Música e literatura engajada no século XXI

El Lissitzky, Proun 1 E from Proun, 1920
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Chico César recoloca um debate que andava amortecido na arte brasileira desde os anos 1960

Recentemente o cantor e compositor Chico César provocou polêmica nas redes sociais ao responder de forma surpreendente a um fã que pediu que ele evitasse as canções de “cunho político-ideológico”: “Tu és muito maior que eles todos. Tu não deves nada a eles. Eles que te devem. Tuas mãos são limpas. Não as coloque no fogo por nenhum deles”.

O ouvinte reavivava, talvez sem perceber, uma velha polêmica no meio artístico que rebrotou após a Revolução Soviética e se ramificou durante o século XX. As obras militantes de poetas como Maiakovski, de cineastas como Eisenstein, e inúmeros escritores, dramaturgos e artistas plásticos em todo o mundo, que de alguma forma se identificavam com o sonho comunista, provocaram uma reação conservadora, que buscou de várias formas classificar a arte engajada como algo menor, uma coisa impura, contaminada por ideologia.

Claro que a arte engajada não é uma invenção do século XX. Criticar sistemas políticos, ridicularizar os poderosos e colocar em cena conflitos sociais está na origem do teatro grego, seja em forma de comédia ou tragédia. Para um autor como Benoit Denis (Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre), nem toda literatura que aborde questões sociais é necessariamente engajada, senão quase tudo que foi escrito, de alguma forma, conteria elementos de engajamento político.

Os franceses, aliás, debruçaram-se profundamente sobre o tema no pós-guerra. Com antecessores tão seminais como Émile Zola (J’accuse), é natural que a influência das questões sociais nas artes fosse um dos temas prediletos de autores como Sartre ou Camus (que, aliás, discordavam).

Aqui no Brasil obras engajadas de autores como Jorge Amado ou Graciliano Ramos costumam ser colocadas no mesmo saco pelo pensamento conservador. Críticos mais conscientes, como Antonio Candido, estabelecem outro tipo de juízo, com fundamentos estéticos bem definidos, que apontam porque a obra dita “engajada” de Amado é mais fraca, mas – atenção – não por ser política. No entanto, quase toda a obra do escritor baiano, é atravessada pelo registro das questões sociais, das diferenças de classe, do registro agudo das desigualdades. Como, em outro patamar, faz Graciliano Ramos.

O espírito sarcástico de um Lima Barreto pode ser encaixado no rótulo “literatura engajada”, assim como O Quinze, de Rachel de Queiroz, mesmo não sendo obras de propaganda política. Assim como toda a dramaturgia de Plínio Marcos, certa poesia de Drummond e Vinicius, o cinema de Glauber Rocha, a pintura de João Câmara. Estão entre os pontos altos da arte brasileira, sem abrirem mão do inconformismo.

Mas voltemos a Chico César. Sua resposta ao fã inconformado merece ser lida na íntegra: “Por favor, todas as minhas canções são de cunho político-ideológico!! Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça pra morrer calado. Não é por ‘eles’. É por mim, meu espírito pede isso. E está no comando. Respeite, ou saia. Não veja, não escute. Não tente controlar o vento. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Eu sou parte dessa fúria. Não sou seu entretenimento, sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos fascistas. E dos neutros. Não conte comigo para niná-lo. Não vim botar você pra dormir, aqui estou para acordar os dormentes”.

A resposta do paraibano é um verdadeiro libelo à arte engajada, com alta voltagem poética. Recoloca um debate que andava amortecido na música brasileira desde os anos 1960, e que vem num contexto político que cada vez mais lembra o período da ditadura. Novamente o país é dirigido por militares, que tentam sufocar a cultura, as artes, e qualquer forma de discurso libertário.

Num cenário opressor e obscurantista, artistas tendem a reaquecer o discurso crítico, denunciar os desmandos e apontar para caminhos radicais. Se a humanidade vivesse num paraíso idílico, certamente não haveria arte engajada. Protestar para que? (O que não impediria que houvesse arte de alto nível, certamente, mas com temática bem limitada). Costumo lembrar de que no mesmo disco de Chico Buarque, de 1971, há duas obras-primas que serviriam de argumento para progressistas e conservadores: Construção e Valsinha.

Este sentimento de indignação, de inconformismo, não se limita à música popular. Voltando à literatura e ao nosso século, em livro lançado no final do ano passado, (Alguém vai ter que pagar por isso, Editora Faria e Silva, 2020), o escritor Luís Pimentel monta um romance fragmentado, com elementos de crônica e ficção, onde remonta a tragédia da violência policial-miliciana carioca. Enfocando a camada mais espezinhada da população, Pimentel traça pequenos retratos de gente destinada à miséria e ao anonimato, resgatadas aqui pela arte. Ora remete a João Antônio, ora a Rubem Fonseca (não será o título uma lembrança do livro O Cobrador?), mas com dicção própria, onde a contundência documental de certos episódios não diminui o alcance poético-ficcional de outros. E muitas vezes estas visões estão mescladas, como ocorre nas obras dos grandes mestres.

Escritor prolífico, com obras publicadas em diversos gêneros (contos, poesia, crônica, infanto-juvenil), Pimentel incorpora nessa obra o espírito de indignação criativa de Chico César. Promove uma bem urdida mistura de engajamento crítico, literatura de denúncia e ficção consciente, pero sin perder la ternura jamás. Um grande pequeno livro (118 páginas) destinado a ser referência de uma época prenhe de injustiças, onde, apesar de tudo, a beleza ainda não foi erradicada.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES