Gerd Bornheim

Willem de Kooning, Litho # 2 (Waves # 2), 1960
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por OLGÁRIA MATOS*

Prefácio do livro recém-lançado “Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim” de Gaspar Paz.

A obra Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim compõe o pensamento do filósofo como uma cosmogonia, cujo eixo é o estatuto da arte no mundo contemporâneo. Generosa reconstrução do pensamento de um autor que encontrava nas criações espirituais a faculdade superior de atravessar fronteiras, Gaspar Paz identifica, nas reflexões de Gerd Bornheim, o teatro como “obra de arte total”. Bornheim realiza, nas reflexões de Paz, o ideal goethiano da Weltkultur.

Generoso também este livro, porque Gaspar Paz o completa com material inédito do filósofo que frequentou capitais europeias, entre elas Paris e Berlim, cidades que tantas filosofias e artes produziram e o formaram. Eis por que conferências, aulas, áudios, anotações formam um móbile de ideias, contestando o estilo moralizante dos sistemas, a começar pelo tratamento híbrido de questões, a um só tempo epistemológicas e literárias, políticas e estéticas.

Nas palavras de Paz: “O teatro lhe oferece ainda uma posição especial e diferenciada entre os escritores-filósofos que se preocupam e se dedicam em geral mais ao estudo da literatura ou das artes plásticas. É que, além disso, as interpretações sobre o teatro irão permitir que Bornheim aceda a outras atividades artísticas (poesia, música, artes plásticas, cinema etc.) de forma mais livre e sem os comprometimentos ideológicos que às vezes elegem determinadas manifestações artísticas como hegemônicas em relação às demais. Isso fará com que suas críticas assumam posicionamentos abertos. Por isso o jogo entre filosofia e teatro constitui um dos aspectos mais singulares de suas interpretações”.

Gaspar Paz compreende que, para Gerd Bornheim, a arte não é o Outro da filosofia, mas a maneira privilegiada e peculiar de elucidar, através de história e de experimentação, de afetos e paixões, questões intelectuais. Teatralizando a filosofia, Paz indica como Bornheim transita entre a música, o cinema, a literatura, sempre em “situação”, segundo a livre filiação do filósofo à fenomenologia e ao existencialismo de Sartre e Merleau-Ponty, ou à psicanálise de Freud e à imaginação de Bachelard. Gerd transforma assim o palco do teatro em uma cena mental.

Tragédia e filosofia, literatura e ciências, ideologia e mitologia questionam tanto mitos quanto a “ação racional” a partir da leitura derridiana de Bornheim: “O logocentrismo, para Derrida, valoriza a teoria da identidade do ‘outro’ ao ‘mesmo’. Colocada em xeque a identidade, o primeiro alvo será a dialética hegeliana. Constata-se a crise e exige-se a tomada de partido pela “desconstrução” da metafísica. Aqui Heidegger e Derrida coincidem, como disse Bornheim, na forma de pensar o limite da crise.

A saída de Heidegger nesse panorama está na volta a uma origem poética da linguagem. E Derrida radicaliza de certa maneira esse viés a partir da ‘lógica da margem’. Tal olhar para as margens, de acordo com Bornheim, seria aquele ‘apontar ao outro que não ela mesma’ […]. O significado então é encontrado nesse ‘dar margem’ a outras conotações. O desafio do escritor e do filósofo seria escavar essas significações sem se preocupar demasiadamente com a centralidade do texto, do texto acabado e imbuído de todas as suas prestezas comunicativas”.

Neste sentido, o romancista, o dramaturgo, o músico, o cineasta, o cientista e o filósofo ultrapassam um fechamento disciplinar, associados, no pensamento de Bornheim, a uma “pedagogia”, como em Brecht, ou ao “teatro do oprimido” em Boal, mas segundo um embaralhamento entre engajamento e distanciamento, com o que se subverte o universo moral do leitor e do espectador. A relação entre o espírito e a letra se expressa na recusa da boa consciência e do conforto moral, no desmascaramento da má-fé, visando uma moral da autenticidade, que não se apoie em ideologias.

Buscando no particular o universal, Bornheim aproxima, nos mostra Gaspar, o teatro no Brasil ao Brasil de Gilberto Freyre em suas reflexões sobre a preguiça como categoria crítica do trabalho forçado e martirizador, conformando o Brasil às exigências do moderno teatro global: “A riqueza do experimentalismo era um tema internacional, e de certa forma as preocupações de base eram as mesmas. Para Bornheim, algumas matrizes fundamentais são recorrentes, como por exemplo a relação entre palavra e corpo, a historicidade, os problemas sociais e a exploração dos caminhos da linguagem no pensamento de autores como Brecht, Antunes Filho, Zé Celso Martinez Corrêa, Augusto Boal, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues e Gerald Thomas. Embora apresente uma diversidade de posicionamentos, a preocupação com a temática é constante”.

A precedência da linguagem nas reflexões sobre as artes em Bornheim tem o sentido de crítica tanto da arte pela arte quanto do realismo sedentário que repete o status quo. Porque não há um sentido último das coisas, Beckett representa para Gerd um ultimatum artístico, como a guilhotina para Julien Sorel e sua meditação de prisioneiro em O vermelho e o negro, o arsênico para Madame Bovary, a epilepsia para o príncipe Muchkine no Idiota, a morte para o Estrangeiro de Camus. Por isso, Gaspar observa: “Foi a partir da constatação de uma atmosfera carente de sentido em diferentes domínios que emergiram as discussões sobre a historicidade e as ideologias; a totalidade e os absolutos; as diversas mudanças de enfoque e ênfase nas atividades artísticas e filosóficas; a avaliação da ruptura com o passado e as tradições; as vanguardas e a valorização das artes populares; as novas inspirações da criatividade artística contemporânea; o problema da normatividade e os rompimentos com as leis da beleza e com as verdades metafísicas; as articulações sociais, políticas e científicas que envolvem o panorama das artes e põem em tela discussões em torno da alteridade, diferença e desconstrução, enfoques que contribuíram para a visualização e o entendimento de um aspecto caro a toda uma geração: o tema da linguagem”.

Porque filosofia e artes se exigem eletivamente, porque encenam a linguagem em vez de apenas utilizá-la como instrumento, e porque cada obra, para existir, necessita do comentário que lhe garante perpetuar-se e durar, a linguagem, em Gerd Bornheim, nos mostra Gaspar Paz, cria um discurso que, ao modo de Barthes, não é epistemológico, mas dramático.

*Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp).

Referência


Gaspar Paz. Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim. Vitória, Edufes, 2021.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Guimarães Lima Juarez Guimarães Valerio Arcary Daniel Costa Marcos Aurélio da Silva Antonino Infranca Vladimir Safatle Everaldo de Oliveira Andrade Berenice Bento Tadeu Valadares Milton Pinheiro André Márcio Neves Soares Henri Acselrad Walnice Nogueira Galvão Ronald Rocha Armando Boito Sandra Bitencourt Vanderlei Tenório José Dirceu Mariarosaria Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Annateresa Fabris Elias Jabbour Celso Frederico Bruno Fabricio Alcebino da Silva Eleutério F. S. Prado Marjorie C. Marona Rubens Pinto Lyra Benicio Viero Schmidt Lincoln Secco André Singer Atilio A. Boron Antônio Sales Rios Neto Paulo Fernandes Silveira Luiz Renato Martins Marcos Silva Remy José Fontana José Geraldo Couto Carla Teixeira Paulo Martins Sergio Amadeu da Silveira Marcus Ianoni Carlos Tautz Michael Roberts Priscila Figueiredo Samuel Kilsztajn Jorge Branco Rafael R. Ioris Flávio Aguiar José Micaelson Lacerda Morais Vinício Carrilho Martinez Yuri Martins-Fontes Antonio Martins Dennis Oliveira Luiz Carlos Bresser-Pereira Manchetômetro Kátia Gerab Baggio Chico Alencar Otaviano Helene Marcelo Módolo Dênis de Moraes Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Daniel Brazil Luiz Werneck Vianna Liszt Vieira Bernardo Ricupero Igor Felippe Santos Fábio Konder Comparato João Carlos Salles Eugênio Bucci Luciano Nascimento Luiz Marques José Luís Fiori Leonardo Sacramento Boaventura de Sousa Santos Henry Burnett Luís Fernando Vitagliano Julian Rodrigues Francisco de Oliveira Barros Júnior Marilena Chauí Bento Prado Jr. Gilberto Maringoni José Raimundo Trindade João Adolfo Hansen Valerio Arcary João Feres Júnior Celso Favaretto João Lanari Bo Rodrigo de Faria Claudio Katz Leda Maria Paulani Tales Ab'Sáber Luiz Roberto Alves Anselm Jappe Daniel Afonso da Silva Manuel Domingos Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Plínio de Arruda Sampaio Jr. Denilson Cordeiro Andrés del Río Matheus Silveira de Souza Slavoj Žižek Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges João Carlos Loebens Bruno Machado Jean Marc Von Der Weid Leonardo Avritzer Francisco Pereira de Farias Érico Andrade Fernão Pessoa Ramos Alexandre Aragão de Albuquerque João Sette Whitaker Ferreira Ronald León Núñez Alexandre de Freitas Barbosa Renato Dagnino José Machado Moita Neto Salem Nasser Flávio R. Kothe Eliziário Andrade Ricardo Fabbrini Maria Rita Kehl Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Bernardo Pericás Gerson Almeida José Costa Júnior Thomas Piketty Marilia Pacheco Fiorillo Lorenzo Vitral Francisco Fernandes Ladeira Tarso Genro Alysson Leandro Mascaro Jorge Luiz Souto Maior Caio Bugiato Andrew Korybko Ricardo Abramovay Leonardo Boff Eleonora Albano João Paulo Ayub Fonseca Heraldo Campos Gabriel Cohn Fernando Nogueira da Costa Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Gilberto Lopes Eugênio Trivinho Osvaldo Coggiola Ari Marcelo Solon Ladislau Dowbor Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Capel Narvai Mário Maestri Michael Löwy Chico Whitaker Airton Paschoa Luiz Eduardo Soares Luis Felipe Miguel Michel Goulart da Silva Afrânio Catani

NOVAS PUBLICAÇÕES