofascismo – esse inferno cotidiano que ele, a “famiglia” e seu governo encarnam com requintes de perversidade – se delineia com traços fortes. Mas essa vitória eleitoral, caso se materialize, de fato nos assegura minimamente a viabilidade da proclamada estratégia restauradora cuja meta é nos levar de volta aos anos dourados do lulismo, uma versão nossa de “back to the future“? Certo, a promessa é que desta feita Lula e o PT, embora se disponham a basicamente repetir o de antes, a esse esforço agregarão a novidade da maneira do fazer, fazer muito mais bem estruturado. Verdade, tanto o PT como o mais importante líder popular da história brasileira, sazonados pelo tempo terrível da travessia do deserto e pelos sofrimentos todos. Ainda assim, a vivência acumulada desde o golpe de 2016 por si só não garante necessariamente uma construção política robusta e eficaz.

Para isso haverá o partido se reformulado internamente, de maneira a estar à altura dos desafios antigos, cuja não superação afinal conduziu ao golpe de 2016? E ainda cabe perguntar: o partido e seu muito amado líder se encontram em condições de enfrentar e vencer os novos desafios plasmados pela decadência brasileira mais recente, retratada na destruição do estado e da economia, e no enfraquecimento dos laços sociais que beira a anomia, tudo astutamente articulado à constante incitação do governo neoautoritário ao mais completo darwinismo social? Por fim, como ao mesmo tempo decifrar os enigmas criados pela agravada crise planetária do capitalismo, e de seus efeitos se proteger?

Esse fenômeno e processo, bom lembrar, continuam conosco e com o mundo desde doze anos atrás. Tal é a multifacetada realidade interno-externa a incidir tanto nas esferas econômica, ideológica, política e social brasileira quanto na tensa geopolítica global. E nunca olvidar: a crise geral desde um ano atrás vem sendo turbinada pela pestilenta situação criada pela pandemia cuja superação não está nem de longe visível. No Brasil, ela se transformou em necropolítica cotididana.

As proclamações da boa nova de que os bons tempos estão quase de volta são evidentes, e vão muito além do PT. Cobrem amplo espectro de forças de esquerda e contemplam iniciativas que se espraiam desde o mais sublime, a recuperação do espírito de 1988 e da constituição dita cidadã, até o que há de mais prático, a reinvenção das políticas sociais que foram a marca distintiva dos governos petistas e da visão da esquerda em geral. Ambos, o PT e Lula ou vice-versa, continuam a (re)afirmar, com a força da tradição que pensa saber renovar-se, os rumos do reformismo fraco ao qual se agrega, como óbvia novidade, a dimensão restauradora.

Porque o momento atual se revela à primeira vista tão favorável, portentoso anúncio de belas manhãs, talvez seja o caso de ir na contramão do labirinto e chamar atenção para o que não depende do voluntarismo puro nem das boas intenções beatas. A história recente, a que vem desde a lei da anistia até o golpe de 2016 e depois, nos diz aos gritos que a redemocratização foi edificada sobre fundamentos insuportavelmente débeis. Nós, ou a absoluta maioria de nós, de certa forma nos construímos sobre uma coluna ausente. O povo organizado, o povo como ator principal e fiador da superação de décadas de autoritarismo, nunca chegou a assumir esse papel. Longe disso. Não houve, tão fácil ver na retrospectiva, a memorável fusão entre povo e democracia. O encontro não chegou nem mesmo a ser tentativamente marcado.

Ainda assim, de várias maneiras tentamos explorar a janela de aperfeiçoamento social e de democratização política – a louvada e sempre adiada democracia participativa – que a Constituição deixou entreaberta. Mas o resultado não antecipado dessas tentativas todas, que, sublinhe-se, mereceram forte apoio popular, foi o golpe desfechado cinco anos atrás. Na outra ponta, multiplicaram-se minirreformas de tendência neoliberal, concretizadas via emendas constitucionais patrocinadas por forças então consideradas simplesmente liberais conservadoras.

