A cegueira da tecnociência capitalista

Imagem: Steve Johnson
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Por RENATO DAGNINO*

Para evitar que o “Polo de Inovação e Desenvolvimento Sustentável” de Campinas gere mais desastres

O projeto do Polo de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (PIDS) prevê uma agressiva alteração da lei de uso do solo de uma extensa e apetitosa área ainda não explorada pelo complexo imobiliário-financeiro. Ela margeia aquela que foi valorizada há cinco décadas com a criação da Unicamp em Barão Geraldo. Abrange, também, a que um pouco depois foi cedida a organizações públicas e privadas para a implantação de outros “polos tecnológicos”; um protótipo da onda inovacionista que segue provocando estragos nas nossas universidades públicas.

A iniciativa vem ganhando corpo encoberta com um véu análogo ao que propalava a pesquisa científica e tecnológica como motor do progresso que justificava o projeto nacional desenvolvimentista do Brasil grande potência. Agora modernizado pelos eufemismos que a confluência perversa contemporânea proporciona, de “inovação” e de “desenvolvimento sustentável”, ele pode vir a desempenhar, graças ao efeito de demonstração que a grife de Campinas proporciona, mais desastres.

Este texto busca subsidiar a avaliação dos diretamente envolvidos com a iniciativa e satisfazer o interesse de quem me lê buscando munição para evitar este desastre e outros, presentes e futuros, em outros territórios. Para isso, começo identificando os três atores que se movem na cena política que cerca a iniciativa.

O primeiro, é uma coalizão onde participam agentes públicos situados numa prefeitura há décadas ligada ao complexo imobiliário-financeiro. Seus valores e interesses e a forma cavilosa e tergiversadora como estão sendo praticados no enfrentamento do segundo ator, por serem bem conhecidos, dispensam meu comentário.

O segundo, é o que agrupa economistas, engenheiros, urbanistas, sociólogos, geógrafos, entre outros profissionais que trabalham em organizações públicas e privadas. Atento ao previsível impacto negativo derivado do interesse imobiliário-financeiro da iniciativa, ele tem forçado aqueles agentes públicos a debater com a sociedade.

Apoiado nas contribuições da comunidade de pesquisa internacional a respeito de temas ambientais, de urbanização, de ocupação do território, etc., e ecoando movimentos que se organizam em várias partes do planeta, ele argumenta com muita fundamentação, propriedade, e de maneira convincente, sua posição contrária aos juízos “técnicos” que pretendem embasar a iniciativa.

A demonstração que ele faz do custo-benefício negativo da iniciativa, e do seu custo de oportunidade proibitivo – quando comparado com ações que aqueles agentes públicos deveriam promover para honrar sua obrigação e não o fazem -, também me eximem de maiores comentários. Apenas ressalto a sintonia do seu discurso e da sua ação com os compromissos de “pensar globalmente e agir localmente” e de defender o interesse coletivo.

O terceiro ator é o que reúne uns poucos, mas muito influentes, professores da Unicamp. Eles integram a poderosa elite científica nacional que, devido à nossa condição periférica, hegemoniza nossa política cognitiva (aquela que enfeixa a de Ciência & Tecnologia e a de Educação). E que o faz tentando emular o modelo que ela concebeu acerca de como a empresa privada dos países avançados se utiliza do resultado da atividade de pesquisa universitária.

Esse modelo supõe que, dado que a empresa aqui localizada sabidamente não faz pesquisa, o resultado dessa atividade deve ser privilegiado no âmbito da nossa política cognitiva. Por considerar nossos empresários como “atrasados” (embora estes engendrem uma singular taxa de lucro, e por isso dispensem esse resultado), essa elite inovacionista vem implantando em todo o País “polos tecnológicos”, “Núcleos de Inovação Tecnológica”, “incubadoras de empresas de base tecnológica” (agora rebatizadas de startups), similares ao Polo de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (PIDS).

Obcecada por aquele modelo equivocado, nossa elite científica tem-se revelado pouco propensa a assimilar a evidência empírica que revela a disfuncionalidade de sua política cognitiva para convencer os empresários a aumentar seu lucro mediante os resultados da pesquisa que ela fomenta. Um evento que ocorreu entre 2006 e 2008 quando nossos empresários aumentavam seu lucro e gozavam dos elevados recursos alocados por essa política, merece ser lembrado. Contrariamente ao que esperava a elite científica, eles seguiram desaproveitando o principal resultado que a pesquisa universitária em todo o mundo lhes oferece: os mestres e doutores formados em ciência dura (dos quais mais da metade, nos EUA, são empregados nos centros de P&D empresarial). Dos 90 mil aqui formados nesses três anos, ela contratou apenas 68 para fazer pesquisa.

Não obstante, aproveitando-se do arraigado mito transideológico da neutralidade e do determinismo da tecnociência capitalista, nossa elite científica argumenta que o resultado das agendas exógenas de ensino, pesquisa e extensão que adotam pode alavancar qualquer projeto de desenvolvimento para o país; e sempre redundará no bem-estar da população.

Na esteira desse movimento ainda legitimado por aquele mito (mas que vem sendo desmontado pelo fracasso do viés inovacionista de nossa política cognitiva), a elite científica passou a incorporar em sua narrativa os mesmos eufemismos da moda.

Foi assim que aqueles professores da Unicamp arquitetaram o que veio a ser um componente do Polo de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (PIDS). A necessidade de obter recursos adicionais aos que nossa política cognitiva já lhes proporciona no âmbito federal e estadual fez com que a “encampação” de seu “HUB Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS)” pelo Polo de Inovação e Desenvolvimento Sustentável (PIDS) viesse a calhar.

Esperando tirar proveito do vultoso retorno da iniciativa imobiliário- financeira, que ampliaria o espaço físico e financeiro avalizado pelo poder municipal para viabilizar suas atividades, eles mais uma vez conferem a legitimidade “científica” – intensivamente propalada por aqueles agentes públicos – que ela precisa para ser referendada pela sociedade.

Assim, uma iniciativa que, no âmbito da política cognitiva dos países centrais a partir do qual aquele modelo é concebido, desempenha um papel subsidiário e de baixa relevância, é exposta por aqueles agentes públicos como capaz de proporcionar conhecimentos que resolveriam desde a crise climática até a produção de fitoterápicos… E que, dissimulando sua conexão com o complexo financeiro-imobiliário, é apresentada por eles como capaz de oferecer às dezenas de milhares de pessoas que ocupariam sua área uma prestação de serviços públicos que é negada pela Prefeitura aos cidadãos de Campinas, há muito ocupada por representantes deste complexo.

Finalizo estas considerações sobre o debate em curso acerca do PIDS (que não está se dando com a mesma intensidade na Unicamp em relação ao HIDS) adicionando elementos para quem quer evitar desastres semelhantes em outros territórios.

Ressalto, para isso, que a origem “lógica” fundacional dessas iniciativas é o caráter pretensamente neutro e determinista da tecnociência capitalista. Esse argumento, que valida em última instância estas iniciativas é, por precedência, o que condiciona uma política cognitiva que devemos mudar, mas que hoje: (a) que muito mais do que nos países centrais, tem sido orientada pela nossa “elite científica”; (b) que suas “antenas” estiveram sempre orientadas para emular o que lá fazem seus pares; (c) que devido a isso, demandas cognitivas (ou tecnocientíficas) embutidas nas necessidades coletivas em muitas das necessidades materiais coletivas que temos ainda insatisfeitas não têm sido exploradas com a intensidade necessária.

E que, por isso, a maneira mais conveniente de atender essas complexas e originais demandas cognitivas é incorporar ao processo decisório dessa política um ator que, embora seja o responsável pela operacionalização do nosso potencial tecnocientífico, tem sido pouco escutado. Esse ator, as trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento (que atuam na docência, pesquisa, planejamento e gestão da CTI, etc.), é quem melhor poderá identificar aquelas necessidades, traduzi-las em demandas tecnocientíficas, e “trazê-las” para o ambiente das políticas públicas.

É esse ator que poderá, aproximando a política cognitiva dessas demandas tecnocientíficas, fazer com que a elite científica e os agentes públicos dediquem parte do seu esforço, e do imposto dos pobres, para reprojetar a tecnociência capitalista na direção da tecnociência solidária necessária para alavancar as políticas-fim de interesse coletivo.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Tecnociência Solidária, um manual estratégico (Lutas anticapital).


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