Por LUIZ RENATO MARTINS*
Do otimismo desenvolvimentista ao trauma do golpe, a arte brasileira reinventou-se através de Antonio Dias e Hélio Oiticica, substituindo a pureza geométrica pela síntese dialética que incorporava o samba, a rua e a resistência popular
Amargo despertar
É ponto consensual e reconhecido que a obra de Antonio Dias surgiu e alcançou maioridade precoce após o golpe empresarial-militar de 1964.[i] O despertar do trabalho vinha radicado, pois, não numa cena otimista e fecunda de esperanças, mas num quadro histórico e psicossocial de trauma.
Num tal contexto, a relação entre o sujeito e o real, longe de compreender o pressuposto otimista de um contato pleno e direto, aparece por si complicada; vem combinada a dores e ansiedades, e incluía como um dado interno a sensação de impotência e esmagamento – no caso de Dias, basta ver o trabalho cujo título era um augúrio dos tempos que viriam: O Homem que Foi Atropelado (1963, óleo sobre gesso e duratex, 51 × 60 cm, coleção particular). Porém, a dor aqui não era só a do homem, mas a da nação sob os blindados, que a tela de 1963 (ano precedente ao golpe) já havia vislumbrado e revelava à guisa de antecipação.
Sepultado, pois, e decretado o anacronismo do ciclo simbólico – de tônica otimista do decênio de 1950 –, é preciso agora procurar correlacionar os recursos heterogêneos e os achados sincréticos da linguagem de Antonio Dias, ou seja, os ritmos sociais próprios à acumulação primitiva e à violência policial-militar sancionadas como formas e práticas da nova ordem, após o golpe.
Enigmas e dilemas
Essa etapa desde logo reúne algumas questões inter-relacionadas: (i) por que os movimentos concreto e neoconcreto não eram mais condizentes com a nova situação? (ii) qual a lógica própria para dar conta da hora, do novo partido plástico? (iii) este, em que correspondia plasticamente à nova verdade do momento?
Para aferir a inatualidade da arte concreta e do movimento neoconcreto – em suma, da abstração geométrica – ante a nova conjuntura histórica, tomemos o papel de Dias na transição crítica e disjuntiva enquanto ponto de referência, bem como algumas proposições de Oiticica, com papel decisivo na discussão. Nestas, Oiticica compara e reflete acerca da convergência verificada entre o curso explosivo, repentino e catalisador das obras de Dias, especialmente Nota sobre a Morte Imprevista (1965, óleo, acrílica, vinil e plexiglas sobre tecido e madeira, 195 × 176 × 63 cm, col. do artista, op. cit.).[ii] Nelas, Oiticica trata ainda da lenta guinada para a “dialética realista”, efetuada por ele e outros artistas da abstração geométrica, como Lygia Clark (1920-1988) e Waldemar Cordeiro (1925-1973).
Iniciação popular
Um testemunho de época vale como introdução narrativa acerca da guinada de Oiticica: o relato de um amigo, o crítico Mário Pedrosa (1900-1981), em “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, (Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26.06.1966). A propósito do trabalho de Oiticica em homenagem ao amigo Cara de Cavalo, disse Pedrosa: “[…] seu comportamento subitamente mudou: um dia, deixa sua torre de marfim, seu estúdio, e integra-se na Estação Primeira, onde fez sua iniciação popular, dolorosa e grave aos pés do Morro da Mangueira, mito carioca”.[iii]
Essa passagem é rememorada também pelo próprio Hélio em 1968, ao depor a respeito de sua instalação Tropicália (1967),[iv] montada originalmente na mostra Nova Objetividade Brasileira (Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, 06 – 30.04.1967). Oiticica destacou então o laço entre os dois momentos: o de 1967, quando fez Tropicália; e o de 1964 – momento de sua dissociação do neoconcretismo, relatado por Pedrosa no texto acima.
