Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*
Para não conceder as progressões e promoções devidas aos docentes, o governo do estado do Ceará, utiliza-se da Procuradoria Geral do Estado
“Uma universidade que não tem um plano de si mesma, carente de sua própria ideia utópica de como quer crescer, sem a liberdade e a coragem de se discutir amplamente, sem um ideal mais alto, uma destinação que busque com clareza, só por isto está debilitada e se torna incapaz de viver o seu destino”
(Darcy Ribeiro).
No estado do Ceará, sob o governo de Elmano de Freitas, do PT, a instrumentalização da Procuradoria Geral do Estado – PGE, que já vinha do governo Camilo Santana, se tornou avassaladora. Todas as ações que impliquem qualquer tipo de repercussão financeira e/ou despesa de qualquer órgão da administração pública do estado tem de ter o “aval” PGE ou da Secretária de Planejamento e Gestão – SEPLAG.
No caso das universidades estaduais do Ceará (UECE, URCA e UVA), até as promoções e progressões do Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos – PCCV, que antes seguiam diretamente para a SEPLAG, e depois para publicação no diário oficial do estado, somente têm prosseguimento após o batismo da PGE. Por este intermédio, a Procuradoria Geral do Estado além de um órgão de assessoria jurídica, representação judicial, contencioso administrativo, recuperação de créditos, legislação e consultoria e assistência jurídica aos órgãos estaduais, tornou-se também, ao lado da SEPLAG, um instrumento político do executivo de controle, filtragem, contenção e retenção de gastos públicos, frente aos orçamentos dos órgãos estaduais.
Para não conceder as progressões e promoções devidas aos docentes, o governo do estado do Ceará, utiliza-se da Procuradoria Geral do Estado. De forma que um direito adquirido no Plano de Cargos, Carreiras e Vencimentos não pode mais ser implantado de forma automática após sua tramitação, como prevista no referido plano. Existem atualmente processos de promoção e progressão de docentes que estão há dois e até três anos na PGE. Processos que anteriormente eram publicados no diário oficial do estado em até três meses, após sua entrada no sistema pelo docente interessado. O que estamos assistindo é o represamento de processos que têm repercussão financeira através de um órgão jurídico do estado do Ceará, instrumentalizado pelo seu executivo para tal fim. No caso das I.E.S estaduais isto representa a própria quebra de seus PCCVs.
Outra função atribuída pelo governo do estado do Ceará à PGE vem ser a de criminalizar greves. O que está ocorrendo em pleno governo do PT. Foi assim com a greve do DETRAN-CE e está sendo assim com a greve das universidades estaduais: Universidade Estadual do Ceará – UECE; Universidade Estadual do Vale do Acaraú – UVA; e Universidade Regional do Cariri – URCA. No caso do DETRAN-CE, na página do Tribunal de Justiça do Ceará, foi publicada a seguinte notícia: “A Justiça do Ceará aumentou, nesta sexta-feira (05/04), de R$ 50 mil para R$ 100 mil o valor da multa diária por descumprimento da determinação de suspensão da greve do Sindicato dos Trabalhadores da Área de Trânsito (Sindetran). A decisão é do desembargador Washington Luís Bezerra de Araújo, que também fixou multa de R$ 15 mil aos diretores da entidade”.[i] O que se configura um caso típico de abuso de autoridade na aplicação da lei: pela posição da autoridade de usar e intimidação financeira através da imposição de multas e penalidades exorbitantes aos trabalhadores em greve para controlar ou manipular dirigentes e líderes.
Da mesma forma, a PGE utilizando os nomes das reitorias das três universidades estaduais entrou com decisão interlocutória objetivando a declaração da ilegalidade da greve das estaduais. Na Página do Tribunal de Justiça do Ceará, foi publicada a seguinte notícia: “Judiciário estadual determinou a suspensão da paralisação dos servidores da Fundação Universidade Estadual do Ceará (FUNECE), sob pena de multa diária no valor de R$ 10 mil, com ressalva da possibilidade de aplicação de outras medidas, caso necessário. A decisão é do desembargador Inácio de Alencar Cortez Neto e foi proferida nessa quarta-feira (03/04).”[ii]
No caso da URCA, a multa diária pelo descumprimento da suspensão da greve, aprovada no dia 27 de março de 2024, e deflagrada no dia 04 de abril de 2024, proferida pelo Desembargador Washington Luís Bezerra, foi de R$ 50.000,00, direcionada ao ente sindical.
No entanto, atuando de forma unificada as universidades estaduais do Ceará, até por terem cumprido os requisitos da lei de greve (notificação prévia, serviços essenciais, negociação coletiva, manutenção de serviços mínimos), responderam, cada uma em seu tempo, na forma da lei, ao Judiciário Estadual, dando continuidade à greve. A categoria entende que a greve é legal e legítima e o comando de greve unifica a luta nas três estaduais. Mas, a Procuradoria Geral do Estado não havia acionado somente o Judiciário Estadual na ocasião; já havia, também, no caso da URCA, através do ofício no 078/2024 – PGE/GAB, de 01 de abril de 2024, assinado pelo Procurador-Geral do Estado do Ceará, Rafael Machado Moraes, além de informado que iria entrar com “o ajuizamento de ação judicial buscando a continuidade dos serviços públicos prestados por essa entidade” (inclusive colocando o nome da URCA como sujeito agravante no processo de decisão interlocutória enviado ao Tribunal de Justiça do Ceará); também solicitou ao Reitor “exclusão da folha de pagamento dos servidores ausentes na prestação do serviço durante o movimento grevista.” Tem-se aqui um caso claro de abuso de autoridade e de descumprimento do artigo 9º da CF/88, que estabelece que é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devem por meio dele defender.
Antes mesmo da Procuradoria Geral do Estado entrar com ação judicial, já estava enviando ofício à URCA para decretar corte de ponto dos docentes. A deflagração da greve foi dia 04 de abril e o ofício da PGE foi do dia 01 de abril. Parece até mentira, mas é órgão jurídico do estado instrumentalizado pelo executivo. Mais uma inovação tipo neoliberal na forma de gestão política/pública criada pelos governos do Ceará.
Outro ponto relacionado à Procuradoria Geral do Estado é que ela comprometeu ainda mais a autonomia das universidades estaduais do Ceará. Se estas já não dispunham de autonomia financeira nem para seus próprios gastos, devido aos controles de austeridade permanente impostos pela SEPLAG, agora passa a não dispor também de autonomia jurídica. As Assessorias Jurídicas das próprias universidades que antes tinham status de procuradoria, passaram a ser totalmente representadas pela PGE, como no processo acima descrito.
Em particular, no caso da URCA, fundada em 5 de julho de 1986, que tem como missão promover o desenvolvimento regional no centro-sul do Ceará, este semestre letivo já estava comprometido pela falta de professores, bem como por um conjunto de carências de infraestrutura, de espaço, tecnológicas e de pessoal (desde sua criação nunca houve um concurso para pessoal técnico administrativo, por exemplo, bem como seu plano de cargos e carreira é de uma carência inominável, sendo grande parte do trabalho administrativo da URCA executado por trabalhadores terceirizados, alguns deles com trinta anos de serviços prestados).
Alguns campi da URCA, como é o caso de Iguatu-CE, por exemplo, funcionam basicamente com professores temporários: uma anomalia universitária e uma irregularidade do governo estadual que vem se estendendo, desde 2004, quando foi criado o primeiro campus avançado, justamente o de Iguatu-CE (além de outros campus avançados hoje existentes, como é o caso de Campos Sales e Missão Velha, por exemplo). Depois de muita luta por parte da URCA, foi autorizado, em 2022, no governo Camilo Santana, um concurso para 184 vagas de professor efetivo, para reparar em algum grau esse contrassenso (numa medida de fim de governo de caráter insolitamente eleitoreira). Todavia, por uma séria de complicações, o resultado final desse concurso foi publicado somente em março de 2024, não havendo até o momento data definida para contratação dos aprovados.
Entre fevereiro e maio deste ano encerram-se entre 120 e 150 contratos de professores substitutos e temporários, sendo que o semestre letivo termina em meados de junho de 2024. A administração superior da URCA até tinha enviado um edital de concurso para professor substituto e temporário no final de 2023 para suprir tais carências. Mas, este edital ficou “retido” e somente foi publicado no final de março de 2024. A prova didática ocorreu dia 22 de abril e os aprovados somente serão contratados quando este semestre estiver terminando. Onde estava o edital? Na Procuradoria Geral do Estado? O que importa é que tal demora inviabilizou o semestre letivo da URCA.
A deflagração de greve pelas universidades estaduais do Ceará e ao menos em 51 universidades federais e 79 institutos federais, que entre outros tem como um ponto comum perdas salariais, tem que representar neste momento um solavanco para a categoria docente, alertando para a desertificação dos alicerces universitários, conforme o esclarecedor artigo de Daniel Afonso da Silva, de 24/03/2024, publicado no site A Terra é Redonda, intitulado “Alicerces desertificados”. Na verdade, conforme explica o referido autor em outro excelente artigo, “Greve dos professores das Universidades Federais”, também publicado site A Terra é Redonda, “o fundamental de toda a situação reside na necessidade de imediato reconhecimento da incontestável derrota moral, intelectual, tática e operacional de toda a categoria nos últimos dez, quinze ou vinte anos.”
E acrescenta: “quando um histriônico proprietário de lojas de departamento tipo Havan começa a ubiquamente vandalizar e menosprezar a legitimidade do que se ensina no interior das universidades federais e nenhum reitor, nenhum conselho universitário, nenhuma associação da classe, nenhum intelectual ou nenhum professor de expressão pública se levanta, tudo está claramente perdido. O rei está nu e a torre de marfim, desabada. Não há o que fazer nem o que reivindicar. A capitulação geral está consumada. Trata-se de uma implacável ‘défaite’. ‘Étrange défaite’.”
