Getúlio Vargas — o estadista

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Por LINCOLN SECCO*

Getúlio Vargas deixou respostas suspensas. Suas faces foram a de um revolucionário aparentemente a contragosto, de um legalista apoiado no voto, de um ditador anticomunista, de um líder trabalhista sincero

Em 2016, Dilma Rousseff levou para ler num fim de semana a biografia de Getúlio Vargas do jornalista Lira Neto. De propósito ou não, a presidenta sugeriu naquele instante uma associação com a crise de 1954 que levou Vargas ao suicídio.[i]

A própria estratégia comercial e os paratextos da edição que Dilma Rousseff leu já fazia essas aproximações entre passado e presente. A obra publicada pela Companhia das Letras tem comentários na contracapa feitos por Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula.

Nós sabemos que o momento em que lemos o passado modifica a ideia que temos dele, mas não o que efetivamente aconteceu. E neste quesito é preciso empregar as técnicas mais tradicionais de nosso ofício. Eric Hobsbawm dizia que podemos discutir as causas das guerras púnicas (264-146 a.C.), mas não o seu resultado. Perry Anderson nos recordou que em qualquer abordagem marxista séria o passado não pode ser modificado.

Getúlio Vargas foi biografado em centenas de artigos, verbetes e livros. Desde inimigos declarados como Afonso Henriques, um ex-membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL), até brasilianistas que forneciam o conhecimento do Brasil para a elaboração das estratégias do governo estadunidense como Foster Dulles.

Edgard Carone, Boris Fausto e muitos outros comentaram sua trajetória. A biografia feita por Lira Neto é baseada em extensa pesquisa empírica do próprio autor e de auxiliares que lhe propiciaram uma massa documental impressionante, embora a maioria das informações já fosse conhecida. Mas é mérito só dele ter conseguido escrever de maneira elegante um livro que não se perde num cipoal de fatos e que persegue não a neutralidade, mas sim a isenção, a apresentação de dados que podem até contrariar suas inclinações pessoais.

Formação

A infância, a violência como traço constitutivo da solução de desavenças entre famílias rivais e mesmo o longo romance que Getúlio Vargas manteve com Aimmée, esposa de um auxiliar de seu governo, revelam os riscos calculados que ele desejou correr em sua trajetória pública. O costume de, em situações limite, aparentar calma e sorrir. De andar na rua sem escolta. De resistir com o revólver na cintura. De preparar a carta testamento diante de um cerco sem saída, tudo isso é documentado por Lira Neto. Ou seja, o político pragmático e conciliador também concebe a possibilidade da ruptura definitiva. De outro modo não teria escrito um bilhete suicida já em 1932.

Ainda assim, o excesso de detalhes por vezes fez o biógrafo sair por janelas que a história lhe abria, mas que deveriam servir apenas para vislumbrar a paisagem que rodeava seu personagem. E não para saltá-las e percorrer caminhos que não eram os dele. O autor descreve com minúcias a Guerra do Paraguai, a Revolta Federalista, o primeiro e o segundo cinco de julho etc. Era preciso buscar aqueles “universais” na particularidade concreta. O contexto não ilustra, mas integra a personagem. Por isso, terminamos o primeiro volume com a impressão de que talvez o autor pudesse ter condensado a sua biografia

Aliás, a primeira parte se baseia por largas páginas nas memórias de João Neves da Fontoura. O autor soube equilibrar o uso de memórias de Afrânio Mello Franco, João Neves da Fontoura, Goes Monteiro, Eurico Dutra, Benedito Valadares e muitos mais com a documentação da Fundação Getúlio Vargas. Mobilizou a correspondência, o diário, a segunda parte (inédita) das memórias da filha de Getúlio Vargas, os comunicados das embaixadas, a historiografia já estabelecida e os jornais de época.

A trajetória é a de um antiliberal convicto, cético, não religioso, positivista, borgista (ou chimango). Seguidor de Julio de Castilhos e chefe de clã familiar na fronteira gaúcha. Casou-se com uma mulher bem mais jovem que lhe pareceu conveniente. Cumpriu o papel de adversário dos liberais gaúchos, os federalistas ou maragatos.

Deputado estadual, representante do longevo governador Borges de Medeiros na assembleia estadual e, depois, na liderança da bancada gaúcha na câmara dos deputados, Getúlio Vargas ainda passou pelo ministério da fazenda de Washington Luiz e foi presidente do Rio Grande do Sul.

Getúlio Vargas foi leitor de Saint-Simon e do secretário deste, o positivista-mor Augusto Comte. Mas seria difícil aquilatar o peso daquelas leituras na obra de um político pragmático. Afinal, o positivismo era a forma mentis de uma época, a arquitetura e os limites do pensamento político, um terreno de valores, métodos e formas de leitura da realidade em que interesses diversos se digladiavam. Foi a visão de mundo que conferiu ao cientista o papel de reflexo da realidade objetiva. Destarte, a política deveria ser científica e os governantes seriam tecnocratas isentos de inclinações ideológicas. Sendo a sociedade regida por leis universais assim como a natureza, os problemas sociais poderiam ser resolvidos cientificamente e, portanto, dentro da ordem. Onde há consenso científico não pode haver conflito.

Muitos positivistas incluíam as classes sociais na Ordem, reconheciam os seus direitos, mas combatiam a luta entre elas. Em Getúlio Vargas veremos a perene busca da conciliação, de um governo forte e de uma ditadura científica, porém amolecida pelos interesses privados.

Revolução brasileira de outubro

À virtù maquiavélica se juntou a fortuna: o sorriso do acaso. Em 1930 Getúlio traiu Washington Luiz e se aproveitou das dissensões entre São Paulo e Minas Gerais para lançar-se ao lado de João Pessoa como candidato da Aliança Liberal. A derrota seria certa se não houvesse o concurso de uma oligarquia dissidente, de um movimento capaz de sustentar militarmente a candidatura e do inesperado: a morte de João Pessoa por desavenças locais, porém atribuídas ao governo federal, contribuiu para que os tenentes e a ala radical gaúcha (João Neves da Fontoura, Oswaldo Aranha e Batista Luzardo) empurrassem Vargas a um movimento que ele evitou ou fingiu evitar quase até o fim.

Por trás dessa trajetória que parece linear vemos a hesitação do personagem. Traços que o acompanharam a vida toda e foram registrados em muitos estudos biográficos mostram um homem sempre reticente, de silêncios desconcertantes e sorriso sinuoso.

Pragmático, ele soube unir os velhos chimangos e maragatos em torno de si em 1930. Quando confrontou a revolta paulista de 1932, personalidades de ambas as facções se postaram ao lado dos paulistas, mas Getúlio Vargas obteve o apoio decisivo de quem comandava a Brigada Militar: o interventor Flores da Cunha.

Depois da pacificação e quando já caminhava para a ditadura, Getúlio Vargas se aproximou dos constitucionalistas que haviam lutado contra ele, fossem antigos “carcomidos” do PRP, fossem os do Partido Democrático paulista. Nomeou-os para o seu ministério (Macedo Soares, Vicente Rao), aceitou um interventor civil e paulista (Armando Salles de Oliveira) e, mais tarde, atraiu para si até Roberto Simonsen, o responsável da Fiesp pela mobilização industrial no levante de 1932. Por outro lado, perseguiu seus antigos aliados, afastou-se até dos mineiros Antonio Carlos e Olegário Maciel a quem devia a sua candidatura em 1930 e o apoio decisivo de Minas em 1932. Abandonou também Flores da Cunha.

Os exemplos de um equilibrista, do oportunista sempre capaz de se dobrar ao vento das mudanças políticas de ocasião, de abandonar velhos amigos e incorporar antigos adversários são muitos. Mas como historiadores imprimimos uma racionalidade em meio às indecisões que, ao fim das contas, são o imponderável da história, o que há de mais humano no personagem.

Estado Novo

Getúlio não acreditava no liberalismo. Ele lia o salazarista Antonio Ferro e as entrevistas de Mussolini a Emil Ludwig depois de 1930. E antes fora leitor de Oliveira Vianna. Assim, manipulava os políticos porque também os tinha em baixa estima. Não por suas individualidades, mas pelo jogo cansativo e deletério que, aos seus olhos, eles representavam. O antípoda do varguismo sempre foi o liberalismo sui generis do Brasil.

Por trás do jogo, houve a crença perene numa nação abstrata que se confunde com o Estado totalmente centralizador. Nela habitaria um povo que devia ser dirigido. E a direção não se exerceria apenas sobre as massas trabalhadoras, a quem “concedeu” direitos como o salário mínimo anunciado em 1930 e regulamentado em 1940 ou a Consolidação das Leis do Trabalho em 1942. Ela se voltava também às classes patronais e à economia como um todo. Getúlio Vargas, o candidato de uma Aliança Liberal, tinha lido uma obra que denunciava o espírito de seu tempo: Économie dirigée, économie scientifique de Charles Bodin…

Não se pode dizer que Getúlio Vargas escolhera o caminho ditatorial em 1937 apenas por interesse pessoal pelo poder. A vaidade é intrínseca ao homem público. Mas Vargas foi sempre castilhista e servidor fiel da ditadura de Borges de Medeiros no Rio Grande do Sul. Desde 1930 falou abertamente na necessidade da ditadura para completar a obra da Revolução de 1930. E, embora ludibriando os aliados e adversários com falsas promessas eleitorais desde que se tornara governante constitucional e eleito indiretamente pela Assembleia Constituinte em 1934, ele jamais deixou de crer que instituições democráticas eram apenas a forma de perpetuação dos vícios republicanos.

Getúlio Vargas manipulou o sentimento anticomunista que se avolumou nas Forças Armadas e, simultaneamente, cortou as pretensões de integralistas civis e militares, o que culminaria na estranha tentativa de golpe perpetrado pelos fascistas locais em 1938. Estranha porque, como nos contam Helio Silva e Edgard Carone, sua vida correu perigo sem que tropas militares fossem mobilizadas a tempo para sustar o ataque ao Palácio Presidencial.

Getúlio Vargas era fascista? Em 1935 ele aproveitou a onda anticomunista para pedir à Câmara o estado de guerra, mas permitiu depois a macedada (anistia a uma parte dos presos políticos de 1935). Suas promessas a Plinio Salgado em 1937 de que ele seria o ministro da educação num governo ditatorial baseado na doutrina integralista foram solenemente abandonadas logo depois do golpe que instalou o Estado Novo. Lira Neto iniciou sua biografia com a recepção que Getúlio Vargas deu ao representante de Mussolini. Diante da saudação fascista com a mão erguida pelo visitante, um incomodado Getúlio apenas olhou e… sorriu… Mestre das acomodações? A relação com a gestualidade fascista podia ser um índice de seu compromisso sempre moderado com homens, mulheres e ideias.

Segundo Lira Neto, ao entrar no trem que o levaria de Porto Alegre à tomada do Palácio do Catete no Rio de Janeiro em 1930, uma menina lhe presenteou com o lenço vermelho característico de seus adversários maragatos. Getúlio Vargas não teve pejo de enlaçá-lo ao pescoço. Da mesma maneira, em sua vida pessoal ele parece ter sofrido com o fim do romance adúltero que manteve com sua “bem amada” Aimmée Sotto Mayor Sá, então esposa de seu auxiliar de gabinete da presidência. Afinal, quando o falatório o expôs ao possível confronto com a opinião conservadora e católica de seus aliados, abalando a imagem de “pai” dos pobres, e expondo-o a possíveis reações de sua família e de seu próprio auxiliar, ele deixou que a bien-aimée partisse para viver em Paris.