Disse então Hélio Oiticica: “Tudo começou com a formação do Parangolé em 1964,[v] com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios, etc”.
Conclui-se que a resposta ético-político-estética de Hélio Oiticica ao golpe de empresarial-militar de 1964 consiste num conjunto de atitudes, escolhas e ações. Constam desse conjunto, tal como mencionadas acima: a ida à Mangueira, com a “iniciação” no samba e no morro; a descoberta de uma nova “razão construtiva” – elaborada “a partir da arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios”; a gênese de um programa “ambiental” – não analítico, mas sintético, conforme se discutirá adiante –; e, para completar, a imposição de uma “imagem obviamente brasileira (…) à vanguarda e às manifestações da arte nacional”, conforme adiante.
Africanizar o Brasil
Além de uma “nova razão construtiva”, emprestada da rua e da vida coletiva popular como modo de resistência, a resposta de Oiticica também envolveu uma prática de ação direta: a ocupaçãodo MAM pelo povo dos morros, constituído basicamente por afro-brasileiros. Sem entrar aqui nos detalhes desse episódio ocorrido na noite de gala da abertura da mostra Opinião 65, quando Oiticica e seus convidados do Morro da Mangueira foram barrados à entrada, é preciso vincular tal episódio à resposta estratégica de Oiticica à cena instalada em decorrência do golpe empresarial-militar.
Em síntese, a operação de Oiticica – uma intervenção tática na abertura da mostra, como ato objetivo em favor de uma autêntica e real Nova Figuração brasileira, segundo o título da mostra – consistiu, antes de tudo, em urgir o fim do apartheid nas artes plásticas brasileiras, tanto quanto em favorecer a apropriação cultural revolucionária do Brasil pelos afrodescendentes. O trabalho de Oiticica passou a partir de então a se constituir programaticamente segundo o ritmo do desdobramento concreto dessa nova aliança, cujo rito de passagem consistiu precisamente na tentativa de tomada do MAM pelo povo do morro, na noite de 12 de agosto de 1965.
A mudança programática de eixo da arte de vanguarda no Brasil, da geometria e da pele branca, das superfícies alvas e brilhantes ou marmóreas, para o samba, para a pele negra e as muitas cores dos tecidos populares – que assumirão o primeiro plano em Tropicália[vi] – também foi posta cabalmente em perspectiva histórica no texto referido de Mário Pedrosa.
A Nova Objetividade Brasileira
Quais as condições gerais (histórico-sociais) e o contexto próprio da vanguarda (artística), que permitiram que o trabalho de Dias exercesse objetivamente a função estrutural de turning point nas artes visuais, segundo Oiticica?[vii]
O texto de 1966 de Pedrosa, já citado, tratou dessas questões com a força límpida do juízo histórico e sintético do crítico, mas também mediante o acúmulo reflexivo e histórico destilado dos trabalhos pós-geométricos de Oiticica. Todos esses elementos, como aqui apontado ao início, foram denegados e recalcados no meio de arte brasileiro anos depois, precisamente desde meados do decênio de 1970, em função do mal-estar (ante a realidade). Recalque e mal-estar contemporâneos, cumpre notar, do boom econômico pós AI-5 (13.12.1968), indissociável da superexploração e da repressão às greves.
Voltemos então às palavras de Pedrosa que explicitam premissas e desdobramentos da síntese resultante na Nova Objetividade Brasileira e na sua nova razão construtiva: “Hoje, em que chegamos ao fim do que se chamou de ‘arte moderna’ (inaugurada pelas Demoiselles d´Avignon, inspirada na arte negra recém-descoberta), os critérios de juízo para a apreciação já não são os mesmos que se formaram desde então, fundados na experiência do cubismo. Estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mas cultural, radicalmente diferente do anterior, e iniciado digamos pelo Pop art. A esse novo ciclo de vocação antiarte chamaria de ‘arte pós-moderna’. (De passagem, digamos aqui que desta vez o Brasil participa dele não como modesto seguidor, mas como precursor. Os jovens do antigo concretismo e sobretudo do neoconcretismo […] anteciparam-se […])”.
