A invenção da democracia como valor universal

Imagem: Gareth Nyandoro
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Por MARCO MONDAINI*

Trecho selecionado pelo autor do livro recém-lançado

Se pudesse indicar a data mais marcante da trajetória política de Enrico Berlinguer como secretário-geral do Partido Comunista Italiano – o momento em que cometeu a heresia mais importante do ponto de vista das suas repercussões para o socialismo democrático – esta seria o dia 3 de novembro de 1977.

Com a presença de centenas de dirigentes comunistas soviéticos e de todas as partes do mundo, eram comemorados, então, os sessenta anos da Revolução de Outubro de 1917, em Moscou – capital da União Soviética e do movimento comunista internacional.

Na ocasião, Enrico Berlinguer proferiu um breve discurso que impactou fortemente a audiência e entrou para a história como um marco da crítica ao caráter despótico do “socialismo de caserna” realmente existente no lado de lá da “cortina de ferro”.

Num ambiente muito pouco favorável às teses que vinham sendo desenvolvidas pelo Partido Comunista italiano, Enrico Berlinguer lançou o desafio relativo à necessidade do socialismo ser construído com base na garantia das liberdades individuais e coletivas. Mais ainda, avançava-se a importância de um projeto que fosse capaz de recuperar tais liberdades perdidas no curso das experiências revolucionárias socialistas do século XX.

Para tanto, Enrico Berlinguer rompe com a tradicional forma de pensar a “questão democrática” no interior dos partidos e organizações comunistas, rejeitando a sua submissão à “questão de classe” e o consequente estabelecimento de uma relação de oposição entre dois tipos de democracia: “democracia burguesa” e “democracia operária”.

Então, em mais um exemplo demonstrativo do seu caráter herético dentro do movimento comunista, Enrico Berlinguer pronuncia a expressão que desagradaria intensamente a Nomenklatura soviética e dos demais partidos comunistas, presentes em Moscou no dia 3 de novembro de 1977: “democracia, valor universal”.

Depois de, protocolarmente, na primeira parte do seu discurso, saudar “os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro” como o cumprimento de “uma virada radical na história”, que “rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo”, e reafirmar a importância da “razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada, Enrico Berlinguer, na segunda parte da sua intervenção, sai em defesa da necessidade de respeito às inúmeras vias de construção do socialismo seguidas por cada um dos partidos comunistas, pois “a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento”, e critica a existência de “partidos que guiam e partidos que são guiados”, pois a solidariedade internacionalista “requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não ingerência nos assuntos internos”.

Passada a fase protocolar das saudações iniciais e o anúncio discordante sobre a importância da autonomia e da não ingerência, Berlinguer chega ao ápice do seu discurso, o qual exigiria dos seus tradutores um verdadeiro tour de force para, ao mesmo tempo, distorcer e amenizar o conteúdo fortemente crítico nele contido: “O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia”.

“A experiência realizada nos levou à conclusão – assim como aconteceu com outros partidos comunistas na Europa capitalista – de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista”.

“Eis porque a nossa luta unitária – que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental – está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal” (BERLINGUER, 1989, p. 29-30).

Para a quase totalidade dos presentes à celebração dos sessenta anos da Revolução de Outubro de 1917, a defesa da democracia como valor universal, das liberdades pessoais e coletivas, do caráter não ideológico do Estado e do pluralismo na vida social, cultural e ideal como fundamentos de uma nova e original sociedade socialista a ser construída, representavam um conjunto de princípios contrários ao sistema socialista efetivamente em funcionamento, bem como destoantes da concepção marxista-leninista que embasava teoricamente tal sistema.

Assim, se antes do discurso do reconhecimento do “valor universal da democracia”, Enrico Berlinguer já era visto com desconfiança por Leonid Brejnev e a burocracia comunista soviética, depois do seu pronunciamento, ainda mais no contexto no qual ele veio à tona, o secretário-geral do PCI será observado com uma desconfiança ainda maior, quase como uma persona non grata no mundo comunista.

Não obstante isso, Enrico Berlinguer e o Partido Comunista Italiano nunca sofreram um processo de “excomunhão” por parte da União Soviética e do seu partido comunista, da mesma forma que o secretário-geral do PCI nunca levou o seu partido a uma ruptura formal em relação ao movimento comunista internacional liderado pelos soviéticos.

Nas palavras do professor da Escola Normal Superior de Pisa, Michele Battini, uma das principais características da “anomalia” de Berlinguer resulta exatamente da “permanência de uma lealdade ao alinhamento comunista internacional” – lealdade muito crítica, mas lealdade –, ao mesmo tempo em que se mantinha firme “a limpidez da sua escolha democrática” (BATTINI, 1994, p. 13).

Em outras palavras, em inúmeras ocasiões já vistas no presente livro, Enrico Berlinguer “esticou a corda” do dissenso em relação ao “socialismo realmente existente”, sem nunca rompê-la, porém, sem nunca abrir mão também dos princípios e valores democráticos defendidos durante os quase quinze anos em que liderou o PCI.

Dentro desse contexto, a defesa do “valor universal da democracia”, da mesma maneira que a escolha da “terceira via/terceira fase” na qual emergiu o “eurocomunismo”, tem a sua razão de ser e seu caráter impactante exatamente por estar inserida na escolha berlingueriana (que também foi a escolha togliattiana, ainda que com muito menor potencial disruptivo) de se manter dentro do campo político comunista, ainda que tal decisão tenha apresentado a sua fatura em 1989.

Nesses termos acima colocados, a “anomalia” berlingueriana não deve ser confundida com a “ambiguidade” (doppiezza) sempre denunciada pelos adversários do PCI desde os tempos de Togliatti, pois o problema de Berlinguer não consistia no fato de ter reservas em relação à democracia política em determinadas circunstâncias.

Enrico Berlinguer não contrapunha “democracia formal” à “democracia substancial”, “democracia burguesa” à “democracia operária”. Sua adesão ao “valor universal da democracia” não comportava hesitações, mas, para os seus críticos, assumia um caráter contraditório à medida em que nunca resultou numa ruptura explícita com os autocráticos países e partidos comunistas do Leste europeu.

Para o secretário da Federação de Pisa do PCI, entre 1969 e 1976, Giuseppe De Felice, a explicação do comportamento assumido por Enrico Berlinguer vinculava-se não exatamente à possível existência de reservas em relação à democracia política, mas sim ao fato do PCI berlingueriano ter uma “dupla lealdade” – de uma parte, ao Estado democrático italiano; de outra, ao campo socialista: “Não existiam para Berlinguer duas linhas diversas ao socialismo, mas somente a linha democrática; existiam, porém, dois blocos internacionais e duas escolhas de civilização opostas, Ocidente e Oriente, que impunham ao PCI uma escolha de lealdade à “civilização socialista”, assim como à DC uma escolha de lealdade em relação ao Ocidente. As duplas lealdades comportavam obrigações paralelas em relação às duas “autoridades externas” e duas potências externas” (apud BATTINI, 1994, p. 13).

Além disso, a lealdade em relação à “civilização socialista” trazia em si a necessidade de manter a unidade do “povo comunista italiano” em torno da sua liderança, ou seja, também representava uma forma de manter a coesão da militância partidária em torno de uma identidade histórica que não poderia ser jogada fora, ainda que, em determinados momentos, ela fosse mais simbólica do que propriamente substancial.

No diálogo organizado por Michele Battini entre o ex-secretário da Federazione Giovanile Comunista Italiana (FGCI) e ex-primeiro-ministro, Massimo D’Alema, e o historiador e professor da Universidade de Florença, Paul Ginsborg, por ocasião do décimo aniversário da morte de Enrico Berlinguer, foi alcançado um consenso em torno da ideia de que o secretário-geral do PCI havia sido um comunista muito distante do mundo comunista, mas que nutria a ilusão de que o comunismo poderia ser reformado – um comunista que levou a sua relação com o mundo comunista até um limite possível de ruptura, que não chegou a se consumar porque tinha que se manter fiel aos seus ideais de juventude (D’Alema); um comunista que deu sustentação à preservação da democracia italiana nas perigosas circunstâncias dos anos 1970 – um comunista que levou seu partido de maneira lenta, mas inexorável, à separação do modelo político esclerosado da União Soviética, sem dar um ponto final a esse processo (Ginsborg) (apud BATTINI, 1994, p. 39, 40 e 53).

Deixemos, no entanto, que D’Alema e Ginsborg falem com suas próprias palavras acerca do perfil político de Berlinguer: “Se tivéssemos de traçar um perfil sintético de Enrico Berlinguer, deveríamos dizer que foi um grande líder democrático daquela República dos partidos que já deixamos para trás e, ao mesmo tempo, um grande líder comunista. Ele percebeu, de modo agudo e dramático, a crise do seu mundo e foi um grande reformador, quer no terreno da vida política nacional, quer no movimento comunista. Mas um reformador derrotado. Mas, nesta sua busca, conduzida com extraordinária força intelectual e humana, soube romper os limites da sua tradição e da sua cultura, legando um patrimônio de ideias, de propostas, de sugestões que têm um valor universal” (D’ALEMA Apud BATTINI, 1994, p. 46).

“Lançando um olhar retrospectivo sobre esse período histórico com a distância de vinte anos, as prioridades localizadas por Berlinguer, os perigos contra os quais se protegia, a estratégia que escolheu, não parecem encolhidas mas engrandecidas com o transcorrer do tempo. O leitmotiv de Berlinguer foi a necessidade de salvaguardar a democracia italiana e ajudá-la a crescer. O seu lugar na história será aquele do líder político que fez muito para salvar a Itália e a sua democracia em um período de grande e exaustivo trabalho” (GINSBORG apud BATTINI, 1994, p. 63).

Assim, de um certo ponto de vista, não seria exagerado afirmar que o “comunismo democrático italiano” representou a fórmula encontrada por Enrico Berlinguer a fim de manter em suspenso as contradições inerentes ao fato de lutar pela igualdade social, mantendo-se fiel ao método democrático, ao mesmo tempo, não dando o passo decisivo de ruptura formal com o socialismo autocrático soviético – fato que representou, a nosso ver, o “limite histórico” da sua personalidade política herege, mas que não diminui em nada o seu papel histórico de líder democrático e reformador.

Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia.

Trecho do terceiro capítulo de A invenção da democracia como valor universal.

Referência

Marco Mondaini. A invenção da democracia como valor universal: Enrico Berlinguer e o comunismo democrático italiano (1972-1984). São Paulo, Alameda, 2022, 134 págs (https://amzn.to/3qvFLAB).

Bibliografia

BATTINI, Michele (a cura di). Dialogo su Berlinguer: Massimo D’Alema e Paul Ginsborg. Firenze: Giunti, 1994 (https://amzn.to/44ZvziN).

BERLINGUER, Enrico. Berlinguer. Attualità e futuro (a cura di Antonio Tatò). Roma: L’Unità, 1989.

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