Não há novidade numa história de negaças com os Estados Unidos e a Alemanha em busca da construção de uma usina siderúrgica e do aparelhamento das Forças Armadas. Foi a dança de Getúlio. Com isso visava assentar bases mais sólidas para a industrialização e contentar os reclamos dos militares. Ao contrário do que se imagina, o ditador não foi o todo poderoso e teve que se equilibrar perante mais de uma conspiração dos generais Dutra e Goes Monteiro.

Trabalhadores

Em 1943 o tempo de Getúlio Vargas começou a mudar. Líderes da elite mineira lançaram o famoso manifesto pela democracia e os estudantes de Direito em São Paulo começaram a resistência contra o Estado Novo sob forte repressão policial. Fascistas notórios como Dutra e Goes Monteiro, cientes da virada na II Guerra a favor dos aliados, converteram-se oportunamente à democracia e passaram a vincular a luta contra o fascismo da Força Expedicionária Brasileira na Itália à queda de Vargas.

Mas Getúlio Vargas também mudara. Aproximara-se demais dos trabalhadores para não lhes buscar apoio quando lhe faltava a concordância das classes dominantes. Continuava a ter empresários fiéis, como Hugo Borghi que ganhara dinheiro com algodão no Estado Novo (embora fosse veterano constitucionalista de 1932). Mas dependia cada vez mais do apelo aos trabalhadores para continuar no poder ou, ao menos, ter uma saída digna.

O queremismo (estudado por Michele Reis de Macedo) foi um movimento surgido em março de 1945 a partir da manifestação da Panela Vazia em São Paulo. Doravante as manifestações dos estudantes paulistas pela volta do regime constitucional era atacada pelos próprios trabalhadores, acusados de arruaceiros e bêbados. Em maio, foi lançado como movimento queremista no Rio de Janeiro em função da palavra de ordem gritada nas ruas: “Queremos Getúlio”.

Os queremistas reivindicavam a permanência de Getúlio Vargas no poder e uma Assembleia Nacional Constituinte. Caso houvesse eleições defenderiam a candidatura de Vargas, contrariamente à vontade da cúpula das forças armadas e dos políticos liberais da UDN e outros partidos. Os comunistas aderiram ao queremismo, propugnando a “constituinte com Getúlio”. E contrariamente ao que os teóricos do populismo (como Francisco Weffort) afirmavam, uma onda de greves se ergueu e com participação ampla e autônoma de homens e mulheres operárias, como demonstrou o historiador Fernando Sarti Ferreira.

Mundividência modificada

Três discursos de momentos distintos nos mostram a consolidação dos eixos de sua formação: a recusa dos extremos ideológicos, o trabalhismo e o antiliberalismo.

Em 1936, Getúlio Vargas dizia que “o programa apregoado pelos sectários do comunismo no Brasil, ignorantes do que vai pelo país e vazios de ideias válidas, incluía, como aspiração do proletariado nacional, reformas já executadas e em pleno vigor. O nosso operário nada teria a lucrar com o regime soviético. Perderia, pelo contrário, as conquistas obtidas como concessão espontânea dos poderes instituídos, em troca da submissão ao trabalho forçado e coletivo”. Ou seja, o programa comunista já fora realizado por ele como concessão.

Getúlio Vargas costumava escrever as ideias centrais dos seus discursos. Depois eram reescritos por auxiliares e voltavam às suas mãos para correções, dentro das necessidades da retórica teatral da política. No discurso de 13 de maio de 1938, após o levante integralista de 11 de maio, ele disse: “Assim como ontem, na defesa da integridade e da honra nacional, repelimos os extremistas da esquerda, enfrentamos, hoje, sem vacilações, os extremistas da direita. Ambos se equivalem nos seus meios e objetivos, e encontram igual repúdio na opinião pública”. Em certo trecho revela a qual classe primeiro se dirige, para em seguida diluí-la na ideia de povo: “eu esperava uma demonstração das classes trabalhadoras e recebi uma demonstração de todo o povo brasileiro!”.

Em 29 de novembro de 1946, no discurso pronunciado em comício do PTB em Porto Alegre, ele declarou: “A velha democracia liberal e capitalista está em franco declínio porque tem seu fundamento na desigualdade. A ela pertencem, repito, vários partidos com o rótulo diferente e a mesma substância. A outra é a democracia socialista, a democracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. (…) E já que as nossas atividades na vida pública, por imposição legal, devem orientar-se na órbita dos partidos, se um conselho posso dar ao povo é que se integre na ação do Partido Trabalhista”. Ou seja, a democracia de partidos é uma imposição legal, portanto, não é necessariamente o melhor sistema, mas ele se adapta a isso recorrendo aos trabalhadores.

Mudança? Sim, sem dúvida. A aproximação com a classe trabalhadora que se auto-organiza modifica o líder. Continuidade? Decerto, posto que a democracia liberal continua sua inimiga.

Democracia racionada (1945-1964)

Este é o período mais conhecido da trajetória de Getúlio Vargas. É o clímax das biografias, porém sem suspense. Registram-se a fundação do PTB, a adesão do seu líder à doutrina social democrata europeia, despida evidentemente de qualquer referência marxista; a pífia participação dele no Senado; as derrotas de candidatos apoiados por Vargas nas eleições estaduais; a oposição crescente da classe média a ele; e, finalmente, sua volta em campanha triunfante em 1950.

A campanha foi muito bem coberta pelas memórias de Samuel Wainer (Minha Razão de Viver), o chefe do jornal getulista Última Hora. Aliás, vítima de uma CPI do Congresso que descobriria que ele recebia verbas públicas… tanto quanto os demais órgãos de imprensa.

Getúlio nomeou um “ministério reacionário”. Seu ministro Horácio Lafer aumentou o imposto de renda e foi combatido pela própria base aliada do governo; e o demissionário Ministro Danton Coelho (o único do PTB!) clamou “Libertemos Getúlio”, pois ele estaria preso pela sua falsa maioria no parlamento…

No fim de 1952, Getúlio Vargas fez três anúncios que exaltaram o seu campo inimigo: descartou o envio de tropas à Guerra da Coréia; aumentou em 300% o salário mínimo; e limitou a remessa de lucros das empresas estrangeiras. Os Estados Unidos passaram a se opor ao governo brasileiro, a FIESP criticou publicamente os aumentos salariais e as Forças Armadas passaram a ameaçar continuamente a legalidade.

No caso da Petrobras, as memórias de Almino Afonso reconstituem o clima da época. Getúlio Vargas era favorável ao monopólio estatal, mas enviara um projeto sem essa cláusula ao congresso. A empresa seria de economia mista (51% da União). A esquerda o rotulou de “entreguista”, mas segundo Tancredo Neves, então Ministro da Justiça, a ideia era não confrontar logo de início o Congresso e dar margem para que uma proposta mais avançada viesse de algum deputado “neutro”. Deu certo: a própria UDN aprovou o monopólio estatal.

Em 1952 o Clube Militar trocou de diretoria. Os nacionalistas foram derrotados pelos entreguistas, afinados com a política externa dos Estados Unidos. Foram 8.288 sufrágios contra 4.489. Havia uma componente militar permanente na crise política e que se pode acompanhar por um livro cativante, as Memórias de um Soldado de Nelson Werneck Sodré.

O discurso de 1954, em que o presidente confirma novo aumento do salário mínimo é exemplar da radicalização ou da fuite en avant de Getúlio Vargas. Ele homenageia o “ex-ministro do Trabalho João Goulart, incansável amigo e defensor dos trabalhadores”, a construção de habitações populares, “o merecido repouso aos 55 anos de idade”, participação de representantes dos trabalhadores na gestão da previdência e o projeto que estende aos empregados rurais os preceitos da legislação trabalhista.

O tom alarmou elites políticas, empresariais e militares e desnorteou a esquerda. Ele mostrava que seus inimigos não tinham a arma com que eles próprios legitimam seu regime: o voto. Além disso, conclamava a organização sindical e partidária dos trabalhadores: “Não tendes armas, nem tesouros, nem contais com as influências ocultas que movem os grandes interesses. Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências, é preciso unir-vos e organizar-vos. União e Organização devem ser o vosso lema. Há um direito de que ninguém vos pode privar, o direito do voto. E pelo voto podeis não só defender os vossos interesses como influir nos próprios destinos da nação. Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo”.

O tema era ameaçador porque Getúlio Vargas passara seu governo sendo acusado de defensor de uma República sindicalista e de tramar uma união com a Argentina de Peron. A defesa da solidariedade oposta à ideia de caridade dos poderosos, a ausência de valores religiosos no discurso e o convite a uma auto-organização eram chocantes para os de cima e até mesmo aliados.

A crise de agosto

Segundo Jacob Gorender em páginas iniciais de seu Combate nas trevas a política de Getúlio Vargas assimilou trabalhismo e industrialização (este seria um terreno de interesse comum entre burguesia e trabalhadores). Com a crise do Estado liberal-oligárquico o trabalhismo, indesejado pelos empresários, seria o preço a se pagar por um governo que precisava do apoio eleitoral das massas e que, ao mesmo tempo, apoiaria o projeto industrialista.

Acrescente-se que Getúlio Vargas não pretendia atacar a ordem dos fazendeiros exportadores, já que o país continuava dependendo do café para obter divisas. Vargas não se equilibra entre duas classes (burguesia industrial e proletariado), mas entre três ou quatro (devemos acrescentar a oligarquia rural e a classe média mobilizada). Tanto que só tardiamente propôs a extensão da legislação trabalhista ao campo, sem nenhum resultado. Os trabalhadores rurais, considerados por ele “incultos” e que não tinham direito ao voto, seriam passivos e poderiam ficar por muito tempo ainda fora de seu projeto como preço a pagar pela manutenção da ordem.

Seu jogo, na ótica positivista, era de soma múltipla e não de soma-zero, como nos diz Jacob Gorender. No entanto, ele sabia que eram necessárias concessões, pois qualquer aliança tinha limites quando tocava o interesse fundamental das classes dominantes: a taxa de lucro. Assim, quando crescem as greves, o líder não pode mais ser a forma em que os contrários se movem sem ameaçar o todo.

Em desespero e com os próprios trabalhadores em movimentos grevistas, Vargas atacou muitas frentes: os Estados Unidos, ao não apoiar a guerra da Coreia e ao acabar com a comissão mista Brasil-EUA; os exportadores de café, já que os EUA impuseram restrições ao café brasileiro; as companhias de eletricidade que criticaram a criação da Eletrobrás; as Forças Armadas e a Fiesp, devido ao aumento de 100% do salário mínimo etc.

O antigo intelectual trotskista, Mario Pedrosa, associava-se a Carlos Lacerda nos ataques ao governo. O Partido Comunista chamava Getúlio Vargas de entreguista e tinha a mesma opinião que parte do próprio partido do presidente. Sobre a imprensa, basta ler a extensa pesquisa comparativa do estudioso argentino Ariel Goldstein acerca do comportamento de O Globo e de O Estado de S. Paulo no último mandato de Getúlio Vargas e no primeiro de Lula.

No dia 19 de junho de 1954 o editorial do jornal O Estado de S. Paulo declarava que se Getúlio Vargas “escapou do impeachment, graças à generosidade excessiva da Câmara, não deve escapar à condenação das contas que apresentou”. O Jornal dizia que no caso do impeachment preponderaria a interpretação política, já as contas ou estão certas ou não estão. O presidente estaria atacando as liberdades políticas e as finanças da nação.

O mês de agosto de 1954 já é muito conhecido. Recomenda-se a leitura do relato de José Sette Camara, assessor de Lourival Fontes, ministro de Getúlio Vargas, apesar da recorrente antipatia do autor por Jango. Lira Neto se debruçou mais sobre o atentado da Rua Toneleros e trouxe à baila a suspeita de que o próprio Lacerda tenha atingido acidentalmente o Major Vaz (já que ele nunca apresentou o seu revólver à polícia) e as incongruências da investigação produzida pela Aeronáutica naquilo que ficou conhecido como a República do Galeão.

O populismo

Como demonstrou Angela Castro Gomes, populismo foi uma categoria de longa trajetória nas Ciências Sociais, quase sempre acentuando um suposto caráter passivo da classe trabalhadora. Depois disso, foram tantos os historiadores que já demonstraram a capacidade de iniciativa da classe trabalhadora, como Paulo Fontes e Murilo Leal sobre os anos 1950.

O trabalhismo nada mais foi do que a política nacional popular da esquerda latino-americana de viés social democrata correspondente à periferia do capitalismo. Originalmente, o termo designava uma corrente teórica russa do socialismo agrário do século XIX. Na América Latina o termo foi empregado para designar a relação direta entre líderes populares e as massas urbanas supostamente desorganizadas sem a intermediação de partidos. Como se líderes europeus mantivessem uma relação racional e orgânica com seus eleitores, mas nós não…

No livro de Lira Neto os trabalhadores têm uma presença ornamental. No entanto, ele escapou ao jornalismo retrospectivo, que trata os fatos uma vez encadeados cronologicamente como se tivessem que ter acontecido daquela maneira. Assistimos em sua obra a um líder cujo carisma estava em construção, jamais sendo um simples dom natural; cujo maquiavelismo em 1930 foi feito mais de oportunidade do que da matreirice que só viria com o tempo; e cujo poder absoluto depois de 1937 é matizado pela instável sustentação militar.

O líder que emerge em 1950 nos braços do povo seguramente é outro. Guarda muito do passado, mas foi profundamente modificado pelo próprio “povo” que era ao mesmo tempo objeto e sujeito da Era Vargas, sofrendo e modificando as políticas públicas.

O impasse do trabalhismo é que ele é uma ideologia da conciliação que traz em seu ventre o conflito. Isso funciona enquanto o crescimento econômico permite o jogo de soma múltipla de sua ótica positivista. Quando a massa de mais valia social tributável se estreita, os capitalistas atacam o Estado, a crise fiscal se instala, os trabalhadores aumentam o número de greves e o jogo se torna de soma zero. O confronto latente explode e alui a base de sua ideologia: a própria conciliação.

Ao contrário dos países centrais, na periferia a massa de mais valia tributável (ou em termos políticos, a margem de manobra para distribuição de benefícios sociais) é estreita e a duração da política trabalhista instável é menor.

A crise de agosto de 1954 foi sustada pelo suicídio de Getúlio Vargas. Mas seu gesto, expressão de um sistema incapaz de consolidar uma democracia participativa, apenas adiou a solução definitiva. Esta, vinda dos quartéis, destruiu as melhores potencialidades civilizatórias do Brasil e nos legou o país que temos.

Getúlio Vargas deixou respostas suspensas. Suas faces foram a de um revolucionário aparentemente a contragosto, de um legalista apoiado no voto, de um ditador anticomunista, de um líder trabalhista sincero. Um dissimulado de sorriso enigmático. Em vista da obra realizada (a construção de um Estado) teria sido uma dissimulação honesta[ii]?

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Notas


[i] Versão atualizada de artigo publicado no extinto portal Carta Maior, 19-10-2015.

[ii] Torquato Accetto (1590/98 — 1640) publicou em Nápoles seu livro Da Dissimulação Honesta em 1641. Sob domínio espanhol e numa sociedade repleta de simuladores defendeu a cautela e a dissimulação. O livro foi redescoberto por Benedetto Croce durante a ditadura fascista. Não se trata de produzir a mentira, mas de adiar a verdade embaraçosa e afirmar a razão de Estado. Decerto o golpe de 1937 baseou-se na mentira do Plano Cohen, já as negaças com EUA e Alemanha se fundamentaram na verdade do interesse nacional. O que prevaleceu, a simulação e a trapaça ou a dissimulação honesta?


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