A partir do golpe, vivemos a programada desconstrução do Estado como expressão prática dos interesses que movem as ações do neoliberalismo extremista. O que se originou com Vargas, os meios, instrumentos e instituições que permitiram aos governos do PT timidamente redesenhar as relações senhoriais entre sociedade política, sociedade civil e mundo do trabalho a partir da chave (neo)desenvolvimentista, encontra-se significativamente erodido. Em alguns casos, pensemos na Petrobrás, ruína sem volta.

A meu ver e no que mais conta, essa deriva fracassada pode ser lida reflexivamente como encontro inesperado conosco mesmos. Nós, ou pelo menos uma grande parte da esquerda que julgava estar a democracia de 1988 razoavelmente consolidada, nos surpreendemos com a facilidade com que o golpe rompeu o pacto sustentador da constituição, assalto que na prática reduziu o regime a uma sombra do que fora. Nós, atordoados ano após ano com os funestos resultados operacionais das estratégias elaboradas pela direita neoliberal em aliança com neofascistas, milicianos, militares de vocação tutelar e reacionários religiosos de todo tipo, a grande mídia atuando como refinado, “ma non tropo”, maestro.

Ainda assim, esses anos de navegação infame nos permitiram alcançar, em meio a tantas derrotas, algumas ilhas de clareza: a de que o país continua preso à barbárie que nos submerge desde a constituição da sociedade colonial escravista como base do poder português na Terra Brazilis; a evidente continuidade do racismo como estrutura de dominação com perversa dinâmica própria, monstro sempre capaz de se atualizar sob a forma de sucessivos avatares coloniais, imperiais, republicanos, modernos e pós-modernos; a realidade avassaladora do peso – tão maior do que percebiam lentes iluministas – do conservadorismo e do reacionarismo de caráter religioso que ainda hoje predominam nas igrejas todas e na maior parte da população, seja a partir da vertente católica, seja da protestante. As exceções todas, todas elas existem. Mas todas confirmam a regra lógica: sendo exceções, são minoritárias.

A esperança de que a classe média pudesse assumir um papel decente, no limite neoiluminista, foi-se água abaixo, tal como, bem antes, esgotou-se a crença na chegada de um ator imaginário, o Godot cujo apelido é burguesia nacional. A classe média, presumivelmente bem-educada e bem-informada, na realidade efetiva é – refiro-me à absoluta maioria dos que a ela pertencem – pesadelo constante, um escândalo fundado em mescla de ampla ignorância com preconceitos abissais. Cada vez mais obscurantista, cada vez mais tendente à condenação por atacado da política, cada vez mais centrada no umbigo dos próprios e medíocres interesses. Ou, pior ainda, sempre disposta a deslizar para o neofascismo ou para outro extremismo igualmente reacionário, esse que se apresenta, caso emblemático de monótona repetição ideológica, como republicanismo de corte udenista.

O grande empresariado, irrecuperável. Tal como a industrialização que se tornou seu inverso. Desde 1954, a cada grande crise, mais e mais burguesia “compradore” se torna o conjunto dos donos da riqueza, as “aristocracias dos interesses permanentes”. Suas frações, irremissivelmente subordinadas ao capital financeiro, ao cassino do capital improdutivo. Esse enredo, em que riqueza cada vez mais gigantesca – açambarcada privativamente por uns poucos, mas que no plano social só produz abjeta pobreza para as grandes massas –, é o longo adeus histórico do capital industrial que já foi o centro do sistema produtivo.

Claro, também nesse drama alguns tentam escapar à horda, sim, sobretudo quando se pensa em diálogo político. Mas as exceções em última análise não contam, ou contam muito pouco. Nem de longe o conjunto desses “tycoons” movidos por valores políticos liberais democráticos chega a constituir ‘massa empresarial’ capaz de pesar de maneira decisiva na balança de poder interna à classe. Os que se aproximam do campo progressista com vistas a explorar ambíguas afinidades eletivas, bem contados são pouco mais do que gatos pingados.