“Na fase do aprendizado e do exercício da ‘arte moderna’, a natural virtualidade, a extrema plasticidade da percepção de novo explorada pelos artistas era subordinada, disciplinada, contida pela exaltação, pela suprematização dos valores propriamente plásticos. Agora, nessa fase de arte na situação, de arte antiarte, de ‘arte pós-moderna’ dá-se o inverso: os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais. É fenômeno psicológico perfeitamente destrinchado o fato de a plasticidade perceptiva aumentar sob a influência das emoções e dos estados de afetividade. […] Não é a expressividade em si que interessa à vanguarda de agora. Ao contrário, ela teme acima de tudo o subjetivismo individual hermético. […]”
“Arte ambiental é como Oiticica chamou sua arte. Não é com efeito outra coisa. Nela nada é isolado. Não há uma obra que se aprecie em si mesma, como um quadro. O conjunto perceptivo sensorial domina. […] Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para uma experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade. […]”
“O artista se vê agora, pela primeira vez, em face de outra realidade, o mundo da consciência, dos estados de alma, o mundo dos valores. Tudo tem de ser agora enquadrado num comportamento significativo. […] Dá-se, então, a simbiose desse extremo, radical refinamento estético com um extremo radicalismo psíquico […]. O inconformismo estético […] e o inconformismo psíquico social […] se fundem. A mediação para essa simbiose de dois inconformismos maniqueístas foi a escola de samba da Mangueira”.
“A expressão desse inconformismo absoluto é a sua Homenagem a ‘Cara de Cavalo’,verdadeiro monumento de autêntica beleza patética, para a qual os valores plásticos por fim não foram supremos. Caixa sem tampa, coberta pudicamente por uma tela, que é preciso levantar para se ver o fundo, é forrada nas suas paredes internas com reproduções da foto aparecida nos jornais da época, em que ‘Cara de Cavalo’ aparece, de face cravada de balas, ao chão, braços abertos como um crucificado. […] A beleza, o pecado, a revolta, o amor dão a arte desse rapaz um acento novo na arte brasileira. Não adiantam admoestações morais. Se querem antecedentes, talvez este seja um: Hélio é neto de anarquista”.[viii]
A construção da síntese ambiental
O texto de Pedrosa vale como um documento-chave: atesta a consolidação do sistema visual brasileiro em transição do moderno para o “pós-moderno” – na acepção de Pedrosa, referida há pouco. E essa consolidação completa-se precisamente em torno do novo paradigma sintético-realista que – ao lado dos passos precursores de Dias, no âmbito da Nova Figuração – vem a ter o seu corolário ou chave de abóbada na guinada de Hélio Oiticica para o realismo e a arte ambiental.
Oiticica tinha plena consciência do que estava em jogo e assinalou o teor inédito e decisivo de tal momento no texto “Tropicália”, de março de 1968.[ix] A constituição do novo vetor sintético e realista, superando a função formativa – exercida entre 1950 e 1964 consoante os valores plásticos próprios do vetor analítico –, provinha da ideia do Parangolé, como Oiticica insistentemente sublinhou no texto, de novembro de 1964, “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé”.[x]
O “turning point” “pictórico-plástico-estrutural” de Dias
Uma vez postas as linhas gerais do percurso cumprido por Oiticica – da fase analítica formativa à consolidação do sistema visual brasileiro em chave sintética e realista –, é preciso agora dar um passo a mais: totalizar o movimento decisivo dessa realização, reconstituindo o trajeto prático-reflexivo cumprido pela outra forma matriz rumo a tal consolidação.
Essa passagem foi destacada por Oiticica como “ponto decisivo na formulação do próprio conceito de ‘nova objetividade’”. Trata-se, pois, de explicitar como se engendrou uma nova concepção de estrutura “dialético-pictórica”, mediante o trabalho de Dias na Nova Figuração, e, especificamente, na obra paradigmática Nota Sobre a Morte Imprevista (op. cit.).[xi]
É hora, pois, de recolocar a incongruência aparente dos elementos da linguagem de Dias em novas bases, ou seja, ao lado do mencionado processo de iniciação popular de Oiticica no samba, e também dos seus achados sobre o modo construtivo popular. Em suma, é preciso esclarecer as razões da combinação heteróclita, da mescla de elementos heterogêneos que, do ponto de vista pictórico-estrutural, foi tão decisiva, segundo Oiticica, para a constituição da razão construtiva da Nova Objetividade. Qual é a verdade histórico-objetiva em relação ao novo ritmo geral dessa combinação de heterogêneos?
Vale recorrer para essa nova etapa investigativa a um artigo-memorial de Roberto Schwarz, intitulado “Um Seminário de Marx”. O artigo, trazendo um balanço das discussões de que Schwarz participou entre o período final dos anos 1950 e o momento pré-64, rememora – na perspectiva de 1995 – a ruptura decisiva introduzida pelo golpe de 1964. O balanço fica melhor ainda se o leitor, por sua conta, trouxer à conversa um outro ensaio, do mesmo Schwarz, datado de pouco depois do golpe (1970): “Cultura e política, 1964-1969/ Alguns esquemas”, publicado à época em Les Temps Modernes (Paris), ante a censura vigente no Brasil.[xii]
Da perspectiva atual, ambos os textos se completam um ao outro e beneficiam-se da leitura lado a lado e deliberadamente articulada. De fato, as questões focalizadas estão interligadas e correspondem em planos próprios a momentos históricos contíguos. Assim, “Um Seminário Marx” constitui uma investigação dos elementos e antecedentes das contradições estudadas em “Cultura e política…” – ensaio que analisava a grande efervescência cultural, crítica e inventiva do período imediatamente sucessivo ao golpe, no qual emergiram a crise da abstração geométrica e as respostas visuais aqui em exame.
O que diz Schwarz no texto de 1995? O ensaio trata de um seminário sobre O Capital, realizado por membros da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, a partir de 1958.[xiii] Desse seminário, que combinava o exame do processo da modernização industrial em curso com aquele da reprodução das sequelas do antigo regime colonial, surgiram muitas questões novas que alimentaram teses universitárias cruciais, sobre a estrutura dos problemas brasileiros. Porém, os debates travados no Seminário também traziam “pontos cegos”, que o ensaio de 1995 de Schwarz destaca. Tais pontos cegos não afetavam apenas os rumos do Seminário mas se reproduziam, como esclarece Schwarz, nos impasses e limites dos debates e da produção intelectual brasileira progressista entre o final do decênio de 1950 e os anos seguintes.
O que interessa aqui é que tais pontos cegos dos debates nas ciências humanas prolongavam-se também no que ocorria nas artes visuais, gravitando àquela altura, como vimos, em torno do paradigma da abstração geométrica. Quais eram, então, os pontos cegos distinguidos por Schwarz, nos debates das ciências humanas?
O ensaio destaca três: (i) a desconsideração “da crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria”; (ii) a incompreensão dos intelectuais brasileiros ante o marxismo pessimista da Escola de Frankfurt e círculos correlatos – leia-se, incompreensão ante a crítica da industrialização e do progresso; (iii) e o descaso quanto à arte moderna.
Como Schwarz enfatizou em 1995, isso ocorria em favor do imperativo de “tirar a diferença e superar o atraso” do Brasil em relação aos “países adiantados” – vistos, então, como parâmetros para o desenvolvimento brasileiro. Em síntese, os integrantes do Seminário Marx esposavam em linhas gerais a tese da modernização assentada na industrialização, segundo o padrão de planejamento, teorizado e implementado por Celso Furtado, de acordo com o modelo preconizado pela CEPAL. Noutro plano, tal modelo de modernização, via industrialização, operava de modo análogo nas artes visuais, como premissa dos defensores da abstração geométrica, também profetas, a seu modo, da industrialização.[xiv]
Nisso residia, em suma, o provincianismo mental da época, apontado pela crítica de Schwarz como “estreiteza de visão” acerca da “problemática nacional”, formulada independentemente de um exame crítico acurado do sistema mundial de produção de mercadorias e suas implicações.[xv]
Pontos cegos e dilemas do desenvolvimentismo
Os comentários de Schwarz são precisos e levam longe. Feitos alguns ajustes, pode-se transportá-los do campo das ciências humanas para o campo das artes. A arte concreta fez parte da cultura do “desenvolvimentismo” e assim compartiu do otimismo frente à industrialização. Ignorou as questões relativas à alienação do trabalho e ao fetichismo da mercadoria, deixando intocados os termos essenciais da experiência estética, ou seja, as relações de poder, os fundamentos da economia autor/obra/público[xvi] – questões, sublinhe-se, que a obra posterior de Dias nos anos 1970, mediante a série The Ilustration of Art, viria a dissecar de modo dialético e sistemático.
Antes da Nova Figuração, o neoconcretismo deslocou de certo modo as coordenadas das relações constitutivas da abstração geométrica e decerto modificou-as, mas o fez ainda dentro de premissas imbuídas de otimismo histórico similar ao da arte concreta. Concentrou-se assim prioritariamente na questão dos valores plásticos entendidos a partir das leituras brasileiras do racionalismo weberiano, ou seja, nos termos abstratos, transcendentais e supostamente universalistas difundidos pela escola de Ulm, na esteira da arte concreta parisiense de 1930. Programa esse, o de Van Doesburg (1883-1931), que criara uma versão adaptada ao capitalismo, do combativo construtivismo soviético, originário da revolução de Outubro.
Em resumo, a versão mansa do construtivismo, adotada pela vanguarda de espírito empreendedor, aglutinada em São Paulo ao redor do programa da arte concreta, acatando a especialização e a divisão dos saberes, dialogava exclusivamente com os setores da vida cultural brasileira envolvidos diretamente na industrialização e na modernização tecnológica da produção, relegando os demais à condição de retardatários. Diante dessa concepção reificada de modernização – desdobrada com ajustes críticos, mas não disruptivos, pelo neoconcretismo –, o que fazer?
Ora, precisamente, o que começaram a fazer a Nova Figuração, por um lado, e os dissidentes da abstração geométrica, por outro, como Hélio Oiticica, entre os neoconcretos, e Waldemar Cordeiro, dentre os concretos. Ou seja, primeiro, resgatar a dimensão combativa da abstração geométrica, indo às suas raízes históricas, ou seja, ao construtivismo da Revolução de Outubro. Exemplos disso são, em primeiro lugar, na obra de Dias, entre outros procedimentos, a opção pela agressividade característica da “agitprop”, a redução cromática, na linha utilitarista dos cartazes construtivistas soviéticos, sem esquecer da adoção correlata da descontinuidade ostensiva das partes da obra, etc.
Segundo: abandonar o encastelamento da pesquisa dos valores plásticos puros, romper o isolamento ante outras linguagens e se deixar permear dialogicamente por outras manifestações. Foi o que levou ao resgate, por exemplo, de elementos do universo visual urbano vernacular ou popular. Foram tais elementos que conferiram ao trabalho de Dias tons oriundos da caricatura, do comentário vulgar corrente em paredes de banheiros públicos, dos traços retóricos e melodramáticos das manchetes e chamadas dos diários sensacionalistas.
Terceiro: enfrentar as questões correlatas do fetichismo da mercadoria, da alienação e da internacionalização do sistema mundial produtor de mercadorias. É o que a Nova Figuração fez de inúmeros modos, ao lancetar em público o imaginário do consumo, e ao se apropriar, para tanto, dos clichês da arte pop.
*Luiz Renato Martins é professor-orientador do PPG em Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS, 2019).
Para ler a primeira parte da série clique neste link.
Notas
[i] A estruturação do trabalho de Dias data efetivamente dos idos de 1964-65. Assim, apesar de ter já realizado uma mostra individual em 1962, na Galeria Sobradinho (Rio de Janeiro) quando ainda tinha dezoito anos – e seu trabalho compreendia formas abstratas de inspiração indígena –, e também de ter obtido então um primeiro prêmio de desenho, no XX Salão Paranaense de Artes Plásticas (1963), foi, de fato, na mostra de dezembro de 1964, na Galeria Relevo, no Rio de Janeiro, que o trabalho de Dias adquiriu feições próprias, levando ao que apresentaria no ano seguinte na mostra coletiva Opinião 65.
[ii] Nas palavras de Oiticica, “[…] de certo modo a proposição realista que viria com Dias e Gerchman, e de outra forma com Pedro Escosteguy (em cujos objetos a palavra encerra sempre alguma mensagem social), foi uma consequência dessas premissas […] e também de outro modo (…) [do] movimento do Cinema Novo que estava então no seu auge. Considero então, o turning point decisivo desse processo no campo pictórico-estrutural, a obra de Antônio Dias Nota Sobre a Morte Imprevista, na qual afirma ele, de supetão, problemas muito profundos de ordem ético-social e de ordem pictórico-estrutural, indicando uma nova abordagem do problema do objeto (na verdade esta obra é um antiquadro, e também aí uma reviravolta no conceito de quadro, da “passagem” para o objeto e da significação do próprio objeto). /Daí em diante surge, no Brasil, um verdadeiro processo de “passagens” para o objeto e para proposições dialético-pictóricas, processo este que notamos e delineamos aqui vagamente, pois que não cabe, aqui, uma análise mais profunda, apenas um esquema geral. Não é outra a razão da tremenda influência de Dias sobre a maioria dos artistas surgidos posteriormente. […] quero anotar aqui neste esquema que sua obra é na verdade um ponto decisivo na formulação do próprio conceito de ‘nova objetividade’ que viria eu mais tarde a concretizar […]” (Mantive sem itálico o termo “turning point”, conforme o original. LRM). Cf. H. OITICICA, “Esquema geral…”, ver “Item 2”, s. n., op. cit.. Republicado in H. OITICICA, Hélio Oiticica, catálogo, org. Guy Brett et. al. (Rotterdam, Witte de With, Center for Contemporary Art, fevereiro-abril de 1992; Paris, Galerie nationale du Jeu de Paume, junho-agosto de 1992; Barcelona, Fundació Antoni Tapiés, outubro-dezembro de 1992; Lisboa, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro-março de 1993; Mineápolis, Walker Art Center, outubro de 1993-fevereiro de 1994; Rio de Janeiro, Centro de Arte Hélio Oiticica, setembro de 1996-janeiro de 1997), Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Projeto Hélio Oiticica, 1996, p. 113.
[iii] Cf. M. PEDROSA, “Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica”, in idem, Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, org. Aracy Amaral, São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 207; republicado in idem, Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos, vol III, org. e apres. Otília Arantes, São Paulo, Edusp, 1995, p. 356.
[iv] A instalação Tropicália compreendia ambientes com plantas, areia, pedras, araras e um aparelho de televisão, além dos Penetráveis PN2 (A Pureza é um Mito),e PN3 (Imagético) – estruturas cuja série, iniciada ainda no curso do neoconcretismo, remonta a 1961. Para imagem da instalação original, ver foto 119 in H. OITICICA, Hélio Oiticica, catálogo, op. cit., pp. 122.
[v] A série dos trabalhos denominados Parangolés iniciou-se em 1964. Ver H. OITICICA, “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé” [novembro 1964] e “Anotações sobre o Parangolé”, in H. OITICICA, Hélio Oiticica, catálogo, op. cit., respectivamente pp. 85-92 e 93-99.
[vi] Ver H. OITICICA, “Tropicália/ 4 de março de 1968”, repub. suplemento Folhetim, jornal Folha de São Paulo, 18.01.1984; repub. in H. OITICICA, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 124-6. O texto de 1968 refere-se à instalação de mesmo título no MAM-RJ, Tropicália (1967).
[vii] Para os termos de Oiticica, ver nota 2 acima.
[viii] Cf. M. PEDROSA, “Arte ambiental…”, in idem, Dos Murais…, op. cit., pp. 205-9; e in idem, Acadêmicos e…, op. cit., pp. 355-60.
[ix] “Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente ‘brasileira’ ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional”. Cf. H. OITICICA, “Tropicália”, op. cit., repub. in H. OITICICA, Hélio Oiticica, catálogo, op. cit., p. 124.
[x] Ver também nota 5 acima.
[xi] Cf. H. OITICICA, “Esquema geral…”, ver “Item 2”, s. n., op. cit.; repub. in H. OITICICA, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 111-12.
[xii] Ver Roberto SCHWARZ, “Cultura e Política: 1964-1969”, in idem, O Pai de Família e Outros Estudos, S. Paulo, Paz e Terra, 1992, pp. 61-92. O texto foi publicado originalmente sob o título “Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969”, in revue Les Temps Modernes, nº 288, Paris, Presses d’aujourd’hui, juillet 1970, pp. 37-73.
[xiii] O Seminário Marx foi constituído por um grupo de jovens professores e estudantes da USP que se reuniam semanalmente, fora da universidade, para estudar e discutir O Capital. Do grupo interdisciplinar, composto por membros dos cursos de História, Letras, Ciências Sociais e Políticas e Filosofia, faziam parte vários intelectuais cujas obras vieram a mudar a interpretação do país: Bento Prado Júnior (1937-2007), Fernando Henrique Cardoso (1931), Fernando Novais (1933), José Arthur Giannotti (1930-2021), Francisco Weffort (1937-2021), Michael Löwy (1938), Octávio Ianni (1926-2004), Paul Singer (1932-2012), Roberto Schwarz e outros. Ver Roberto SCHWARZ, “Seminário Marx”, in idem, Sequências Brasileiras: Ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 86-105.
[xiv] Para as primeiras críticas em profundidade do do modelo proposto pela CEPAL, que incluíam, no caso, uma análise concreta do papel das classes, ver Ruy Mauro MARINI, Subdesarrollo y Revolución, Siglo XXI Editores, México, 1969; Subdesenvolvimento e Revolução, trad. Fernando Correa Prado e Marina Machado Gouvêa, col. Pátria Grande: Biblioteca do Pensamento Crítico Latino-Americano, vol. 1, Florianópolis, Insular, 2012. Ver também correlatamente sobre o desenvolvimento da abstração geométrica no Brasil e o assim chamado “projeto construtivo brasileiro na arte”, L. R. MARTINS “Vibração Ondular” e idem Vibração Ondular – parte 2, publicados em A Terra é Redonda, respectivamente em 01.03.2025, disponível em https://aterraeredonda.com.br/vibracao-ondular/ e 05.04.2025, disponível em https://aterraeredonda.com.br/vibracao-ondular-parte-2/.
[xv] Para os “pontos cegos”, ver SCHWARZ, “Seminário…”, op. cit., pp. 103-5; para os “passos à frente”, ver idem, pp. 93-103.
[xvi] Ver a respeito L. R. MARTINS “Vibração Ondular”, op. cit., e idem ‘Vibração Ondular – parte 2”, op. cit. .
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