Golpe de Estado ao vivo

Imagem: Manifesto Coletivo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CHICO WHITAKER

A tentativa de golpe tornou possível uma grande frente pela democracia, unindo os Três Poderes de República e a sociedade civil

O espetáculo oferecido ao mundo no dia 8 de janeiro de 2023 foi surpreendente: na paisagem de cartão postal de conjunto arquitetônico monumental de Brasília, capital do Brasil, milhares de pessoas vestidas com suas cores e bandeira começavam a invadir, sem que nada as contivesse – à distância parecia uma enorme chusma de formigas – os edifícios-sede dos três Poderes da República. Quem a conhecia logo percebeu que estava em curso, televisionado ao vivo, um novo tipo de golpe de Estado, protagonizado diretamente pelo povo. Mostrava-se também imagens do início da invasão: uma densa e longa coluna de pessoas marchando rumo à praça, aparentemente escoltadas por policiais.

Horas depois começaram a surgir, naquele mesmo cenário, policiais e militares vestidos de preto, que não se percebia de onde vinham, lançando bombas de gás lacrimogênio e jatos de água para acuar e expulsar os invasores dos palácios, da praça e das esplanadas para onde fugiam, até seu esvaziamento já tarde da noite. Soube-se depois que muitos invasores tinham sido detidos dentro dos palácios. Mas só no dia seguinte se teve notícia dos estragos que lá fizeram e de que tinham chegado a Brasília nos dias anteriores. Eram apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, vindos dos mais diversos rincões do país, com passagem, alojamento e alimentação gratuitos, em mais de cem ônibus fretados ou por outros meios de transporte.

Sem dúvida era uma operação política ousada, com esses apoiadores usados como carne de canhão. Certamente poucos dos que a seguiam pela televisão terão conseguido desligá-la antes que chegasse a seu final feliz, com o golpe abortado, e sem vítimas de tiros que poderiam ter sido disparados.

Nós brasileiros também fomos surpreendidos. O que vivi deve ter ocorrido em muitos lares do Brasil. Dia 8 era o domingo seguinte à posse de Lula. Eu participava de um almoço familiar tranquilo, na casa de uma filha que estivera em Brasília no domingo anterior, para participar da festa da posse, com seu marido e filhos e dezenas de milhares de pessoas de todo o Brasil, que tinham lotado a Praça dos Três Poderes e as esplanadas dos ministérios. E nos falavam da alegria que compartilharam: era o fim de um pesadelo de quatro anos. De repente, foram interrompidos por alguém que abrira seu celular e dissera: “vejam só o que está acontecendo em Brasília”. Levantamos imediatamente da mesa e sentamos todos na frente da televisão. E de lá não saímos, durante muitas horas, até que fossem afastados do cenário os últimos que resistiam à pressão policial. Tínhamos visto uma tentativa de golpe enquanto ela ocorria, uma curta semana após a posse do Presidente eleito. Que visara não somente a ele, mas as cúpulas de todo o poder político do país, atacadas concomitantemente de forma direta.

O espaço desta nota não me permite apresentar as origens e propósitos desse golpe frustrado e as tentativas anteriores de quebra da democracia pelos mesmos atores, nem como se conseguiu abortá-lo. Menos ainda as tensões vividas nos dois meses do segundo turno à posse de Lula, com atentados e ameaças, nem os muitos dados já disponíveis sobre as cumplicidades e omissões que tornaram possível a invasão dos Palácios.

Seria importante, no entanto, contar o que aconteceu no dia seguinte, segunda feira dia 9, não tão televisionado, mas extremamente significativo: houve quase automaticamente uma enorme reação de repúdio ao ocorrido em Brasília, da sociedade e das instituições políticas brasileiras. Milhares de cidadãos e cidadãs fizeram grandes manifestações de rua nas capitais do país, convocadas pelos movimentos da sociedade civil; e, a convite do Presidente Lula, realizou-se uma grande reunião numa sala do Palácio não alcançada pelos depredadores, em que todos os presentes assumiram um solene compromisso coletivo de defender a democracia. Dessa reunião participaram todos os ministros do governo, os governadores dos 27 Estados do país, os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, a Presidente da Suprema Corte e seus Ministros presentes em Brasília.

Ao seu término todos participaram de um gesto altamente simbólico: seguiram em uma caminhada a pé do Palácio até o edifício do Supremo Tribunal Federal, o mais atingido pelo vandalismo, do outro lado da Praça dos Três Poderes, para lhe prestar solidariedade como Poder.

Continua bastante preocupante o que poderá ainda acontecer, ainda que alguns dias depois pesquisas de opinião indicassem que 93% dos brasileiros e brasileiras desaprovaram o que foi feito em 8 de janeiro em Brasília. Jair Bolsonaro dividiu o país, incutindo ódio em boa parte da população, acenando até para uma guerra civil. Durante seu governo, o número de armas de fogo adquiridas pelos civis aumentou sete vezes. No dia da posse, até o último minuto não se tinha decidido se, para ser empossado no Congresso, Lula deveria se deslocar em carro aberto ou em carro blindado. É certo, no entanto, que se tornou possível construir uma grande frente pela democracia, unindo os Três Poderes de República e a sociedade civil em torno do slogan Reconstrução e União. Que tenhamos sucesso.[1]

*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

Nota


[1] Artigo redigido como resposta a um pedido de informação da Comissão Justiça e Paz da França.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Avritzer Benicio Viero Schmidt Carla Teixeira Matheus Silveira de Souza Manchetômetro Boaventura de Sousa Santos João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Leonardo Boff Everaldo de Oliveira Andrade Samuel Kilsztajn Lorenzo Vitral Antônio Sales Rios Neto Alexandre Aragão de Albuquerque Sergio Amadeu da Silveira Elias Jabbour André Márcio Neves Soares João Carlos Salles André Singer Francisco Pereira de Farias Daniel Brazil José Micaelson Lacerda Morais Chico Alencar Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bento Prado Jr. Sandra Bitencourt Milton Pinheiro Alysson Leandro Mascaro Walnice Nogueira Galvão Ricardo Fabbrini José Costa Júnior Jorge Luiz Souto Maior Flávio R. Kothe Valerio Arcary Manuel Domingos Neto José Luís Fiori Airton Paschoa Eleonora Albano Valerio Arcary Ladislau Dowbor Marcos Aurélio da Silva Afrânio Catani Caio Bugiato Luiz Marques Flávio Aguiar Paulo Martins Érico Andrade Michel Goulart da Silva Celso Favaretto Luis Felipe Miguel Daniel Costa Marjorie C. Marona Marcus Ianoni Paulo Capel Narvai Leda Maria Paulani Claudio Katz Gilberto Lopes José Raimundo Trindade Carlos Tautz Anselm Jappe Antonino Infranca Salem Nasser Bernardo Ricupero Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Ricardo Abramovay Luciano Nascimento Henry Burnett Juarez Guimarães Luís Fernando Vitagliano Liszt Vieira Dênis de Moraes João Adolfo Hansen Andrés del Río João Feres Júnior Michael Löwy Fábio Konder Comparato Jean Pierre Chauvin Jean Marc Von Der Weid Denilson Cordeiro Rubens Pinto Lyra Luiz Roberto Alves João Paulo Ayub Fonseca Priscila Figueiredo Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Mário Maestri Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna Fernão Pessoa Ramos Vinício Carrilho Martinez Dennis Oliveira Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Chico Whitaker Kátia Gerab Baggio Ronaldo Tadeu de Souza Andrew Korybko Heraldo Campos Igor Felippe Santos Tales Ab'Sáber Henri Acselrad Yuri Martins-Fontes Tarso Genro Atilio A. Boron Eleutério F. S. Prado Marilia Pacheco Fiorillo Ronald León Núñez Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Maria Rita Kehl Francisco Fernandes Ladeira José Machado Moita Neto Luiz Bernardo Pericás Mariarosaria Fabris José Dirceu Alexandre de Lima Castro Tranjan Michael Roberts Leonardo Sacramento Luiz Renato Martins Rafael R. Ioris Eliziário Andrade Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Francisco de Oliveira Barros Júnior Vanderlei Tenório Bruno Machado Thomas Piketty Eduardo Borges Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ari Marcelo Solon Marcelo Guimarães Lima Ricardo Antunes Lucas Fiaschetti Estevez Celso Frederico Remy José Fontana Julian Rodrigues Vladimir Safatle Renato Dagnino Gilberto Maringoni Ronald Rocha Osvaldo Coggiola Lincoln Secco Antonio Martins Gabriel Cohn Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Módolo Marilena Chauí João Carlos Loebens Rodrigo de Faria Ricardo Musse Jorge Branco Berenice Bento Alexandre de Freitas Barbosa Eugênio Bucci Otaviano Helene Slavoj Žižek Gerson Almeida José Geraldo Couto Luiz Eduardo Soares

NOVAS PUBLICAÇÕES