Formação de um sistema visual brasileiro – parte 4

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Por LUIZ RENATO MARTINS

Em resposta ao golpe de 1964, Hélio Oiticica e seus pares forjaram a Nova Objetividade Brasileira, uma síntese que fundia vanguarda construtiva, cultura popular e uma consciência política radical do subdesenvolvimento

No coração dialógico da nova síntese

Estabelecidas as vias e as formas matrizes que, como vimos nas partes anteriores, convergiram e resultaram no esquema da nova síntese, posta pela Nova Objetividade Brasileira, cumpre delimitá-la e precisar a sua significação no arco maior do processo histórico, ante o que tomará o seu lugar a seguir.

Comecemos, pois, por recordar as linhas gerais e unificar em perspectiva histórica os elementos decisivos da nova razão construtiva. Tanto Pedrosa quanto Oiticica atribuíram, sabe-se, significação mundial a tal realização, ressaltando a sua independência e originalidade, e confrontando a nova síntese poética aqui obtida àquela altura às tendências então dominantes nos países centrais.

Recordemos que foi em resposta aos novos desafios postos pelo desenlace político traumático do nacional-desenvolvimentismo em 1964, que Oiticica passou a propor experiências radicalizadas de participação; denominou-as de “antiarte” e de “arte ambiental”. Nessas últimas, a intensificação dos exercícios sensoriais implicava também aquela da participação ou da práxis ético-cognitiva e política, gerada sinteticamente do “atrito com a realidade”,[i] e projetada numa escala ampla, aquela da síntese histórica maior.

Essa última, de acordo com as afirmações de Hélio Oiticica no texto Tropicália (04.03.1968), deveria estar organicamente comprometida com uma perspectiva periférica e independente baseada nas culturas afro e indígena – as únicas que não “capitularam”.[ii] Todas essas proposições derivam da descoberta etnográfica/ política por Hélio Oiticica, da “razão construtiva popular”, no curso de suas visitas ao morro da Mangueira, segundo relatos de Mário Pedrosa como do próprio Hélio Oiticica.

Ainda conforme Mário Pedrosa, outro dos momentos mais emblemáticos desse processo – e, agora, no caso, com a qualidade também de um resultado –, foi o trabalho B 33 Bólide Caixa 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (1966). Nele Hélio Oiticica homenageou Cara de Cavalo, amigo seu chacinado pela polícia.[iii] Conforme indicava o título, a Homenagem a Cara de Cavalo, subtítulo de B33 Bólide Caixa 18, Poema Caixa 2, constituía parte de uma série. Foi, portanto, ato e resultado de uma nova razão construtiva. Nessa condição, como momento de uma nova síntese poética, a homenagem a Cara de Cavalo marcou época e fez escola, pode-se dizer, para o próprio Hélio Oiticica. Como?

Ao adotar elementos do ambiente – ancorados no contexto e na atualidade histórica –, concebendo um novo sistema construtivo, assim como uma perspectiva épica e abertamente engajada, Hélio Oiticica delineou uma nova poética: a da assim denominada Nova Objetividade Brasileira. Nessa via, explicitou-se a franca superação da fase analítica baseada nos valores plásticos, em favor de uma chave narrativa sintética e realista, proclamada igualmente em seus textos à época, como arte ambiental.

Nesse curso, Hélio Oiticica ressaltou vigorosamente o papel da obra de Antônio Dias, Nota sobre a Morte Imprevista (1965, óleo, acrílica, vinil e plexiglas sobre tecido e madeira, 195 × 176 × 63 cm, col. do artista, op. cit.), dita por ele, como vimos, turning point decisivo para a formulação da Nova Objetividade. O diálogo com Antônio Dias é inseparável do tributo de Hélio Oiticica a Cara de Cavalo. De fato, o bólide de Oiticica, que amadureceu no ano seguinte após o assassinato do marginal chacinado (03.10.1964), bebeu de Nota sobre a morte imprevista, não apenas a intensa dimensão trágica – transferida à caçada movida contra Cara de Cavalo – quanto dialogou com o raciocínio estrutural ou “dialético-pictórico” de Nota sobre a Morte.[iv]

Desse modo, seguindo com precisão os passos do raciocínio estrutural do trabalho de Antônio Dias, Hélio Oiticica retoma não apenas o recurso à figuração – no caso, via a incorporação da foto do amigo cravado de balaços –, mas a articulação entre uma pintura de cores fortes e elementos não pictóricos de diversas ordens. Para isso, inclui nesse bólide, ao lado de pigmentos cromáticos e de uma poesia (à guisa de legenda), também materiais heterogêneos como um prosaico véu de nylon.

Resulta daí um “antiquadro”, nos termos da invenção decisiva que Hélio Oiticica atribui a Antônio Dias em “Tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete” (Item 2 do “Esquema geral…”). Em tal percurso, entretanto, o trabalho de Oiticica adquire um relevo crítico ainda mais enfático, ou seja, ao efetuar a passagem, converte-se numa espécie de “meta-antiquadro”: toma uma forma, aquela do bólide, que aqui compreende um tríptico retomando a seu modo a função votiva da peça pictórica inerente culto fúnebre – tão própria à tradição pictórica ocidental.

A estratégia crítica de Hélio Oiticica dificilmente poderia encontrar ponto mais nevrálgico para demarcar a superação da “pintura de cavalete”. A homenagem a Cara de Cavalo – cujo ícone, antecipa, enquanto efígie de um cadáver, a imagem do Che martirizado nas selvas da Bolívia (08.10.1967) – tem a solenidade trágica e compassivo-piedosa de uma deposição da cruz, como a realizada por Giotto di Bondone (1266-1337), para a Cappella degli Scrovegni (Pádua, ca. 1310).

Hélio Oiticica realçou o achado de Antônio Dias mediante reflexões em moldes e escala similares aos propostos pelo ensaio, já referido, de Mário Pedrosa, acerca das noções de arte ambiental e arte pós-moderna. Neste, Pedrosa contrapôs a noção de “antiarte” (elaborada por Oiticica) ao ciclo da pintura moderna, cuja abertura foi assinalada, segundo Mário Pedrosa, pela emblemática obra de Picasso, Les Demoiselles d´Avignon (1907), momento tão agônico quanto emblemático da chamada “pintura de cavalete”.

Em suma, encontramo-nos nesse ponto não apenas no campo da formação, mas no próprio coração do processo de consolidação de um sistema visual – tecido, segundo Antonio Candido, das implicações recíprocas dos trabalhos entre si, na medida em que um trabalho dialoga, seja por retomada seja por confronto, diretamente com o outro.[v]

A par disso, notemos que o dueto de Hélio Oiticica com Antônio Dias não constituiu um episódio de exceção. De fato, foi parte de um processo geral e maior, cumprido por ambos e ao lado de outros. Fazia-se o trajeto àquela altura coletivamente, como os muitos panfletos e textos de Hélio Oiticica, referindo-se a companheiros de jornada, esclarecem.

Um projeto coletivo

No percurso anterior ao golpe de 1964, é certo que a reviravolta de Hélio Oiticica compreendeu, como vimos, vários passos,  que implicavam a mesma lógica: os Parangolés e sua entrada na Nova Figuração, as obras ambientais, os mantos, os estandartes e as instalações, e a proposição em 1967 do esquema da Nova Objetividade, bem como uma ampla sequência de formulações teóricas e proposições, entre as quais aquelas da “antiarte” e da “arte ambiental”, e mais: a “Declaração de princípios da vanguarda” (janeiro de 1967), o texto “Tropicália” (março de 1968), etc…[vi]

De fato, Hélio Oiticica escrevia com o vigor de um pensador e simultaneamente como um protagonista histórico imbuído do senso de historiador. Registrava cuidadosamente não apenas os seus passos, mas o sentido deles em relação aos dos demais, fazendo da reflexão e do senso histórico-estratégico matéria cotidiana.

O sentido geral dessa torrente de propostas poéticas e reflexivas era eminentemente político. Trocando em miúdos, as proposições de Hélio Oiticica apontavam em termos estéticos para uma nova razão construtiva, de características coletivistas, épicas e multissensoriais. Tratava-se de uma poética “realista”, como ele mesmo reivindicou no “Esquema geral…”.[vii] Por isso é que o novo programa tomou, também por iniciativa do próprio Hélio Oiticica, a denominação de Nova Objetividade Brasileira evocando a Neue Sachlichkeit dos anos 1920 na turbulenta Alemanha de Weimar – que à primeira vista constituíra a encarnação mais combativa e politizada após a voga expressionista.

A denominação pretendia explicitar a aspiração de um patamar crítico superior, relativamente à etapa neoconcreta: o do encontro com a realidade maior. Nesse sentido, são muitos os objetos e instalações que incorporam materiais construtivos característicos das favelas ou até espelhos que refletem – à guisa de um convite a entrarem na obra – o ambiente e o observador.

Na via da Nova Objetividade e na etapa que veio a seguir, as proposições multissensoriais e o mergulho de Oiticica na objetividade combinaram-se portanto à consciência aguda do subdesenvolvimento. Não se tratou de um caminho solitário, mas de um processo que Oiticica partilhou com muitos outros artistas à época, entre os quais se irradiou a força precursora da obra de Antônio Dias, conforme destacado em “Esquema geral…”.

Entre outros artistas, que também deixaram a abstração geométrica, a consciência do subdesenvolvimento tornou-se igualmente o fundamento para uma nova razão construtiva ou síntese poética, que sob formas distintas, expressava variadamente seu nexo central com a condição periférica do país, como eixo de um novo sistema visual. Como especificar as formas decisivas, bem como o sentido próprio e preciso dos objetivos e linhas gerais inerentes ao novo rumo crítico, de corte declaradamente realista?

Consciência do subdesenvolvimento

Ao buscar implicar de modo radical o observador na vivência da criação, a plataforma multissensorial pretendia, de modo geral, superar todos os condicionamentos, inclusive sociais, mediante a experiência estética. As proposições multissensoriais objetivavam combater a alienação e as sequelas psicossensoriais decorrentes da divisão social do trabalho.

Nesse sentido, Hélio Oiticica afirmou em “Posição e programa” (julho de 1966): “Anti-arte seria uma completação da necessidade coletiva de uma atividade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as posições metafísicas, intelectualistas e esteticistas – não há proposição de um elevar o espectador a um nível de criação, a uma meta-realidade, ou impor-lhe uma ideia ou um padrão estético correspondente àqueles conceitos de arte; mas de dar-lhe uma simples oportunidade de participação para que ele ache aí algo que queira realizar – é pois uma realização criativa o que propõe o artista, realização esta isenta de premissas morais, intelectuais ou estéticas – a anti-arte está isenta disso – é uma simples posição do homem nele mesmo, e nas suas possibilidades criativas vitais”.[viii]

E ainda, no “Programa ambiental”, também de julho de 1966 – justamente, em meio ao processo de constituição da Nova Objetividade Brasileira –, Oiticica reiterou: “Antes de mais nada, devo esclarecer que tal posição só poderá ser aqui uma posição totalmente anárquica, tal o grau de liberdade implícito nela. Tudo o que há de opressivo, social e individualmente, está em oposição a ela – todas as formas fixas e decadentes de governo, ou estruturas sociais vigentes, entram em conflito – a posição social-ambiental é a partida para todas as modificações sociais e políticas, ou ao menos o fermento para tal; é incompatível com ela qualquer lei que não seja determinada por uma necessidade interior definida, leis que se refazem constantemente – é a retomada da confiança do indivíduo nas suas intuições e anseios mais caros. Politicamente, a posição é a de todas as autênticas esquerdas no nosso mundo –, não as esquerdas opressivas (das quais o Stalinismo é exemplo), é claro. Jamais haveria a possibilidade de ser de outro modo”. [ix]

De modo análogo, em “Aparecimento do Suprasensorial” (novembro-dezembro de 1967), texto escrito cerca de sete a oito meses após o “Esquema geral…”, Hélio Oiticica esclareceu: “Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma passagem para experiências cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada participador: faço questão de afirmar que não há a procura, aqui, de um novo condicionamento para o participador, mas sim a derrubada de todo condicionamento para procura da liberdade individual, através de proposições cada vez mais abertas, visando fazer com que cada um encontre em si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade interior, a pista para o estado criador – seria o que Mário Pedrosa definiu profeticamente como ‘exercício experimental da liberdade’. É inútil querer procurar um novo esteticismo pelo objeto, ou limitar-se a ‘achados’ e novidades pseudoavançadas através de obras e preposições. Quando criei e defini a ideia de ‘nova objetividade’, foi para definir um estado característico dessa evolução verificada nas vanguardas brasileiras, não para estratificar conceitos e criar novas categorias: objeto e arte ambiental”.[x]

Fica evidente que a guinada multissensorial não se dissociava de uma reflexão sobre a totalidade histórica. Traduzia-se, sim, numa consciência aguda e nova da condição periférica do Brasil no quadro maior do sistema mundial de produção e circulação de mercadorias. Declarações e anotações, multiplicadas nesse sentido, podem ser encontradas não apenas entre os escritos de Oiticica, mas também nos de Waldemar Cordeiro. Tais anotações eram acompanhadas de uma nova estratégia poética que recorria a materiais emblemáticos do subdesenvolvimento, sob o crivo de uma consciência crítica agudizada e desvencilhada do projeto desenvolvimentista.

Daí a conclusão já referida, cuja articulação histórica com a resposta ao golpe de 1964 explicita-se cabalmente no texto já citado ao início, ao qual peço licença para retornar, como a um mote rítmico ou refrão: “Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc”.[xi]

Nesse percurso reflexivo, o uso dos materiais evocativos do subdesenvolvimento vinha articulado a procedimentos construtivos de montagem e sintaxe, cujo desenvolvimento provinha de antes, como vimos. Tais materiais também traziam alusões ao conflito de classes, ressaltado pelas distinções raciais. Exemplos do novo enraizamento político e social eram os vigorosos objetos popcretos[xii]de Waldemar Cordeiro e ainda uma poesia, admiravelmente sintética, de Roberta Camila Salgado, incorporada por Oiticica, num escrito de mão, incluído na instalação Tropicália (1967):

Caixa
Zinco
Papelão

Areia
Terra
Cimento

Madeira
Latão
Água

Construção[xiii]

Participação – uma ideia em progresso

Em resumo, o desenvolvimento da noção de “participação”, originalmente neoconcreta, pode ser tomado como um dos elementos emblemáticos e decisivos do processo de resistência que respondeu ao golpe. A partir de 1964, a noção foi projetada numa nova perspectiva estética e política. O desenvolvimento deu-se de modo coletivo e assumiu formas variadas.

No caso de Hélio Oiticica, uma série de trabalhos-instalações – tais como B54 Bólide Área 1 (1967, areia, madeira), Tropicália (1967, plantas, areia, pedras, araras, aparelho de televisão, tecido e madeira), Bólide Cama 1, Suprasensorial (1968, madeira, tecido, estopa e nylon, 75 × 86 cm, col. G. Chateaubriand/ Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), The Eden Plan – an Exercise for the Creleisure and Circulations (1969, para Whitechapel Gallery), além da série Ninhos (1969) – desenvolveram a articulação simultânea de proposições multissensoriais com a temática do subdesenvolvimento, materializando uma nova noção de participação, agora indissociável da situação tópica e do contexto social.

Passo adiante – luta: faça você mesmo

No caso de Antônio Dias – um artista, recorde-se, da geração seguinte à de Oiticica e Cordeiro, mas cuja obra se tornou desde a Nova Figuração um dos carros-chefes dessa discussão –, é interessante notar como a instalação Faça Você Mesmo: Território Liberdade/ Do it Yourself; Freedom Territory (1968, fita adesiva e tipografia sobre piso, 400 × 600 cm, col. part.), acompanhada das peças To the Police (1968, bronze, 3 peças, aprox. 7,5 × 12,5 cm, 9 × 14,5 cm e 8 × 11 cm, col. part.), dispôs-se de modo original e independente, abrindo uma nova senda ante o conjunto de instalações contemporâneas de Hélio Oiticica.

Assim, Faça Você Mesmo… trouxe uma dimensão menos sensorial e mais conceitual, do que os trabalhos de Hélio Oiticica acima referidos, e que se afirmaria na obra de Dias nos anos seguintes. Ao mesmo tempo, também implicava uma perspectiva mais violenta e combativa, possivelmente correlata como forma objetiva[xiv] às grandes lutas operárias e estudantis de 1968.

É fato que os aspectos e traços do combate e da resistência popular não estavam de modo algum ausentes da perspectiva de Hélio Oiticica, que, tal como defendia a violência da revolta – em sua homenagem a Cara de Cavalo, chacinado no ano anterior –, também afirmaria em 1966: “Toda a grande aspiração humana de uma “vida feliz” só virá à realidade através de grande revolta e destruição: os sociólogos, políticos inteligentes, teóricos que o digam! O programa do Parangolé é dar “mão forte” a tais manifestações. Sei que é isto uma afirmação perigosa, de dois gumes, mas vale a pena. (…) Não sou pela paz; acho-a inútil e fria – como pode haver paz, ou se pretender a ela, enquanto houver senhor e escravo! (…) / O princípio decisivo seria o seguinte: a vitalidade, individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar de subdesenvolvimento e caos – desse caos vietnamesco é que nascerá o futuro, não do conformismo e do otarismo. Só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade”.[xv]

No caso de Antônio Dias, a originalidade de Faça Você Mesmo… ante o aspecto multissensorial, tão presente para Hélio Oiticica, passou a abranger uma ideia de participação que implicava, entre outros aspectos novos como a retomada do quadriculado em nova chave, a ideia sistematizada de combate. Tratava-se da formalização estética de um chamamento análogo ao que muitos grupos de estudantes insurretos faziam à época. De fato, Faça Você Mesmo… implicava qualidades extrassensoriais, ou até uma análise dialética implantada na práxis, como requisitos.

O trabalho nasceu em primeiro lugar de nova operação planejada ou metódica de sequestro e apropriação: o alvo da hora passou a ser a asséptica e pacata arte minimalista, muito praticada àquela altura nos Estados Unidos ao modo dos bucólicos exercícios lógicos da filosofia da linguagem. No terreno ocupado a critério do participante, Faça Você Mesmo: Território Liberdade… retomava, mas em nova chave, aspectos da abstração ou do desapego a todo particularismo.

Agora, porém, combinados a uma proposta de luta, os elementos de abstração difundiam algumas premissas de práticas extrassensoriais: sistematização e disciplina do raciocínio, disposição combatente e para integrar uma organização, consciência precisa da totalidade histórica como realidade hostil, mobilidade incessante etc., enfim, qualidades necessárias a um agitador-combatente ou guerrilheiro.

Num dos seus mais emblemáticos e trágicos estandartes, Hélio Oiticica homenageou, em 1968, o anti-herói anônimo, um duplo de Cara-de-Cavalo, mas cujo sacrifício, à diferença do último, restava anônimo. Para tanto, Hélio Oiticica usou a imagem do cadáver de Alcir Figueira da Silva, “que ao se sentir alcançado pela polícia […] jogou fora o roubo e suicidou-se”.[xvi] No estandarte, a imagem em alto contraste do cadáver de Alcir encima a divisa: “Seja marginal/ seja herói”.

Por sua vez, Antônio Dias montou sua parte no dueto com Hélio Oiticica, ao propor, em Faça Você Mesmo…, uma espécie de método ou manual do combatente anônimo. Nesse sentido, de fato, as duas propostas, em termos próprios às artes visuais, inserem-se no modo-panfleto de outras proposições e chamamentos combatentes como o Manual do Guerrilheiro Urbano (1969), de Carlos Marighella (1911-69). Na raiz do gênero, estava um texto, de abril de 1967, do Che, que correu mundo: Crear dos, tres… muchos Viet-Nam, es la consigna,[xvii] e que também viria a motivar um filme super 8, de Antonio Dias, Illustration of Art II (1971).

O senso do combate – de que a arte e as suas operações se dão em meio a práticas de poder e são indissociáveis da luta –, e do revezamento de posições, permeia toda a instalação. Assim, em Faça Você Mesmo: Território Liberdade / Do it Yourself: Freedom Territory (1968), a prática de arte enquanto produção e a prática de ver enquanto recepção estética não se distinguem. O observador está instalado no que vê e vê ao se instalar.

Ambas as ações aparecem entremeadas, ao se experimentar uma porção de piso demarcada e semiquadriculada com uma fita adesiva, objeto portátil, fácil de encontrar no comércio corrente e manejado, no caso, como uma arma de bolso. Ao lado, a palavra de ordem, que serve também de título, propõe que o observador faça, ele próprio, a demarcação territorial que é a de construir um território livre.

Em suma, o trabalho e sua experiência, o ato, o produto e o seu uso se combinam numa síntese única. Qualquer similitude com a guerrilha ou as guerras de libertação não é mera coincidência. Algumas pedras, com a dimensão de armas de mão, vinham incluídas no território da arte, assinalado na legenda-título como “território livre”. As pedras traziam – pendurada de cada uma – uma plaqueta de metal evocando as peças de identificação que os soldados trazem ao pescoço.

Nas plaquetas, signo militar corrente de origem, do tipo sanguíneo etc, vinha escrito em inglês: to the police (para a polícia) – indicação de finalidade e sugestão de uso. O título que vinha em duas línguas mostrava a obra, com disposição internacionalista, e pronta desde logo para circulação internacional. De fato, o tempo era o da solidariedade espontânea entre os povos e do grande fervor anticolonial e anti-imperialista, compartilhado crescentemente também pelos movimentos insurgentes de operários e estudantes nas economias do centro, ligadas num grau ou noutro ao imperialismo.

Coisas arrebatadas aos outros, mediante inversão e ironia, haviam sido utilizadas como armas correntes do artista, desde os tempos da Nova Figuração. Se – como a disposição das pedras e a demarcação do chão tornavam evidente – os pontos de vista da liberdade e do combate, compartilhando a situação, determinavam-se reciprocamente, ocorria o mesmo quanto ao modo de uso de linguagem.

Assim a própria noção de prática artística dispunha-se, segundo Antônio Dias, em paralelo com uma pedrada contra as forças da ordem – do tipo das pedras do pavimento ou das bolas de gude lançadas contra a cavalaria, nos idos de 68, ou mais recentemente, dos arremessos no curso de uma “intifada”. Para além dos materiais e das circunstâncias, fica como máxima de tal construção que a liberdade e a organização, vale dizer, a construção simbólica, todas essas práticas, em suma, não são dissociáveis da luta. Logo, tanto quanto uma estrutura, a obra opera também como manifesto programático.[xviii]

*Luiz Renato Martins é professor-orientador do PPG em Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).

Para ler a segunda parte da série clique em https://aterraeredonda.com.br/formacao-de-um-sistema-visual-brasileiro-parte-2/

Para ler a terceira parte da série clique em https://aterraeredonda.com.br/formacao-de-um-sistema-visual-brasileiro-parte-3/

Notas


[i] Paulo Eduardo ARANTES, Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira: Dialética e Dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 13..

[ii] Para as afirmações de Oiticica, já citadas, ver H. OITICICA, Hélio Oiticica, catálogo, org. Guy Brett et. al. (Rotterdam, Witte de With, Center for Contemporary Art, fevereiro-abril de 1992; Paris, Galerie nationale du Jeu de Paume, junho-agosto de 1992; Barcelona, Fundació Antoni Tapiés, outubro-dezembro de 1992; Lisboa, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, janeiro-março de 1993; Mineápolis, Walker Art Center, outubro de 1993-fevereiro de 1994; Rio de Janeiro, Centro de Arte Hélio Oiticica, setembro de 1996-janeiro de 1997), Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/ Projeto Hélio Oiticica, 1996, pp. 124-6.

[iii] Cara de Cavalo era o apelido de Manoel Moreira (1941-1964) que subitamente se tornou o marginal mais procurado do Rio, após uma emboscada em 27.08.1964, seguida de tiroteio no qual seu perseguidor, o detetive Le Cocq, morreu. Le Cocq foi o chefe de uma milícia policial que constituiu o embrião dos muitos grupos de extermínio, ditos também “esquadrões da morte”, que até hoje infestam as muitas periferias de cidades brasileiras, cometendo inúmeros massacres raramente investigados, de jovens pobres, principalmente negros.

[iv] Cf. H. OITICICA, “Esquema geral…”, ver “Item 2”, s. n., op. cit..; repub. in H. OITICICA, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 111-12.

[v] Ver, para as noções de formação e sistema, Antonio CANDIDO, “Prefácio da Segunda Edição”, in Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos 1750-1880, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006, pp.17-22; idem, “Variações sobre temas da Formação” (reunião de entrevistas) in idem, Textos de Intervenção, seleção, apresentação e notas de Vinicius Dantas, São Paulo, Livraria Duas Cidades/ Editora 34, 2002, pp. 93-120.

[vi] Ver M. PEDROSA, “Arte ambiental…”, in idem, Dos Murais…, op. cit.; e in idem, Acadêmicos…, op. cit.. Ver também H. OITICICA, “Seleção de textos 1960-1980”, in idem, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 32-202.

[vii] A caracterização da Nova Objetividade como “processo dialético” e “realista”, reivindicada por Oiticica, apoia-se em formulação do crítico Mário Schemberg (1914-1990). Contribuem também para a eclosão deste movimento, segundo Oiticica, ao lado da sua própria “Teoria do Parangolé”, as ideias de quatro críticos brasileiros que ele refere: Ferreira Gullar (1930-2016), Frederico Morais (1936), Mário Pedrosa e o citado Mário Schemberg. Ver o tópico “Conclusão”, in H. OITICICA, “Esquema…”, op. cit.; repub. in H. OITICICA, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 118-20.

[viii]  Cf. H. OITICICA, “Posição e Programa”, 1966, in idem, Hélio…, catálogo, op. cit., p. 100.

[ix] Cf. H. OITICICA, “Programa Ambiental” in idem, Hélio…, catálogo, op. cit., p. 103.

[x] Cf. H. OITICICA, “Aparecimento do Suprasensorial” in idem, Hélio…, catálogo, op. cit., pp. 127-30.

[xi] Cf. H. OITICICA, “Tropicália”, 04.03.1968, op. cit.; repub. in idem, Hélio…, , op. cit., p. 124.

[xii] A mostra Pop Brasil: Vanguarda e Nova Figuração, 1960-70 (curadoria Pollyana Quintella e Yuri Quevedo, São Paulo, Pinacoteca Contemporânea, 31.05 – 05.10.2025) e o amplo catálogo correspondente (São Paulo, Pinacoteca de São Paulo, 2025, 272 pp.) trazem alguns exemplos dessa série de objetos de Cordeiro, emblemáticos da convergência programática de objetivos e procedimentos, verificados na NOB, enquanto passo adiante e construção sintética comum dos egressos/dissidentes das duas linhas principais da abstração geométrica.

[xiii] A poesia de Roberta Camila Salgado foi copiada por Oiticica, à mão, e incluída na instalação de Tropicália. Todas as palavras foram grafadas em caixa-alta, porém o termo “Construção”, embaixo de todas, vinha em formato maior, fazendo, ao mesmo tempo, de conclusão e, possivelmente, título conclusivo da poesia. Não vi Tropicália em sua montagem original, de 1967, no MAM-RJ, mas várias fotos mostram a placa branca (de madeira ou compensado?), com a poesia, encostada a um vaso, com um xaxim e um pé de guaimbé, posto na areia. Copiei o manuscrito, quando o vi numa remontagem de Tropicália, na mostra Além do Espaço/ Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Centro de Arte Hélio Oiticica, agosto-outubro de 2001.

[xiv] Para a noção de “forma objetiva, ver L.R. MARTINS,“Forma objetiva — história resumida de uma luta crítica” in A Terra É Redonda, 23/11/2024, disponível in https://aterraeredonda.com.br/2024/11/23/. Ver também idem, “Muito além da forma pura” in A Terra É Redonda, 05/03/2021, disponível in https://aterraeredonda.com.br/muito-alem-da-forma-pura/.

[xv] Cf. H. OITICICA, “Posição ética” (julho de 1966) in idem, Hélio Oiticica – Museu é o Mundo, org. César Oiticica Filho, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2011, pp. 84-85.

[xvi] No texto em que relata as circunstâncias do suicídio de Alcir Figueira da Silva, Oiticica explica que sua homenagem ao anti-herói anônimo assume o caráter exemplar de uma revolta, alinhada com “as mais heroicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heróico, que é o de Guevara”.Cf. H.OITICICA, “O heroi anti-herói e o anti-herói anônimo” (25.03.1968) [doc 0131, Projeto HO, pp. 2-3], in Frederico MORAIS, “Artes Plásticas”, in Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 10.04.1968, 2ª. seção, p. 3., apud Luciano FIGUEIREDO (org.), Hélio Oiticica: Obra e Estratégia, catálogo de exposição (MAM-RJ, maio 2002), Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / MAM-RJ, 2002, p. 28. O texto foi escrito originalmente para a exposição O Artista Brasileiro e a Iconografia de Massa (org. Frederico Morais, abril-junho 1968, Escola Superior de Desenho Industrial, Rio de Janeiro).

[xvii] Ver Ernesto Che GUEVARA, Oeuvres III: Textes Politiques, Paris, FM/Petite Collection Maspero, 1971, pp. 297-312. Originalmente, o texto foi publicado em 16.04.1967, num suplemento especial da revista Tricontinental, La Habana, OSPAAAL, abril-maio, 1967.

[xviii] Uma última observação: posteriormente, o sistema visual brasileiro regrediu e perdeu coesão sob o manto do mal-estar, pulverizando-se em “políticas de autores” e práticas concorrenciais ligadas à instalação de um mercado de arte. Mas esse é um outro capítulo aberto pelo chamado “milagre (econômico) brasileiro” na esteira do AI-5.


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Estoicismo e mindfulness
16 Dec 2025 Por PAULO VITOR GROSSI: Considerações sobre técnicas mentais para a sobrevivência humana no século XXI
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Por uma escola com exigência intelectual
19 Dec 2025 Por JEAN-PIERRE TERRAIL: Prefácio do autor
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A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
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Escalas da liberdade: Hegel e a questão social do nosso tempo
18 Dec 2025 Por TERRY PINKARD: Prefácio ao livro recém-lançado de Emmanuel Nakamura
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A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
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Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
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Devastação materna – um conceito psicanalítico
16 Dec 2025 Por GIOVANNI ALVES: Comentário sobre o livro recém-lançado de Ana Celeste Casulo
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Manuela D’Ávila no PSol
20 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: A mudança de Manuela para o PSol sinaliza um projeto que visa derrotar a extrema-direita e construir uma alternativa de esquerda para além da conciliação de classes do governo Lula
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A contradição entre o discurso nacionalista e a prática neoliberal do governo Lula
13 Dec 2025 Por VICTOR RIBEIRO DA SILVA: A escolha política por um neoliberalismo de "rosto humano", visível no Arcabouço Fiscal, no leilão do petróleo equatorial e na hesitação com a Venezuela e a Palestina, expõe uma soberania apenas discursiva, que evita confrontar os pilares do poder
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Lições sobre o declínio hegemônico
20 Dec 2025 Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES: O declínio hegemônico dos EUA segue o padrão histórico descrito por Paul Kennedy, onde o esgotamento econômico pelo sobreinvestimento militar e a erosão do consenso global aceleram o fim da Pax Americana
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Amoreira e outros poemas
15 Dec 2025 Por RAQUEL NAVEIRA: Poemas
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José Luiz Datena na TV Brasil?
19 Dec 2025 Por DENNIS DE OLIVEIRA: A escolha de Datena reflete a instrumentalização da TV Brasil, onde a lógica comercial e a busca por capital político suplantam a missão de construir uma esfera pública plural e distante do sensacionalismo
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Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
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A dança de guerra do Ocidente
17 Dec 2025 Por GILBERTO LOPES: A dança de guerra baseada na expansão da OTAN e na demonização da Rússia ignora os avisos históricos, arriscando uma conflagração final em nome de um mundo unipolar que já se mostra falido
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Você existe mesmo?
16 Dec 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: Ainda existe o leitor hegeliano, aquele que inicia o dia com o jornal como uma "oração matinal" racional, em contraste com a audiência atual, fugaz e emocional, ou com os algoritmos que agora consomem notícias?
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