Fragmentos de um diário na pandemia

Marcelo Guimarães Lima, Nas Veredas - Grande Sertão, pintura digital, 2023
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Por AFRÂNIO CATANI*

Sonhos, imagens, excertos, chuvas e rapinagens

1.

Durante a pandemia, em especial nos meses iniciais de confinamento, como tinha condições de fazê-lo, fiquei em casa, isolado. Li muito e escrevi mais ainda. Talvez não seja um grande exagero afirmar, como Marguerite Duras, que “escrever era a única coisa que preenchia minha vida e a encantava. Foi o que fiz. A escrita jamais me abandonou”. (Escrever, Ed. Relicário).

Escrevi de tudo bastante: artigos acadêmicos, capítulos de livros, orelhas, prefácios e posfácios, comunicações para congressos e dezenas de textos para o site A Terra é Redonda. Além disso, mantive uma espécie de diário, em que tomava notas, fazia reflexões, rememorava, transcrevia aquilo que julgava relevante das leituras de livros, artigos de revistas e de jornais, sem qualquer ordem ou hierarquia.

O que apresento a seguir são alguns fragmentos desse conjunto de notas. Uma vez mais cito Marguerite Duras, outras linhas de seu Escrever, pois foi essa a sensação que vivenciei e não soube exprimir como ela, com o brilhantismo usual: “Se soubéssemos alguma coisa daquilo que vamos escrever antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena. Escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever – só ficamos sabendo depois – antes, é a pergunta mais perigosa que podemos fazer. Mas também é a mais comum. A escrita chega como o vento, é nua, é de tinta, é a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada mais, exceto ela, a vida”.

 

2.

Mestre dos Mestres
Walter Lellis Siqueira me contou que ingressou em Letras na USP em 1964 e, no primeiro ano, teve aulas com Antonio Candido. O mestre disse aos estudantes algo que o jovem Walter nunca esqueceu: “Quem conhece as verdadeiras causas dos males do mundo não pode ser de direita”.

Fabulador
“Narrar significa mentir, e narra melhor quem mente melhor” – Domenico Starnone, Confidenza [Segredos].

Chove chuva
Por volta das 11:30hs minha filha e eu nos deitamos de atravessado na cama com os travesseiros dobrados. Melhora nosso campo de visão. Concentramos nossos olhares na janela e vemos a água escorrer torrencialmente pelo beiral. Pego o celular e baixo a estonteante voz de Miriam Makeba cantando “Chove Chuva” de Jorge (ainda) Ben, gravada em 1963. Nos deliciarmos. My daughter só conhecia “Pata Pata”, cantada por ela. No embalo escutamos outra composição de Ben, “Mas que Nada”, com a mesma intérprete. Instantes maravilhosos, uns poucos minutos. Aí, ficou só um fiapinho no beiral, a garoinha chata, e a vida seguiu.

Clarice L.
“Escrevo para não morrer.”

Tatoo
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Os versos de Antonio Machado estão cravados no belo corpo negro de L.W.

Ouvindo Elza
“Do cóccix até o pescoço”, genial! Acho que concordo com ela que a Mocidade de Padre Miguel é “a escola de samba que bate melhor no carnaval”.

Angústia
Marilene Felinto, em Passaporte português, escreveu: “…tento resolver a angústia com estas armas inúteis de papel e tinta, como já disse Graciliano Ramos”.

Lucão
No Instagram de uma amiga leio poema de Lucão, escrito num muro caiado qualquer:
Sentir saudade
é andar para trás
sem retroceder
é um andar charmoso
que só quem ama
sabe fazer

10 minutos
Débora Levy, em O homem que viu tudo, conta que o fotógrafo escocês Iain McMillan tinha, em agosto de 1969, às 11h30, colocado a escada ao lado da faixa de pedestres da Abbey Road, enquanto um policial tinha sido pago para organizar o trânsito. McMillan teve 10 minutos para tirar a célebre foto de John, Paul, George e Ringo.

Hai-Kais de Alice Ruiz
Primavera                       Rede ao vento
até a cadeira                  se retorce de saudade
olha pra janela             sem você dentro

O outro Afrânio
No dia primeiro de fevereiro de 1974 houve um incêndio de grandes proporções em São Paulo num edifício chamado Joelma, localizado a pouco mais de um quilômetro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na avenida 9 de Julho, onde eu estudava, trabalhava e militava. O saldo do sinistro constitui-se em verdadeira tragédia: 187 mortos e mais de 300 feridos. Eu estava trabalhando no Rio de Janeiro, fazendo pesquisa para a tese de doutorado de Sergio Miceli, e voltei a São Paulo exausto, na madrugada de primeiro para dois de fevereiro. Nada sabia sobre o incêndio, num período plúmbeo da ditadura militar, com censura e tudo o mais. Cheguei em casa, tirei o telefone do gancho (não existiam celulares…), só o recoloquei no meio da tarde e saí de casa. Conhecia quase todo o mundo na FGV, professores, funcionários, alunos. Eu era representante de classe, circulava por todos os lados.

Quando cheguei na escola, me olhavam com espanto, recebi vários abraços, me disseram que haviam telefonado para mim inúmeras vezes e só dava ocupado… Aos poucos fui entendendo a situação: dentre os que perderam a vida havia um aluno que trabalhava de dia e estudava à noite – acho que ele era meio quieto, talvez tímido. Fazia o Curso em Especialização em Administração para Graduados (CEAG), lato sensu. Era o Afrânio Araújo Branquinho, irmão de Ângela Maria e de Aírton, filho de Teodora Araújo Branquinho e de José Vilela Branquinho.

Bob
Robert Mitchum falou, em algum lugar: “A profissão de ator é dura, penosa, ingrata. Muitas vezes nossa arte não é compreendida pelo público, pelos críticos. Nossa privacidade é invadida, nossa sensibilidade posta à venda numa bilheteria de cinema ou teatro. Isso sem falar dos horários, das madrugadas de filmagens. E depois, a decadência, o esquecimento. Mas, enfim, é melhor do que trabalhar”.

Toujours
“Sempre quis ser apenas o homem que escreve” – Ricardo Piglia. Um dia na vida – os diários de Emilio Renzi.

O que falar quer dizer
“As palavras são metade de quem fala e metade de quem as ouve”, escreveu Montaigne, nos Ensaios.

Mangiare
Em Old Compton Street, no Soho, em janeiro de 1989, o restaurante italiano chamado Pollo estava sempre cheio de alunos da faculdade de arte St. Martins, ali pertinho, pois “…oferecia a seus clientes leais pobres uma refeição de 3 pratos por 5 libras” – Debora Levy, O homem que viu tudo.

Paixão
“A paixão é uma romã a cuspir faíscas de rubi”. – Ledusha

Peremptório
Para Nelson Rodrigues, “a verdadeira posse é o beijo na boca”.

Baculejo
O pesquisador negro Edson Lopes Cardoso disse que várias vezes “tomou um baculejo” – passou por humilhante revista policial.

Nara Leão
“Todos juntos somos fortes
somos flecha e somos arco
todos nós no mesmo barco
não há nada para temer”
Chico Buarque, “Saltimbancos”

My God!
“Por ano, cada contribuinte britânico paga 58 centavos de dólar para sustentar a família real” – Folha de S. Paulo, 06.02.2022.

Mais chuva
Aline vem me instigando nas últimas sessões acerca de meus sonhos. Claro que eu os tenho. Como durmo pouco e em ciclos curtos, talvez tais sonhos possam ser comparados às pequenas histórias ou episódios de Short Cuts (1993), dirigido por Robert Altman. Em geral, depois que desperto, tenho dificuldade para lembrar o que sonhei. Outro dia acordei com um barulho estranho e pensei, imediatamente, que meu pai, que se foi em 1993, estava datilografando em sua velha máquina de escrever. Recordei-me de versos de dois poemas de Borges: “La mojada/tarde me trae la voz deseada,/de mi padre que vuelve y que no ha muerto” (“La lluvia”); “El tiempo/es olvido y es memoria” (“Milonga de Albornoz”). Ainda, meio zonzo, percebi que pequenas lágrimas molhavam minha camisa de dormir.

Ay amor…
em minha cama vegetam flores
de amor – não – colhidos
cada dobra de meu lençol-mortalha
revive carícias despedidas.
meu travesseiro grita nuvens roliças
de coxas desfeitas de seios beijados.
um cobertor esquenta um sexo
esquecido, desamparado.
e no tormento da insônia desabrigada
espectros de omissão
semeiam o deserto do meu leito,
procuram impossíveis húmus
de carinhos anulados
“poema 60” (1962) – Sérgio Muniz. En San Antonio y São Paulo ou…

Guerra
Prêmio NobeldeLiteratura,Wislawa Szymborska entende que “Depois de toda guerra/alguém tem que fazer a faxina (…)/não é fotogênico/e leva anos”.

Easy rider ?
A Polícia Federal me entregou um novo passaporte com validade até 2030. Será que aos 77 ainda conseguirei viajar? Espero que não sobrem anos nesse documento…

Final feliz
Como Orson Welles nos disse, “se queremos um final feliz, depende de onde paramos a história” – Debora Levy. O custo de vida.

*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.


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