Fragmentos XXII

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por AIRTON PASCHOA*

Cinco peças curtas

Paraíso fiscal

O dinheiro dá em árvore e o fruto não é proibido. Cresce e multiplica à medida que abocanhado. Tão ao alcance aliás luz o pomo da concórdia que pecado é não ceder à tentação e não meter a mão. Colheita farta e feita, fazer o quê? Se não somam beatrizes, sobram atrizes e modelos… atrozes como atrizes mas modelares como meretrizes. Fugir à vulgaridade da queda, eis o requintadamente raro, distinto, esquisito, e sem mandamento de nos prender a Ele. À terra podemos baixar a gosto, não ao rés do chão, Deus nos livre! tampouco a sete palmos. Baixamos o bastante a fim de levitar sem perigo e fruir gozo o mais divino a que foi dado ao Homem aspirar — a carícia de unhas desesperadas, deliciados, à fina flor de nossa planta.

 

Neofranquismo

Era franco: acreditava na bugresia e por ela batia-se sem trégua, fosse nas colunas dos jornais ou no front do Leblon. Empunhava os dados e arremessava-os a torto e à esquerda. Não levar em conta a raiz do problema, o déficit fiscal, Hayek nos parta! era um problema de raiz, de déficit intelectual. Mas nem tudo estava perdido: mesmo a Previdência rivalizando ruinosamente com a Providência ou aqui e ali prevalecendo, em detrimento do benefício privado, o vício público do Estado, não havia razão pra descrer do progresso. Quanto tempo não custou à primeira célula, lá do fundo do oceano fugida, galgar até ele, Guga? E voltou ao mar.

 

Sujeito automático

À Leda

A moderna idade sempre demandou progresso. É a tal da lei maior, magna, máxima, que percorre a espinha da história, a arrepiar-lhe o cabelo. Liga-se e desliga-se a luz, liga-se e desliga-se o gás, liga-se e desliga-se o fogo, liga-se e desliga-se a água, liga-se e desliga-se tudo. Automático é o mundo, objetos, sujeitos, reflexos, e por aí fora, até o fim da picada, ligando e desligando, exclusive os desligados. Quem havia de viver também, sem de quando em vez desligar? Donde a necessidade imperiosa do interruptor, no afã de prevenir curto-circuito em curto circuito qual o nosso. Sem o bendito (podia jurar era aqui) é a escuridão na certa ou o clarão eterno.

 

Terraplanismo

Como se envelhece mal nesta terra — plana, progressivamente plana, de tal monta a irrelevância! Fadiga de cogitar o enorme passado que o país tem pela frente, na sentença impagável do Millôr. Destarte passando se vai, com a naturalidade dos carnavais, da esquerda à centro-esquerda, da centro-esquerda ao centro, do centro à centro-direita, da centro-direita à direita, da direita à extrema direita, e desta pra melhor, o centro da essa, na falta infeliz de inferno. Podem presumir, lógico, que, vivendo mal, também se há de morrer mal… Nada mais apartado da verdade. Privilegiados, poetas, artistas, cientistas, intelectuais, vivem em condições invejáveis em comparação com o povo.

Sobre a estafa, ora me ocorre, em desagravo da evolução corrente, pode concorrer o enfado com a imóvel paisagem. Mentes sensíveis, não restaria que fazer senão dar as mãos à rotação.

 

Gaiata ciência

Conheci o amor e o ódio, o ciúme, a inveja, a ira, a gula, os cinco pecados capitais, com particular predileção (tropical, queira deus) pela luxúria e pela preguiça.

Não conheci a avareza nem a soberba, salvo este orgulhinho besta de convocar vocábulos e tourear estouro.

Conheci a amizade e desconheci a vaidade.

Conheci a pobreza e a paternidade, riqueza única, ambas experiências fundas e fundantes, sem prejuízo de afundarem, a depender do casco.

Conheci pai e mãe, não pude amá-los. Não me perguntem por quê. O amor não conhece justiça.

Conheci o remorso, que morde e remorde sempre que a memória, maliciosa, fareja osso no quintal.

Conheci as fraquezas, sem conhecer a virtude.

Conheci o desengano, sem reconhecer a esperança.

Não conheci a fé, conforto pessoal de que fui privado.

Conheci a morte, moço, companheira inseparável ao longo da vida.

Conheci a Universidade.

Conheci a Revolução.

Conheci a Poesia.

Não conheci a alta criação, aquela que só alcançam os artistas maiores em circunstâncias quase que misteriosas. Conheci a criação do dia a dia, caseira, ordinária, pequeno e precário artesanato, movido a torno menor, apto apenas a parir folhinhas de flandres e flagrantes (de sorte e susto).

Conheci o que conhecem os homens?

Tirando a Poesia e a Revolução, decerto o que conhece o grosso de certa casta, média, certo país, medíocre, certa quadra e certa cidade escatológicas.

Não saio insatisfeito, tampouco satisfeito. Sequer quite. Desquitado, se quiserem, incompatibilidade de gênios, a vida adiada e o vadio odiando.

Conheci certas manhãs de azul e luz raiadas que me fizeram confiar no amanhecer. Mas isso faz tempo e uma coisa que o tempo faz é apagar digitais.

*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de Banho-maria (e-galáxia, 2021, 2.ª edição, revista).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES