General Golbery

Patrick Caulfield, Bananas e Folhas, 1977
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Por JOÃO VALENTINO ALFREDO*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Ivan Seixas

O livro General Golbery e o entreguismo militar brasileiro, de Ivan Seixas, faz um amplo exame da presença das forças militares na política brasileira, desde a criação da Escola Superior de Guerra, em 1948, em especial a partir do pensamento do general Golbery do Couto e Silva. Segundo o estudo, Golbery do Couto e Silva foi “articulador e mentor dos militares antes do golpe de Estado de 1964 e depois de implantada a ditadura” (p. 11). A Escola Superior de Guerra, montada com assessoria dos Estados Unidos, é entendida no trabalho como responsável pela formação do pensamento do setor militar, pois este mantém o projeto de poder nacional sob seu controle desde então.

 

Presença na República

Esse papel foi assumido pelas Forças Armadas, e em especial pelo Exército, desde 1891 com o golpe de instauração da República, ao qual se seguiram dois governos militares – dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A hegemonia no exercício do poder é também analisada em suas parcerias com as oligarquias nacionais, como a que resultou na chamada “política do café com leite”, nas primeiras décadas do século XX.

A ingerência militar na política é detalhada durante e após a Revolução de 1930, que levou Vargas ao poder, e também na sua derrubada, na redemocratização de 1946 e na legitimação de outro militar-presidente, Eurico Gaspar Dutra, que comandou um governo repressor, responsável pela cassação do PCB e pela consolidação da aliança com as forças militares norte-americanas, numa relação de sujeição, em meio à qual foi instalada a Escola Superior de Guerra. Nesse centro de formação, desde o início, circulava Golbery do Couto e Silva.

O espectro da tutela militar, sujeita aos ditames dos EUA, segue com a Doutrina de Segurança Nacional, conforme o autor, “o início de uma grande conspiração contra a democracia”, articulada de modo alinhado ao bloco capitalista nos anos da Guerra Fria, que, no Brasil, incluía perseguição a “intelectuais, artistas, estudantes e padres progressistas”, numa campanha anticomunista dentro da “chamada doutrina de defesa hemisférica”, justificada pelo discurso da “defesa da liberdade e da paz” e dos “valores morais” da sociedade (p. 28-30).

 

O personagem

Golbery do Couto e Silva é revelado, no livro de Ivan Seixas, como fundamental elo de ligação das Forças Armadas com a ideologia de dominação dos EUA sobre o continente americano, ou ainda, o principal ideólogo da relação de dependência brasileira com aquele país. Nesse aspecto, foi um ator completo: formou-se em estudos avançados de estratégia e informação em centros militares estadunidenses e atuou na Força Expedicionária Brasileira como ponte com as tropas ianques no setor de inteligência. Ao voltar ao Brasil, assumiu a missão do papel de disseminar a teoria da subserviência da América do Sul. Já no final dos anos 1940, era o formulador teórico da Escola Superior de Guerra, período em que desenvolveu teses da associação do Estado com o capital privado.

A essa altura, como intelectual militar da conspiração já formado, Golbery do Couto e Silva atuou na derrubada de Getúlio Vargas, no fortalecimento do sistema de informação no período dos governos Juscelino e Jânio e, de forma decisiva, na articulação do golpe de 1964, que derrubou João Goulart. Na ditadura militar que se seguiu até 1985, já general, Golbery do Couto e Silva organizou o Serviço Nacional de Informações, o famigerado SNI, que, segundo o autor, “passou a coordenar todos os organismos de repressão política, inclusive os organismos militares de repressão” (p. 55).

No período ditatorial, foi escanteado em duas ocasiões, por Costa e Silva e João Figueiredo, mas não se avexou e se imiscuiu na iniciativa privada, quando foi acusado de um escandaloso caso de corrupção por tráfico de influência em um empréstimo bilionário do BNDES à Dow Chemical, multinacional que presidia (p. 56).

 

Ideologia da repressão

Outra parte do trabalho de Ivan Seixas, talvez a de maior relevância, disseca o pensamento de Golbery, reunido no livro Geopolítica do Brasil, publicado em 1967, com seus artigos que usava nos cursos da Escola Superior de Guerra. Num primeiro momento, mostra o quanto os textos do general são mal-acabados e inconsistentes intelectualmente, em especial na organização racional do pensamento, no uso bibliográfico superficial e mesmo na elaboração da redação (p. 57-61).

No entanto, por outro lado atendem aos propósitos a que se prestam “através de um bem elaborado raciocínio, a partir da ideia do medo” (p. 63). A análise da função de difusão da ideologia nutrida pelos militares – antidemocrática, antipopular e de defesa da ingerência militar sobre o Estado e a sociedade civil – feita por Ivan Seixas no livro General Golbery, é reveladora. A essa parte é dedicado o denso capítulo “Conteúdo e análise do livro”.

Além do estigma do “medo”, o autor percorre outros tópicos ressaltados pelo mentor golpista, que foram base para a ditadura militar de 1964 e o sistema de opressão social instalado por ela, como a definição do “papel do Estado”, o “tema da guerra”, a “segurança nacional” propalada de forma distorcida, a “globalização”, a relação do Brasil com o “ocidente” capitalista e católico, o “anticomunismo” e, entre outros, a “submissão aos EUA” (pp. 63-92).

Neste último tópico, Ivan Seixas deixa claro tratar-se de uma opção consciente dos militares: “A adesão e o atrelamento do pensamento de Golbery aos interesses dos EUA ficam evidentes quando afirma que o domínio do Atlântico Sul é de responsabilidade do Brasil ‘por mais que estejamos, sem tergiversações, dispostos a utilizá-lo em benefício de nossos irmãos do norte’. É importante ressaltar que o general brasileiro usa a expressão ‘em benefício’ para designar a ligação do nosso país com os EUA. Isso não denota simples ligação, mas aponta para uma subordinação de políticas. E volta a delimitar o combate ao comunismo como sendo o elo de ligação ideológico do Brasil com os EUA quando fala que há interesse na defesa da ‘civilização cristã, que é nossa, contra o imperialismo comunista de origem exótica’” (p. 96).

Outros pontos de destaque analisados no capítulo são sobre o “projeto militar de poder”, a “segurança nacional” e a “luta política” (p. 105-112), que, segundo o autor, podem ser traduzidos, no conjunto, como a defesa do país e do “Ocidente” dentro da mencionada lógica da relação de servilismo aos interesses estadunidenses, a conspiração continuada contra a democracia e a perseguição a uma abstrata “subversão comunista”. “Em outras palavras, o general Golbery do Couto e Silva está delineando uma ditadura, a qual ele vislumbra, almeja e trabalha por sua efetivação” (p. 110), como afirma o autor.

Numa passagem de avaliação panorâmica, Ivan Seixas sintetiza a ideia que norteou a casta militar golpista que dominou o poder no Brasil durante a ditadura militar de 1964: “O general Golbery do Couto e Silva chama de geopolítica a opção pela ligação e atrelamento aos EUA e aos seus interesses. Isso fica explícito em vários momentos dos escritos dele. Não dá para se dizer que esteja tratando ou traçando uma ‘geopolítica do Brasil’, como é o título de seu livro, mas de uma ‘geopolítica dos EUA, efetivada pelo Brasil’. Melhor dizendo, executada pelos militares brasileiros. O general Golbery não escreve uma linha sequer ou se preocupa em propor uma política de soberania nacional ou de geopolíticas de interesse de seu povo, que é o brasileiro, mas indica que o Brasil ‘necessariamente’ deve se inserir na Geopolítica continental para fazer a defesa do ‘Ocidente cristão e capitalista’, sem apontar a justificativa razoável e lógica para tal escolha em detrimento de seu próprio país” (p. 122).

 

O autor

Ivan Seixas, jornalista e historiador, foi militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que atuou na resistência à ditadura militar de 1964. Por essa razão, em 1971, aos 16 anos, foi preso e passou por torturas em diversos centros da repressão, sendo libertado apenas em 1977. Desde então, é importante voz em defesa dos direitos humanos no Brasil. Foi coordenador do projeto Direito à Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, assessor especial da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo Rubens Paiva.

Em entrevista concedida, Ivan Seixas disse que “a formação dada pelos escritos do general Golbery do Couto e Silva é atual, pois eles são ensinados ainda hoje na Academia Militar das Agulhas Negras e na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais. O discurso dos generais de hoje é o mesmo de Golbery durante a Guerra Fria e a ditadura militar”.

Ele também observou que “até mesmo o delinquente Jair Bolsonaro tenta repetir o discurso anticomunista, antinacional e pró-EUA, mas como é tosco e precário de raciocínio, fica no ato ridículo de bater continência para a bandeira daquele país ou dizer que ama o ex-presidente Trump. A subserviência dos generais da ditadura, que serviram aos interesses do imperialismo dos EUA, e a dos generais atuais é a mesma”.

Outro ponto indicado pelo autor é a similaridade do governo atual com o do general Eurico Gaspar Dutra, “atrelado aos interesses dos EUA, repressivo com o movimento sindical, moralista nos costumes e ultraliberal na economia”. As coincidências ocorrem também no descaso com as contas públicas. “Nos dois primeiros anos daquele governo, as reservas cambiais do Brasil foram torradas para bancar a política econômica contra a industrialização promovida por Getúlio Vargas”, completou.

*João Valentino Alfredo é jornalista e doutor em comunicação pela Universidade do Texas em Austin (EUA).

 

Referência


Ivan Seixas. General Golbery e o entreguismo militar brasileiro. Curitiba, editora CRV, 2022, 132 págs.

 

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