A alta burocracia e a alta tecnocracia, elas também – até mesmo porque seu espaço, seu mundo vivido social, é campo reservado, a cada geração, à formação e reprodução da alta classe média – compartilham específica visão de mundo que oscila, dependendo das circunstâncias e da capacidade da grande mídia de manufaturar falsos consensos, entre um neoliberalismo assumido como suprassumo da racionalidade instrumental e uma aspiração vagamente socialdemocrata, em geral algo envergonhada até mesmo porque sabidamente irrealizável.

Minorias existem nos poros desses dois grandes corpos, tal como os judeus sobreviviam nos poros da sociedade polonesa. Uma, de esquerda ou mesmo nacionalista de esquerda. Outra, se pensamos no momento atual, bolsonarista ou republicano-udenista. E, completando a cena, todos os tons de cinza dos adesistas pragmáticos, especialistas em nadar de braçada no pântano da burocracia.

O estamento judicial é o que é. Bom número de advogados, juízes, promotores e defensores públicos se mostra, em muitos casos de maneira admirável, até mesmo heroica, profundamente conscientes do país real ao qual pertencem, o Brasil da segunda maior concentração de renda em termos planetários, e um dos campeões de todas as outras injustiças. A imensa maior parte de seus pares, entretanto, é consciente, mesmo – quando o é… – de algo bem diferente e oposto, uma espécie de deformação cultivada que se torna bússola existencial. Esses, essa maioria funesta, de todo convencidos de seu “direito” de viver do país, da extração de recursos do povo contribuinte, e até mesmo do não contribuinte, em lugar de, seguindo os valores republicanos tão proclamados da boca para fora, servi-lo. Que a “república de Curitiba” haja sido possível diz bem do que é a justiça real no Brasil, ironicamente real no sentido colonial do termo.

Sobre a grande mídia oligopolizada, no geral da coisa não há muito o que dizer. Todos os dias ela mesma se autocondena ao seu duplo papel abjeto, de cortesã e de rainha. Sórdidas, ambas as encenações cotidianas. Exceções, sim, existem. Mas são de contar nos dedos.

E as forças armadas e policiais, delas o que se pode esperar? Por mais que se queira, por mais que se procure, nada de bom, em termos políticos, estratégicos e transformacionais é possível encontrar nessas instituições e em suas lideranças. Juntam o corporativismo pleno e raso com uma concepção de país e de mundo que bem decifrada proclama, sob diferentes formulações, sua única ‘raison d´être“: a defesa dos antivalores afins a um autoritarismo reles, imprecisamente oscilando entre o bonapartista, o patrioteiro e o reacionarismo conservador. O nome de fantasia? Poder moderador.

O nível intelectual do alto oficialato é de pasmar. Cada vez que um de seus luminares fala ou escreve, sentimento de vergonha alheia nos toma. Então, o que se pode esperar dessas forças, desses homens e mulheres, na hipótese de um retorno da esquerda hipermoderada ao Planalto? No mínimo, preparativos meticulosos, aproximações sucessivas como método favorito, voltados para oportuno desfechar de outro golpe, cujo estilo e conteúdo, imagino, os grandes estrategistas ainda estão por determinar.

Caso esse salto no breu da fé que anima o poder moderador salvacionista se concretize, o regime ditatorial que venha a ser instalado será infinitamente mais violento do que o criado pelo AI 5, e muito menos hipócrita do que o resultante da bem-sucedida conspiração que transformou as forças armadas, em particular o exército, na indiscutível base de sustentação do pior governo da história republicana.

E, por fim, o congresso… Dele, o que se pode afirmar com certeza? Que a cada eleição pouco se renova, mas em muito apodrece, essa degenerescência refletindo a realidade do Brasil moderno-arcaico, arcaico-moderno, sem rumo e sem remédio. Portanto, do congresso não cumpre demasiado falar; e dele muito menos algo de realmente progressista esperar. O “centrão” é sua vocação maior, talvez a única. Com isso, creio, tudo foi dito.

Caso se configure essa confluência singular, caso nossas esperanças e a realidade factual convirjam, o retorno da esquerda ao poder executivo será importante virada, sim, mas de forma alguma decisiva. Isso porque o projeto restaurador também tem de necessariamente incluir, no rol de suas recuperações democráticas e de seu esforço de sobrevivência, o amargo feixe das contradições insolúveis. Insolúveis mas indispensáveis ao “bom funcionamento” da democracia à brasileira: a volta à negociação incessante, na única modalidade possível e já bem conhecida, com o grande empresariado, o oligopólio da mídia e o congresso.

Ademais, o projeto restaurador estará também intimado ao diálogo infinito e opaco com o sistema nacional de justiça, reduto do conservadorismo mais torpe, ainda que adornado de filigranas jurídicas que se espraiam, com brilho de lantejoula, desde a primeira instância até o STJ e o STF. Sem falar na interação previsora com todas as polícias, da civil à federal e às forças militares; e sem esquecer, por favor, dos bombeiros. Diálogos com adversários ferrenhos, na melhor das hipóteses. Diálogos com inimigos, na hipótese mais realista. Diálogos com sócios razoáveis, companheiros de estrada? Probabilidade tendente a zero.

De toda forma, em meio às contradições vigentes, e a despeito das que nos aguardam em caso de vitória, manifesta-se o esplendor do simples: de março de 2021 até o segundo turno da eleição presidencial vindoura, perfeitamente possível construir a volta da esquerda à chefia do executivo. Aquilo que parecia ponto fora da linha da realidade, sonho de “quarante-huitards” nostálgicos, passou, graças a Fachin e a Lula, a ser a incógnita mais importante na equação político-eleitoral realista.

Por tudo isso, se colocamos entre parênteses o momento catártico que começamos a viver a partir deste março – momento, sempre bom sublinhar, criado por Fachin como encarnação do impensável, do que não se pode prever –, a alegria e o entusiasmo criados pela perspectiva de vitória em quase dois anos mais podem ser vistos noutra perspectiva.

O que nos mobiliza também significa, ao fim e ao cabo, montar e remontar entendimentos delicados, cujos resultados serão sempre insuficientes, sempre inconfiáveis, sempre alcançados sob risco de anulação iminente. Entendimentos com atores e instituições que fazem parte do núcleo duro dos que tradicionalmente mandam e comandam: a alta tecnocracia, a alta burocracia das carreiras de estado, os altos escalões militares. Nesse contexto, em especial estratégica será a interlocução com o alto comando do exército, ente algo misterioso, esfinge sob a forma de centauro, corpo pavloviano sempre capaz de exercer seu ‘penchant‘ pela grande arte da tuitagem moderadora.

Bem sopesado tudo, chega-se à conclusão de que o maior desafio ao grande projeto restaurador pode ser reduzido a uma só questão: como recuperar o lado bom da volta ao passado progressista – noção algo problemática –, o que se iniciou em 2002 para ser submergido em 2016, sem reincidir na pulsão de morte? Ou seja, sem recair nos esquemas de entendimento pelo alto entre o executivo e cada um de seus adversários, todos eles mais do que bem entrincheirados nos demais poderes, na cúpula empresarial da sociedade civil e no interior do próprio executivo.

No Brasil atual, otimismo da vontade e pessimismo da razão não parecem formar par constante. Talvez porque o otimismo da vontade desde faz pouco impera com tal intensidade que, em sua ânsia por viver ‘lendemains qui chantent‘, ameaça cortar laços com a realidade efetiva. Talvez, também, porque na presente quadra o pessimismo da razão pode ser sempre rechaçado como sintoma de derrotismo, de desânimo que “objetivamente” favorece o neofascismo, ou como sintoma de uma irresponsável tendência à desmobilização. Pessimismo, portanto, carente de sentido político, estratégico e conjuntural. Carente de razão.

Mas sem que o povo se organize – e como poderá ele se organizar de maneira autônoma, como evitar ser organizado? –, o futuro do nosso possível retorno se tornará ainda mais incerto. O eventual novo ciclo a ser inaugurado em janeiro de 2023 arrisca ter vida bem mais curta do que o anterior, encerrado com o golpe contra Dilma.

Sem construir algo cuja dinâmica própria inelutavelmente rompe com toda e qualquer estratégia simples, bem-intencionada que seja, mas essencialmente restauradora, o que venha a começar no pico da alegria pode vir a se metamorfosear, no curto prazo de alguns anos, em drama, tragédia e catástrofe. E não esqueçamos, esse outro construir, o poder do povo construído pelo povo, é tarefa de caráter geracional. Para mais, sem que se disponha de nenhum preciso mapa do caminho. Portanto, invenção necessária.

Cada geração, às vezes penso assim, tenta assaltar o céu. Em geral fracassa, mesmo quando momentaneamente se crê vitoriosa. Mas a cada vez que o fracasso comparece, outra geração assume o papel de Sísifo. Escrevo isso pensando em minha geração, que com muito do otimismo da vontade pensava estar em condições de mudar o mundo. Esse mesmo impulso, intuo, perpassa todas as apressadas gerações que se sucedem desde o início da modernidade. A minha tinha a certeza de que superaria por completo o “atraso brasileiro”. Isso, bem lá atrás, anos 1960.

O resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2022 promete algo importante para todos os que são democratas: debilitar de forma irreversível o neofascismo. Essa será uma das consequências iniciais da vitória eleitoral da esquerda. Mas há algo mais importante, algo importantíssimo, e neste caso o superlativo se impõe, algo que vai muito além, a meu ver, do impor decisiva derrota a Bolsonaro e o bolsonarismo, fazendo-os voltar ao esgoto que lhes é próprio.

Derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo depende do resultado do pleito que oporá Lula ao capitão e, na sequência imediata, de competência que permita montar e operacionalizar uma estratégia – perdoem a linguagem da Guerra Fria – de eficaz “rollback“. Mas outra luta, muito mais longa, muito mais importante em termos de tempo longo da história, e com resultados muito mais incertos, me parece tarefa para a qual não estamos ainda preparados: com o que sobrar de estado, como fazer retroceder o neoliberalismo que afinal de tornou, desde o lançamento da Ponte para o Futuro, senhor absoluto da “res publica“, projeto hegemônico da minúscula sociedade dos imensamente ricos, mas ainda ideologia bastante forte em todos os estratos sociais? Como escapar da jaula de ferro que nos aprisiona a todos?

Dificilmente um governo de esquerda que se orientará pelo reformismo fraco – e que por isso mesmo deverá frequentemente optar por importantes concessões ao grande capital, justificando-as como indispensáveis à concretização de ao menos certos aspectos básicos de seu projeto restaurador, socialmente progressista – conseguirá, no que diz respeito ao desmonte do ferrolho neoliberal, ser bem-sucedido. As restaurações, sou tentado a pensar, têm uma compulsão pelo fracasso. Desse fado escaparemos?

Comecei essas reflexões algo estranhas na forma e no conteúdo, porque propositalmente escapam ao produzido seja pelo mundo da academia, seja pelo dos analistas políticos profissionais, com palavras de outros. No momento de concluir, prefiro deixar um filósofo e um poeta falarem:

“Na história mundial, por meio das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isso é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção”. (Hegel, Lições sobre a Filosofia da História).

And the warnings against deep and stormy waters
And the warnings against a drought above the ground,
And memorial tombstones everywhere, are weights
To keep the history of the country from flying off
Like papers in the wind.”
(Yehuda Amichai)

*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

 

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