Por JEAN MARC VON DER WEID*
Além de punir exemplarmente, é hora de abrir a discussão sobre o papel das Forças Armadas para redefinir a sua missão e a sua dimensão
1.
Já correu tanta tinta desde as primeiras revelações do inquérito da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado do inominável que chega a ser pretensão dar algum palpite a respeito. Vou evitar as muitas abordagens para colocar algumas preocupações que não vi refletidas no que li ou ouvi.
São tantas e tão detalhadas informações sobre a intentona militar que nem vale a pena discutir a narrativa ridícula da defesa de Jair Bolsonaro e de seus cúmplices. Chegamos ao ponto em que advogados e os próprios acusados querem que se acredite que conspirar para dar golpe e matar autoridades máximas da República não são crimes porque não foram mais do que intenções (“quem nunca sonhou em matar um seu inimigo”?).
O que me preocupa não é a culpabilidade dos indiciados, amplamente demonstrada, mas uma curiosa seleção dos criminosos dentro do universo muito mais amplo dos conspiradores. Por que estes trinta e tantos? Por que somente trinta e tantos?
Há uma narrativa, adotada desde cedo pelo representante das Forças Armadas no ministério da Defesa, José Múcio, buscando separar “CPF de CNPJ”. Em outras palavras, apontando para a culpa de indivíduos e isentando as instituições militares. Boa parte da mídia convencional embarcou nesta linha e busca com lupa evidências mostrando que, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica detiveram o golpe, através da recusa de seus chefes em participar da quartelada.
O general Freire Gomes e o Brigadeiro Batista aparecem como candidatos a heróis nacionais pela sua “defesa das instituições democráticas”. Há um silêncio embaraçado sobre o comportamento golpista do comandante da Marinha, Almirante Garnier. Afinal, se a não adesão dos dois primeiros permite dizer que Exército e Força Aérea não se envolveram no golpe, a adesão do almirante implicaria a Marinha enquanto instituição.
As ditas narrativas omitem um fato essencial nesta crise envolvendo as Forças Armadas, a total anarquia que se instalou na oficialidade das três forças com o governo do energúmeno. Generais de três estrelas trocam mensagens discutindo o golpe com subordinados, generais e coronéis, sem qualquer respeito pela hierarquia. Campanhas pelas redes socais foram promovidas para pressionar e intimidar oficiais generais.
Um abaixo assinado de coronéis da ativa e da reserva foi dirigido ao Alto Comando do Exército instando-o a aderir ao golpe. Coronéis assumiram a responsabilidade de permitir acampamentos nas portas dos quartéis, ignorando as regras de segurança militar, sem que os superiores ousassem ou quisessem enquadrá-los. Oficiais de todas as patentes publicaram opiniões políticas em seus sites abertamente, fossem eles da ativa ou da reserva. Neste caos, quem fala em nome das instituições militares?
O Alto Comando do Exército discutiu o golpe em suas reuniões meses a fio, sem que ninguém alertasse para a total subversão da ordem neste comportamento. Se alguma mensagem institucional existiu, ela se resumiu a um comunicado, apoiando a subversão em curso nos acampamentos onde se rezava por uma ditadura militar, comunicado assinado pelos comandantes das três armas.
2.
Não há uma boa explicação para a prisão de uns e para a não prisão de outros denunciados, sobretudo porque entre eles estão dois dos mais implicados na conspirata, os generais Braga Neto e Augusto Heleno. E o próprio Bolsonaro. Também estão fora do processo inúmeros oficiais que se engajaram na subversão em vários escalões, sem falar nos muitos que se omitiram no seu dever de denunciar o golpe em curso.
A razão da PF para não enjaular os três citados e outros pode ter sido mais política do que processual. Como o próprio Braga Neto comenta com um interlocutor em zap citado pelo inquérito: “eles (STF) não vão ter coragem de mexer com o exército”. Parece que tiveram, mas só até certo ponto.
Fico me perguntando por que oficiais amplamente implicados na intentona ficaram fora do inquérito. O general Arruda, por exemplo, breve comandante do Exército no início do governo Lula e que peitou o ministro da Justiça, Flávio Dino, na noite do quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. O general ameaçou a PM do Distrito Federal com tanques formados em posição de combate.
A ameaça direta e brutal (“tenho mais armas que vocês”) tinha por objetivo aparente resguardar os golpistas que tinham refluído da Esplanada para buscar guarida no acampamento protegido há meses pelas tropas do Quartel General do Exército.
Como o general permitiu que a PM dissolvesse o acampamento e prendesse mais de mil manifestantes no dia seguinte, a lógica aponta para a necessidade de facilitar a fuga de elementos mais importantes, retirados do local durante a noite. Foram citados por veículos da imprensa a esposa do general Villas Boas e “dezenas de kids pretos”, infiltrados na manifestação para orientá-la no quebra-quebra. Nunca se saberá quantos e quem foram retirados na calada da noite, mas a responsabilidade do comandante do Exército é flagrante.
O mesmo oficial enfrentou o presidente Lula quando este vetou a nomeação do coronel Mauro Cid para o comando das Forças Especiais em Goiânia, o que levou à demissão do general Arruda do comando do Exército, ato que jogou a pá de cal na intentona.
Poderia citar dezenas de oficiais comandantes de quartéis em todo o país, que permitiram a montagem de acampamentos de golpistas por meses a fio, com arengas subversivas dos civis aos soldados e até pronunciamentos dos oficiais mais ousados em apoio aos propósitos de multidões que portavam faixas pedindo um golpe militar.
Vão me dizer que estes não participaram da intentona? Tanto nos atos, como nas avaliações dos coordenadores do golpe, fica claro que o envolvimento era generalizado. “De duas estrelas para baixo estão todos conosco”, aparece em uma das muitas gravações comprometedoras de Mauro Cid. A frase indica que os generais de divisão e de brigada, os coronéis e majores, os capitães e tenentes, seriam simpáticos ao golpe.
Quantos estariam prontos para agir uma vez dada a ordem? Seria preciso uma baita devassa, mas não seria difícil identificar o comprometimento dos golpistas, já que o golpe era discutido abertamente em todos os níveis da oficialidade. Um levantamento dos sites dos oficiais, ao longo do período entre o Sete de Setembro de 2021 e o 8 de janeiro de 2023, encheria terabites de informação comprometedora. E sabemos hoje que não adianta apagar as mensagens, há modos de recuperar tudo.
3.
O que quero questionar neste artigo é a tática, estratégia ou mero subterfúgio que busca “dar um exemplo”, punindo exemplarmente alguns dos implicados e passando o pano para o envolvimento das Forças Armadas, enquanto instituições, na intentona. Como tática (“vamos pegando aos poucos os implicados”), ou estratégia (“o susto vai dissuadir os candidatos ao golpismo”) a abordagem é furada. Como subterfúgio, isto é, como parte de um comportamento histórico repetitivo no tratamento dos golpes e intentonas da direita, e que leva a uma suposta pacificação, ele é suicida.
É preciso não enfiar a cabeça na areia, tal como a lendária avestruz. Não querer ver o problema não o faz desaparecer. O fato é que as Forças Armadas brasileiras sempre tiveram uma tendência golpista e sempre procuraram uma forma de tutelar a sociedade civil e as instituições da República, desde a sua proclamação em 1889.
No episódio mais recente e prolongado deste comportamento, a ditadura de 64/85, o retorno à caserna só se deu pela ação do presidente/ditador de plantão. O general Ernesto Geisel, se deu conta do caráter corrosivo da presença militar no executivo e da ruptura hierárquica provocada pelo fortalecimento do aparelho de repressão política, criando um poder paralelo. Para preservar a instituição militar, Ernesto Geisel promoveu uma retirada controlada, buscando garantir a intocabilidade dos implicados, tanto nos atos golpistas como nos atos de repressão, como torturas e assassinatos.
Ernesto Geisel teve que vencer a resistência da “tigrada”, chegando a afastar generais de três estrelas, inclusive o comandante do Exército, e dissolvendo as unidades especiais de repressão, mandando torturadores e assassinos para postos no exterior. Ernesto Geisel não se deu conta de que a integridade e a disciplina do exército e das outras forças não se consolidariam sem o expurgo dos criminosos, mas como ele era parte deste grupo, preferiu lidar “com alguns CPFs”, deixando a máquina intocada.
As Forças Armadas se afastaram do exercício direto do poder, mas nunca deixaram de ser uma ameaça para a nossa jovem democracia restaurada. Nada de justiça de transição, nada de colaboração para encontrar os desaparecidos, sequer um comunicado assumindo e se desculpando pelos dois crimes: o golpe e a repressão. Ao contrário. O culto da “revolução redentora” continuou rolando, com ordens do dia altamente subversivas a cada 31 de março, com os presidentes progressistas fingindo não ver.
Era mais insustentável defender publicamente os torturadores e assassinos com pronunciamentos oficiais, até porque as Forças Armadas nunca admitiram seus atos criminosos. Mas não foram poucos os comunicados defendendo a necessidade da “guerra contra o terror”, justificando implicitamente a “guerra suja”, sem contar os oficiais da reserva abertamente cultuando personagens como Brilhante Ustra, vide o execrável Jair Bolsonaro.
O caldo de cultura em que a oficialidade foi formada é a apologia da ditadura e dos torturadores, sendo a expressão política desta posição o próprio Jair Bolsonaro, ovacionado em dezenas de formaturas de oficiais, ao longo dos últimos 10 anos. O inominável nunca escondeu que considerava a ditadura muito mole, por não ter matado uns “30 mil comunistas”.
Mas se Jair Bolsonaro é a expressão político ideológica mais evidente da oficialidade, a sua ascensão não ocorreu por acaso. No turbilhão do início do segundo mandato de Dilma Rousseff, com a LavaJato a mil por hora com denúncias midiatizadas amplamente, a crise econômica corroendo os ganhos de renda dos pobres (auferidos nos governos populares) e a direita levantando a cabeça desde as manifestações de 2013, os líderes do que se chama de “partido militar” viram a oportunidade para retomar um papel preponderante.
Os capos militares, tendo à frente o general Villas Boas, engoliram o desprezo que tinham pelo tenentinho indisciplinado e candidato a terrorista que foi passado à reserva como capitão com todos os direitos para evitar mais marolas com uma expulsão e o bancaram como candidato à presidência da República. Para facilitar o caminho do energúmeno o general Villas Boas, então comandante do Exército, enquadrou o Supremo Tribunal Federal e conseguiu a prisão do Lula, favorito às eleições de 2018.
4.
O grupo de generais que cercou Jair Bolsonaro na campanha tinha a perspectiva de poder manipulá-lo na presidência. Esqueceram de combinar com o próprio, que foi se livrando dos generais mais reticentes ou independentes e atraindo milhares de oficiais da ativa e da reserva para postos de governo.
Jair Bolsonaro concedeu privilégios para os oficiais (muito menos para os suboficiais e soldados) na reforma da previdência, entregou orçamentos para as Forças Armadas maiores do que os da saúde e educação somados e seguiu no seu esforço de tornar-se o “mito” adorado pela oficialidade, com o seu discurso anticomunista e de louvação da ditadura. A criatura engoliu o criador e virou a referência político ideológica, passando por cima de hierarquias. O período do governo Bolsonaro produziu uma oficialidade com forte ativismo político de extrema direita espelhando-se no comportamento do presidente.
O partido militar acabou se desmoralizando junto com a sua criatura na longa e profunda crise da COVID19 e em uma gestão medíocre do executivo em todos os quesitos: economia, educação, saúde, meio ambiente, outros. A aposta golpista, defendida abertamente por Jair Bolsonaro ao longo de sua gestão tornou-se dependente do seu carisma como chefe político ideológico, tanto nas hostes da extrema direita entre os eleitores, como na oficialidade.
O projeto de poder de Jair Bolsonaro e do partido militar esbarrou em uma reação da sociedade em defesa da democracia, o que acabou levando a uma polarização que deu a vitória a Lula, embora muito estreita. Jair Bolsonaro trabalhou o tempo todo com uma aposta que eu chamei de jogo de “bola ou búlica”: ganhar no voto ou perdendo, desmoralizar as eleições e dar um golpe. Se tivesse ganho as eleições teria quatro anos para preparar a sua perpetuação no poder, ao estilo do ditador húngaro Orban ou do ditador Maduro da Venezuela.
5.
Neste ponto, quero voltar a uma discussão sobre as causas do fiasco da intentona. Comparando com as condições do golpe vitorioso de 1964, Jair Bolsonaro tinha algumas vantagens e algumas desvantagens para obter o mesmo resultado.
Como vantagem ele tinha uma base de apoio na oficialidade muito mais forte do que a liderança golpista de Castelo Branco e Costa e Silva. O reflexo golpista em 1964 vinha do medo da oficialidade em relação a várias manifestações progressistas na suboficialidade e na soldadesca. O golpismo tinha apoio do “grande irmão” americano, com a CIA participando do complô e uma força armada mista se colocando na costa do nordeste como eventual suporte.
O Alto Comando estava dividido entre legalistas e insurrectos, com os comandantes do terceiro e do segundo exércitos leais a Jango até a undécima hora. A direção do golpe vacilou em dar a ordem de marcha do golpe até o general Mourão tomar o pião na unha e deslocar sua brigada de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, demonstrando que o dispositivo militar legalista era um castelo de cartas.
Já Jair Bolsonaro tinha uma unanimidade combativa na oficialidade “abaixo das três estrelas”, pronta para marchar ao receber a ordem. Mas o alto comando se dividiu, não por apego à democracia e à legalidade, mas por temor do day after, sem o apoio americano.
O enfático apoio à ordem institucional no Brasil, expresso pelo presidente Joe Biden e pelos comandos militares americanos foi um elemento chave para esta vacilação. Segundo o que apurou o inquérito da PF, três generais eram francamente favoráveis ao golpe, cinco eram contrários e os outros oito estavam no muro. Mais uma vez, foram os comandantes das regiões sul e sudeste os que mais pesaram no processo de decisão que paralisou o golpe, além do comandante do Exército.
Notem bem que esta posição esteve longe do exigido por uma postura democrática. Nenhum dos oponentes ao golpe denunciou a intentona nem prendeu o presidente golpista que os convidou a violar a constituição e derrubar o regime. Em um inquérito mais rigoroso estariam todos acusados de cumplicidade ou de prevaricação.
Ao não contar com o apoio unânime do Alto Comando do Exército, nem com o apoio do comandante da Aeronáutica, Jair Bolsonaro passou a tentar convencê-los a engajarem-se, disfarçando o golpe com projetos de decretos pseudo constitucionais tipo decretação de estado de sítio. Por outro lado, os golpistas contavam com um acirramento das mobilizações da sociedade em favor do golpe, mas o tempo foi passando e os acampamentos foram se esvaziando de seus participantes menos aguerridos.
A tentativa de invasão do TSE no dia 12 de dezembro, com forte participação dos kids pretos açulando os manifestantes, não foi capaz de levar a massa a tentar ultrapassar a barreira onde alguns policiais do DF simulavam defender o local onde Lula era diplomado. Saíram dali para uma série de atos de vandalismo que anteciparam o 8 de janeiro, inclusive queima de ônibus e de um prédio da Polícia Federal. O atentado terrorista ensaiado e fracassado no aeroporto de Brasília, dias depois, também enfraqueceu o movimento golpista.
Todos os dados obtidos pelo inquérito da PF confirmam que os militares do círculo de Jair Bolsonaro insistiram na assinatura de um decreto que fosse o estopim para o golpe em todo o país, mas o presidente amarelou. Na hora H, o fator liderança carismática centralizado na figura do mito passou a funcionar como um freio ao golpe, já que faltou ao candidato a ditador a coragem de dar o salto no escuro e apelar para a oficialidade “abaixo das três estrelas”, passando por cima dos mais graduados. Com medo de ser preso, Jair Bolsonaro foi visitar o Mickey em Miami, deixando a responsabilidade pela intentona nas mãos de seus comparsas. Pelo sim, pelo não, o energúmeno levou as joias das arábias e outros presentes, para fazer um pé de meia.
Com Lula no governo, com uma posse apoteótica em Brasília, e com Jair Bolsonaro em Miami, as condições para o golpe ficaram muito mais limitadas. Quem poderia tomar a iniciativa de dar a ordem de marcha? O novo comandante do exército era um golpista de primeira hora, mas a oposição no Alto Comando ficou mais consistente. Garnier já não era comandante da Marinha e não se sabe a posição do novo comandante da Aeronáutica. Os kids pretos continuavam mobilizados e a polícia do DF, sob comando do ex-ministro da justiça de Bolsonaro, contava como apoio.
A mobilização da extrema direita para a “festa de Selma”, no dia 8 de janeiro, era uma abertíssima convocação para um ato subversivo espetacular, mas passou sem ser detectada pelos serviços de inteligência do novo governo. O que esperavam os golpistas? Tomar os palácios dos três poderes era um gesto simbólico importante, mas sozinho não derrubaria nenhum governo. Reparem que não houve movimentação de tropas e a polícia presente assistiu ao quebra-quebra sem piscar. Sem oposição, as massas ululantes cansaram da quebradeira e refluíram para o acampamento no Quartel General do Exército quando a intervenção do governo federal na segurança do DF forçou a PM a se mexer e limpar a Esplanada dos baderneiros retardatários.
O ato de destruição na Esplanada gerou uma iniciativa dos comandos militares, através de seu representante no ministério da Defesa, propondo a Lula a assinatura de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para toda a região de Brasília. Se Lula tivesse engolido a isca o governo não cairia naquele momento, mas ficaria à mercê do Comando Militar do Planalto. Seria isso uma manobra tática para consolidar posições e chantagear o governo, cobrando, por exemplo, total autonomia do comando do Exército nas promoções e nomeações de oficiais generais (privilégio do Lula como comandante geral das forças armadas), além de outras benesses, como manter os oficiais contratados por Jair Bolsonaro, ou gordos orçamentos para as três Forças?
6.
O fato é que os eventos do dia 8 já ocorreram em um quadro político muito menos favorável para um golpe e, apesar do momento tenso do enfrentamento citado acima entre o general Arruda e Flávio Dino, a reação generalizada da sociedade e das instituições contra o golpismo isolaram o comando da intentona. Pouco tempo depois, com Lula se recusando assinar a GLO, prendendo os manifestantes e dissolvendo os acampamentos, a virada de mesa ficou totalmente descartada quando Lula demitiu o comandante do Exército que insistia na nomeação do coronel Mauro Cid para o comando das forças especiais, sem que houvesse qualquer reação em todos os escalões das três forças.
Lula não fez a limpa na alta oficialidade comprometida com o golpismo e sequer ousou nomear um novo comandante do exército fora da linha natural de sucessão. Por sorte ou por cálculo ele acertou no nome do general Tomás Paiva, acusado de “melancia” (verde por fora e vermelho por dentro) pelos golpistas, que assumiu com um discurso legalista e enfatizando a disciplina, a hierarquia e o profissionalismo. O general está muito longe de ser um democrata e também não prendeu Bolsonaro ao ser convidado para o golpe. Alguns anos atrás ele foi dos que seguiu a orientação do general Villas Boas e abriu a AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) para homenagens ao mito candidato à presidente.
A meu ver, o 8 de janeiro não fez parte de uma continuação do golpe tentado em dezembro. O objetivo era mais modesto: a afirmação de poder dos militares, visando blindar as Forças Armadas contra qualquer intervenção do novo presidente. Não vejo como aqueles movimentos poderiam levar, naquele momento, à derrubada do Lula. Os acampados foram uma massa de manobra para uma jogada menos ambiciosa dos militares, preservar sua autonomia esperando outra oportunidade no futuro.
Para concluir: o que estamos assistindo com os inquéritos é mais uma etapa da queda de braço entre o “partido militar” e o poder civil. Tanto o general Paiva como a PF e o STF (e o governo Lula?) estão tentando minimizar as perdas e conter os danos, reduzindo o expurgo do golpismo à ponta do iceberg.
Com a condenação de Bolsonaro, Braga Neto, Heleno e toda a caterva indiciada, não vamos nos livrar da sombra permanente do golpismo. Uma oficialidade de ultradireita, ressentida e ameaçadora vai continuar buscando a oportunidade da revanche.
A hora é abrir a discussão sobre o papel das Forças Armadas para redefinir a sua missão e a sua dimensão. E aprofundar a investigação das responsabilidades de centenas de oficiais que deveriam ser afastados das Forças Armadas por sua total refração aos princípios democráticos.
Já estou pronto para ouvir ou ler os comentários críticos de todos os “realpolitikers” da nossa esquerda: como fazer isso com a atual correlação de forças no Congresso, na sociedade, na mídia e na oficialidade? Concordo que não existe força suficiente hoje para mudar radicalmente o papel das Forças Armadas (e das polícias militares) e para limpar a oficialidade da sua marca golpista profundamente entranhada. Mas precisamos abrir este debate na sociedade para buscarmos mudar a correlação de forças. Sem isso estaremos eternamente a mercê do humor das casernas.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA