Por SALEM NASSER*
O apoio incondicional a Israel, por parte do Ocidente, revela que esse Ocidente nunca acreditou na sua própria mentira sobre a universalidade dos direitos humanos
Eu, semita…
Comecemos com isto: eu sou semita. Ou melhor, se alguém neste mundo pode ser semita, então eu sou semita.
Não digo, com isso, que sou descendente de Sem, filho de Noé, que, francamente, não sei se chegou a existir.
Na verdade, sendo descendente de camponeses, não tenho brasão de família nem árvore genealógica que me permita reconstruir com precisão o passado familiar, ainda que fosse um passado inventado.
Mas, até onde volta a memória coletiva dos meus ancestrais, sabe-se que somos árabes e que sempre falamos árabe.
Como se sabe, alguém um dia resolveu classificar as famílias linguísticas e chamar aquela que reúne as línguas originadas e faladas no Oriente Médio de “semítica”. Sobre o fato de que as línguas semíticas se relacionam entre si e que decorrem de uma mesma proto-língua não há grande dúvida. O nome que foi dado ao grupo pode fazer maior ou menor sentido, mas é o nome consagrado.
Menos certo é que haja “povos semitas” que, de modo análogo, resultem de um mesmo berço genético, quer descendentes de um mítico Sem, ou não.
O que isso quer dizer, concretamente?
A língua árabe, falada por quem quer que seja, continua pertencendo à família linguística que a aproxima e põe em relação com o hebraico ou o aramaico. Por outro lado, um exame de meu DNA talvez demonstrasse que, apesar de eu só conhecer o passado de meus ancestrais que existiram no Líbano, toda a minha família tem origem no Irã, por exemplo, cuja língua, o persa, pertence a outra família linguística que não a semítica.
A identidade semítica em termos genéticos, portanto, é algo cuja existência é incerta, especialmente se pensada em termos de pureza.
Assim, quando digo que, se alguém pode ser semita, eu certamente o sou, isto significa que, sendo descendente de libaneses que sempre falaram árabe, eu falo uma língua semítica e a probabilidade de eu ser descendente dos povos onde as línguas semíticas surgiram é relativamente maior.
Outros podem dizer o mesmo que eu, mas não vejo quem possa dizer mais.
Perceba-se que isso não tem qualquer relação com a fé ou a religião que eu porventura professe ou pratique; há árabes e falantes do árabe muçulmanos, cristãos, judeus…
Antissemitismo
Alguém um dia, perto do final do Século XIX, concebeu o termo “antissemitismo” para se referir ao que antes era conhecido como “ódio aos judeus” e que também podia ser dito “judeofobia”.
O momento em que surge o termo não teria sido acidental; estava relacionado à emergência em importância das teorias “científicas” sobre as raças.
Era também o momento em que um problema ancestral era objeto de discussões mais intensas na Europa: a questão da integração dos judeus europeus nas sociedades em que se encontravam e do seu pertencimento às identidades nacionais emergentes.
Aquele fenômeno do ódio ao judeu, na sua forma especificamente europeia – e depois ocidental – que se dava em circunstâncias em que os judeus, ao mesmo tempo, faziam parte do tecido social europeu e eram vistos – e se viam – como em parte estrangeiros, passou a ser dito “antissemitismo”.
Penso ter lido em algum lugar algo que me sugeriu a seguinte conclusão: chamar de antissemitismo o ódio aos judeus era em si mesmo um gesto de ódio aos judeus.
A aderência a uma crença religiosa, o judaísmo, tornou-se identidade racial, genética. O judeu podia ser europeu, ainda que odiado por sua especificidade religiosa, mas o mesmo não podia ser dito do “semita”.
O semita não era apenas um outro; ele era o outro inferior, bárbaro, incivilizado, destinado à dominação colonial e à exploração.
Em outras palavras, chamar o judeu de “semita” era dizer, não que ele era apenas um europeu inferior, mas que ele era tão estrangeiro quanto o árabe, que ele não era nem diferente nem melhor do que o árabe.
Esta leitura racial do que antes era pertencimento religioso prevaleceu até o genocídio dos judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Irônica, e tragicamente, a mesma concepção biológica da identidade do “povo judeu” tornou-se a pedra de sustentação do Estado de Israel e do que se pretende que seja o seu caráter de “Estado judeu”.
O antissemitismo, enquanto ódio ao judeu ou judeofobia, quer se pense o judeu como membro de uma religião ou como racialmente inferior, por ser semita, é fenômeno tão grave quanto qualquer outro tipo de preconceito religioso, racial ou de classe.
Não sendo inocente ou ingênuo, digo que o preconceito é da natureza humana. E digo que o que podemos chamar de conquista civilizacional é a compreensão do fato de que é preciso lutar contra a nossa inclinação ao preconceito.
Enquanto não podemos – nem devemos, penso eu – policiar sentimentos, devemos sim combater as expressões de preconceito e a sua concretização em atos de discriminação.
Isto é verdade para a judeofobia, para o racismo, para a islamofobia…
Um ato discriminatório pode ser pior do que outro, de acordo com as circunstâncias, mas, se é verdade que todos os seres humanos são iguais em dignidade e que todos os povos – como quer que se pense o sentido do termos – são merecedores do mesmo respeito, então não há hierarquia entre racismos e preconceitos.
Antissemitismo e Genocídio
Por mais graves que sejam os comportamentos discriminatórios, não creio haver dúvida de que há coisas mais graves.
Entre essas coisas mais graves está o genocídio. Como fenômeno, a destruição, no todo ou em parte, de um grupo racial ou étnico, e como crime, cometido por indivíduos ou por Estados, o genocídio deveria nos indignar e nos mobilizar mais do que qualquer outro fenômeno ou crime.
É verdade que cada um de nós, enquanto seres humanos, pode ser reconhecer como pertencente a um ou outro grupo e, por essa mesma razão, pode ser mais sensível ao preconceito que nos atinge do que a outros. Assim também, podemos sentir mais intensamente um genocídio que atinge o nosso grupo ou um grupo com que sentimos maior proximidade, cultural, religiosa, étnica.
Isso é natural. Mas, se de fato acreditamos na profunda igualdade dos seres humanos, devemos saber que não há racismos mais graves e menos graves e também que não há genocídios aceitáveis enquanto os outros seriam inaceitáveis.
Assim, é perfeitamente legítimo que uma pessoa judia, ou uma instituição que reúna e represente judeus, tenha especial sensibilidade às instâncias de judeofobia ou antissemitismo – no sentido consagrado da palavra – e que lute especialmente contra esse tipo de preconceito.
Essa sensibilidade e essa luta, no entanto, não se podem realizar, por questões lógicas e morais, ao mesmo tempo em que se exerce o preconceito e a discriminação contra outros grupos.
Com mais razão ainda, não se pode conceber que se lute contra um tipo qualquer de racismo ou discriminação ao mesmo tempo em que se defende o cometimento de genocídio, e outros crimes de guerra e crimes contra a humanidade, que têm por vítimas outros grupos.
Se de fato o fundamento da nossa luta contra o antissemitismo se encontra na crença da igualdade dos seres humanos e na sua igual dignidade, haveria na defesa do genocídio uma contradição insuperável.
E, no entanto, esse comportamento, que eu reputo particularmente indecente, tem sido o de muitos indivíduos e instituições no Brasil e no mundo.
E o que acrescenta injúria à obscenidade é que não só se diz lutar contra o antissemitismo ao mesmo tempo em que se defende o genocídio dos palestinos, mas se faz uso da acusação de antissemitismo contra aqueles que denunciam o genocídio, para fazer a defesa deste ainda mais perfeita.
Os atos de genocídio e outros crimes sendo cometidos contra os palestinos por Israel não ajudam na luta contra o antissemitismo.
A perseguição dos que fazem a crítica a Israel, brandindo contra todos a acusação de antissemitismo, não ajuda na luta contra o antissemitismo.
O apoio incondicional de certos indivíduos e instituições a Israel faz duvidar da sinceridade de sua crença na igualdade dos seres humanos.
O mesmo apoio incondicional a Israel, por parte do Ocidente, revela que esse Ocidente – suas lideranças, sobretudo – nunca acreditou na sua própria mentira sobre a universalidade dos direitos humanos…
*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]
Publicado originalmente no substack do autor.
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