Labirinto reacionário

Cecil Collins, Cabeça, 1963
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Por FRANCISCO LOUÇÃ*

Considerações sobre o livro recém-lançado de Valério Arcary

Labirinto reacionário compila 56 textos publicados pelo autor em diversas revistas e plataformas de comunicação entre 2014 e 2021, embora só tenha ficado disponível no início de 2023. Noutro lugar já apresentei a minha hesitação sobre a legibilidade de recolhas de textos de natureza diversa, como é o caso, em que se encontra polêmica teórica, análise política, intervenção militante e reflexão aberta expressa ao longo de períodos com entoações políticas diferenciadas.

Mas devo acrescentar que, com este livro, uma pessoa que o leia a partir de outro país beneficia de muita informação e, se se preocupar com os caminhos e descaminhos da esquerda, encontrará motivo de sobra para aproveitar essa leitura; e desconfio também que um ou uma ativista brasileira, vivendo no cerne dos acontecimentos comentados, ainda mais dele poderá fazer bom uso, dado que quantos dos problemas aqui discutidos ainda são a agenda determinante, ou seja, os debates sobre a visão do país e as estratégias contraditórias que nele se defrontam.

Conheci Valério Arcary em 1974 em Portugal, onde ele – e eu – éramos jovens estudantes envolvidos na luta contra a ditadura e na alegria da revolução que a derrubou. Esta declaração de interesses é necessária, pois não devo esconder que este cruzamento militante, mesmo que em partidos diferentes, criou laços de amizade que, quase cinquenta anos depois, só posso estimar, e que foram repetidamente recriados em diferentes circunstâncias, mesmo com o Atlântico de permeio – o que pode justificar tanto o interesse que fui mantendo em ler o que escrevia quanto algum enviesamento nessa minha leitura.

Feito este reconhecimento de parcialidade, acrescento que há ainda alguns traços que desse período retenho e que não vi desmentidos desde então: Valério Arcary foi sempre um  interveniente destacado e orador surpreendente, o que não se esconde nesta escrita (muitos dos textos começam com um dispositivo retórico útil para prender a atenção de quem o escuta ou lê, uma citação de algum autor, pode ser Sun Tzu ou Lênin, ou de algum ditado popular português, indiano, árabe, persa ou outro; desconfiado de que inventava alguma dessa prosa para efeitos de demonstração, busquei confirmação no caso de alguns ditados populares portugueses, mas nunca consegui encontrar a evidência da substituição da história pela criatividade literária, falhanço que aqui confesso). Para o que interessa, são textos que prendem a atenção.

No pouco que conheço da vida brasileira, que não me autoriza grandes efusões, tenho a intuição de que, como o autor do livro afirma, ganhou a esquerda, no caso o PSol, ao apresentar candidatura presidencial em 2018 e ao não o fazer em 2022; ao compreender que, quando se supunha que a repressão judicial tinha encerrado o ciclo de Lula, ele continuava a ser a condição para derrotar Jair Bolsonaro; ao perceber, em consequência, que o bolsonarismo é um campo político com aspiração maioritária, com fortes raízes identitárias e com bases populares, pelo que a ideia da simples ofensiva para o desgastar, quando era poder, esbarrava contra a configuração de forças; e, mais ainda, que a unidade contra o bolsonarismo não podia ser suficiente para definir nem uma composição de governo nem menos ainda um projeto coerente para o Brasil.

Esses temas são discutidos de modo consistente em diversos artigos que percorrem os tempos da resistência e a preparação da vitoriosa contra-ofensiva eleitoral. Houve, nesse percurso, momentos de dúvida e até de angústia, todo fielmente retratados (Cf. na p.63, “O céu está desabando na nossa cabeça. Mas o desespero é mau conselheiro”, eis um exemplo fascinante – pois foi escrito no momento).

No entanto, o essencial do livro está em outros textos. São, na minha opinião, os que discutem elementos da análise estrutural. Em primeiro lugar, do modo de acumulação capitalista no Brasil: é uma semicolónia e submetrópole? É uma potência imperialista ou dependente, ou as duas à vez? E, se as definições são tantas vezes, em política, semânticas de antagonismo e não de clarificação, algumas destas questões são relevantes para perceber como se forma uma burguesia nacional poderosa, que não é uma “burguesia compradora” e cuja inserção internacional é mais dinâmica do que a reconfiguração do poder de Estado gerido em Brasília (pg.21).

Depois de trabalhos do marxismo “clássico” brasileiro, como por exemplo os de Francisco de Oliveira, retomar a reflexão sobre o que é este país é essencial para os rumos da esquerda. Vem em segundo lugar outra dimensão importante: como se pode essa esquerda marxista distinguir do “ultimatismo” ou do penoso “republicanismo eleitoralista” e conseguir polarizar uma “frente única ofensiva”, nos termos do autor? Ele não nos esconde que há várias respostas em disputa sobre cada uma destas questões, que aliás são retomadas brevemente no posfácio de Guilherme Boulos. Dirá quem o ler com a experiência militante no Brasil o que fazer destas reflexões.

Pelo meu lado, recomendo o esforço, tanto mais que escapa a uma dos tormentos que assombram as esquerdas: o vício da analogia histórica – até a podemos entender, em tempos de tormenta agarramo-nos ao mastro do que conhecemos, o que no entanto pouco valor lhe confere – e que tem viciado tanta da decisão política e, pior, permitido a quem tem pouca raiz na realidade e na sua complexidade proclamar soluções heroicas, munido do argumento de que já foi assim em algum passado. Poucos espetáculos mais deprimentes há do que assistir a debates políticos atuais com base no que aconteceu nas jornadas de julho de 1917 ou no golpe de Kornilov, quando sobre essas configurações passaram cem anos e várias vidas, várias guerras e não poucas transformações estruturais – para não dizer que pouca gente perceberá de que falam os faladores de tais referências.

E, ainda assim, ou precisamente por isso, é um livro que respeita a história. A das correntes políticas, a das revoluções, a das lutas em que se empenharam homens e mulheres concretas, a da coragem e determinação, a da dúvida e da busca de sentido. É-lhe fiel pois não a quer esquecer, ainda bem. Que use como título Labirinto reacionário pode ser um sinal do tempo em que muitos dos seus textos foram escritos, e isso compreender-se-ia, mas será certamente também uma escolha já com o benefício da nova situação em que Jair Bolsonaro foi derrotado, mas em que tantas feridas demonstram que o curso da história nem é linear nem é simples, o que exige convicção, empenho, militância e dedicação para derrubar o labirinto. Talvez ainda exija mais imaginação e curiosidade pelo que há de novo, as maiores da qualidades dos maiores que nos ensinaram e de que ainda sabemos tão pouco do que temos que inventar pela frente.

*Francisco Louçã é economista, foi coordenador do Bloco de esquerda de Portugal (2005-2012). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas – A cultura do capitalismo tardio (Cotovia).

Referência


Valério Arcary. Labirinto reacionário: o perigo da derrota histórica. São Paulo, Usina Editorial, 2023, 350 págs (https://amzn.to/458cmvh).


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