Por OLGÁRIA MATOS*
Prefácio do livro recém-lançado “Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim” de Gaspar Paz.
A obra Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim compõe o pensamento do filósofo como uma cosmogonia, cujo eixo é o estatuto da arte no mundo contemporâneo. Generosa reconstrução do pensamento de um autor que encontrava nas criações espirituais a faculdade superior de atravessar fronteiras, Gaspar Paz identifica, nas reflexões de Gerd Bornheim, o teatro como “obra de arte total”. Bornheim realiza, nas reflexões de Paz, o ideal goethiano da Weltkultur.
Generoso também este livro, porque Gaspar Paz o completa com material inédito do filósofo que frequentou capitais europeias, entre elas Paris e Berlim, cidades que tantas filosofias e artes produziram e o formaram. Eis por que conferências, aulas, áudios, anotações formam um móbile de ideias, contestando o estilo moralizante dos sistemas, a começar pelo tratamento híbrido de questões, a um só tempo epistemológicas e literárias, políticas e estéticas.
Nas palavras de Paz: “O teatro lhe oferece ainda uma posição especial e diferenciada entre os escritores-filósofos que se preocupam e se dedicam em geral mais ao estudo da literatura ou das artes plásticas. É que, além disso, as interpretações sobre o teatro irão permitir que Bornheim aceda a outras atividades artísticas (poesia, música, artes plásticas, cinema etc.) de forma mais livre e sem os comprometimentos ideológicos que às vezes elegem determinadas manifestações artísticas como hegemônicas em relação às demais. Isso fará com que suas críticas assumam posicionamentos abertos. Por isso o jogo entre filosofia e teatro constitui um dos aspectos mais singulares de suas interpretações”.
Gaspar Paz compreende que, para Gerd Bornheim, a arte não é o Outro da filosofia, mas a maneira privilegiada e peculiar de elucidar, através de história e de experimentação, de afetos e paixões, questões intelectuais. Teatralizando a filosofia, Paz indica como Bornheim transita entre a música, o cinema, a literatura, sempre em “situação”, segundo a livre filiação do filósofo à fenomenologia e ao existencialismo de Sartre e Merleau-Ponty, ou à psicanálise de Freud e à imaginação de Bachelard. Gerd transforma assim o palco do teatro em uma cena mental.
Tragédia e filosofia, literatura e ciências, ideologia e mitologia questionam tanto mitos quanto a “ação racional” a partir da leitura derridiana de Bornheim: “O logocentrismo, para Derrida, valoriza a teoria da identidade do ‘outro’ ao ‘mesmo’. Colocada em xeque a identidade, o primeiro alvo será a dialética hegeliana. Constata-se a crise e exige-se a tomada de partido pela “desconstrução” da metafísica. Aqui Heidegger e Derrida coincidem, como disse Bornheim, na forma de pensar o limite da crise.
A saída de Heidegger nesse panorama está na volta a uma origem poética da linguagem. E Derrida radicaliza de certa maneira esse viés a partir da ‘lógica da margem’. Tal olhar para as margens, de acordo com Bornheim, seria aquele ‘apontar ao outro que não ela mesma’ […]. O significado então é encontrado nesse ‘dar margem’ a outras conotações. O desafio do escritor e do filósofo seria escavar essas significações sem se preocupar demasiadamente com a centralidade do texto, do texto acabado e imbuído de todas as suas prestezas comunicativas”.
Neste sentido, o romancista, o dramaturgo, o músico, o cineasta, o cientista e o filósofo ultrapassam um fechamento disciplinar, associados, no pensamento de Bornheim, a uma “pedagogia”, como em Brecht, ou ao “teatro do oprimido” em Boal, mas segundo um embaralhamento entre engajamento e distanciamento, com o que se subverte o universo moral do leitor e do espectador. A relação entre o espírito e a letra se expressa na recusa da boa consciência e do conforto moral, no desmascaramento da má-fé, visando uma moral da autenticidade, que não se apoie em ideologias.
Buscando no particular o universal, Bornheim aproxima, nos mostra Gaspar, o teatro no Brasil ao Brasil de Gilberto Freyre em suas reflexões sobre a preguiça como categoria crítica do trabalho forçado e martirizador, conformando o Brasil às exigências do moderno teatro global: “A riqueza do experimentalismo era um tema internacional, e de certa forma as preocupações de base eram as mesmas. Para Bornheim, algumas matrizes fundamentais são recorrentes, como por exemplo a relação entre palavra e corpo, a historicidade, os problemas sociais e a exploração dos caminhos da linguagem no pensamento de autores como Brecht, Antunes Filho, Zé Celso Martinez Corrêa, Augusto Boal, Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues e Gerald Thomas. Embora apresente uma diversidade de posicionamentos, a preocupação com a temática é constante”.
A precedência da linguagem nas reflexões sobre as artes em Bornheim tem o sentido de crítica tanto da arte pela arte quanto do realismo sedentário que repete o status quo. Porque não há um sentido último das coisas, Beckett representa para Gerd um ultimatum artístico, como a guilhotina para Julien Sorel e sua meditação de prisioneiro em O vermelho e o negro, o arsênico para Madame Bovary, a epilepsia para o príncipe Muchkine no Idiota, a morte para o Estrangeiro de Camus. Por isso, Gaspar observa: “Foi a partir da constatação de uma atmosfera carente de sentido em diferentes domínios que emergiram as discussões sobre a historicidade e as ideologias; a totalidade e os absolutos; as diversas mudanças de enfoque e ênfase nas atividades artísticas e filosóficas; a avaliação da ruptura com o passado e as tradições; as vanguardas e a valorização das artes populares; as novas inspirações da criatividade artística contemporânea; o problema da normatividade e os rompimentos com as leis da beleza e com as verdades metafísicas; as articulações sociais, políticas e científicas que envolvem o panorama das artes e põem em tela discussões em torno da alteridade, diferença e desconstrução, enfoques que contribuíram para a visualização e o entendimento de um aspecto caro a toda uma geração: o tema da linguagem”.
Porque filosofia e artes se exigem eletivamente, porque encenam a linguagem em vez de apenas utilizá-la como instrumento, e porque cada obra, para existir, necessita do comentário que lhe garante perpetuar-se e durar, a linguagem, em Gerd Bornheim, nos mostra Gaspar Paz, cria um discurso que, ao modo de Barthes, não é epistemológico, mas dramático.
*Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp).
Referência
Gaspar Paz. Interpretações de linguagens artísticas em Gerd Bornheim. Vitória, Edufes, 2021.