Precisamos ir mais além. Precisamos entender os efeitos colaterais do FIES e do Prouni para a educação superior pública. O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) foi criado no Brasil em 1999, como parte do Programa de Estudantes Financiamento (PROFIES), instituído pela Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001. O FIES é um programa do governo federal que tem como objetivo facilitar o acesso ao ensino superior, oferecendo financiamento estudantil a juros baixos para estudantes que não têm condições de arcar integralmente com as mensalidades de cursos superiores em instituições privadas. O Programa Universidade para Todos (Prouni) foi instituído no Brasil em 2004, por meio da Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Tem como objetivo conceder bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de ensino superior para estudantes de baixa renda.
De instrumentos de política social, o FIES e o Prouni, foram transformados pelas universidades privadas em uma mercadoria muito lucrativa. Nesses últimos vinte anos o esvaziamento de matrículas nas universidades públicas e seu crescimento extraordinário nas instituições privadas, que agora existem em cada esquina, concorrendo até com salões de beleza e farmácias, é patente em qualquer estado deste espaço nacional de “infomania que se abate sobre nós”.“O mundo tangível se confunde com o mundo virtual, gerando uma sociedade deprimida, embrutecida e desmiolada”, conforme nos alerta Marilia Pacheco Fiorillo, em artigo no site A Terra é Redonda. Francisco Teixeira também faz um elucidativo alerta sobre a “Prostração da universidade”, no site A Terra é Redonda, quando expressa que: “Mundo de analfabetos é o que é a sociedade da tecnologia da informação e da comunicação. Nela, as pessoas vivem mergulhadas na mais profunda indigência científica, cultural e política que chega a beirar a idiotia”. Mas o principal movimento que queremos destacar aqui é o de uma privatização “silenciosa” do ensino público superior no Brasil, que já aconteceu e que nem todos nos demos conta. Precisamos encontrar meios de lutar para recuperar o lugar do ensino público de nível superior. E ninguém melhor para nos ajudar nesta empreitada que nosso saudoso e brilhante Darcy Ribeiro.
Universidade, para quê? Não é Darcy!? E ele responde: “A dura verdade é que nós, universitários, temos sido e somos, também nós, coniventes com o atraso do povo brasileiro. Somos coniventes com o projeto que fez de nós um povo de segunda classe, dentro da civilização a que pertencemos. Como negar que tivemos, como nação, um desempenho medíocre? É evidente que sim, mas cabe perguntar quais são os fatores causais desta frustração.”[iii] Pois bem. Como universidade temos o dever de estudar, entender, explicar e elaborar mecanismos e instrumentos de superar as “causas ocultas e ocultadas de nosso atraso nacional”. Pois, “As classes dominantes dizem, com toda altivez, que a culpa do atraso não é delas. Estaria no clima, na mistura de raças: tanto calor, tantos mulatos. Nada valem todos os saberes científicos que aí estão a dizerem há tantas décadas que nenhum fator natural, climático ou racial é explicativo do desempenho de um povo. Dentro da pupila de nossas classes patronais e patriciais, continua persistente este olhar racista, raivoso, azedando a convivência entre os brasileiros.”
A universidade neste contexto precisa se constituir, mais do que nunca, em um artefato na forma de “uma assessoria cultural, científica e técnica, que seja independente e insubornável, composta por sábios, que não sejam servidores de ninguém, que não dependam de partido nenhum. Essa assessoria autônoma, só a universidade pode dar” (DARCY RIBEIRO). Além da formação de odontólogos e matemáticos, em qualquer quantidade, de advogados ou psicólogos, de médicos, engenheiros, precisamos nos tornar como universidades públicas um centro cultural autônomo e criativo, o que não pode ser realizado pelas instituições privadas que transformaram a educação superior em mercadoria barata, que tem como finalidade última o lucro. Porque no fim o que importa, conforme nosso mestre Darcy Ribeiro, é “interromper a dominação hegemônica e pervertida de nossa classe dominante infecunda”, pois, “frente a estas questões, as universidades brasileiras têm que se mobilizar”.
Por fim, a universidade pública precisa relembrar que seu papel é repensar e recobrar a “construção interrompida” do Brasil, constituída de políticas econômicas instáveis, herança colonial, modelo dependente de importações, e desigualdades sociais; conforme constatação de nosso saudoso e ilustre economista Celso Furtado. Embora, a construção interrompida seja uma tese formulada nos idos de 1992, ela ainda constitui o nosso dilema do eterno retorno, que levanta questões profundas sobre o nosso tempo, destino, liberdade, autonomia nacional e o significado de nossa existência enquanto nação.
*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de Renda, Lutas de Classes e Revolução (Clube de Autores).
Notas
[i] Justiça aumenta valor de multa por descumprimento da determinação de suspensão da greve de servidores do Detran. https://www.tjce.jus.br/noticias/justica-aumenta-valor-de-multa-por-descumprimento-da-determinacao-de-suspensao-da-greve-de-servidores-do-detran/
[ii] GREVE DA UECE. https://www.tjce.jus.br/noticias/justica-aumenta-valor-de-multa-por-descumprimento-da-determinacao-de-suspensao-da-greve-de-servidores-do-detran/
[iii] Ribeiro, Darcy. Universidade para quê? Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.
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