Por RUBEN BAUER NAVEIRA*
A crise na Ucrânia atende ao objetivo dos EUA em impor sua agenda e sabotar a da Rússia
O mundo tem andado apreensivo quanto a uma possível nova guerra na Europa, e até mais, quanto a uma possível guerra direta entre Estados Unidos e Rússia. Se tais temores têm ou não fundamento o futuro dirá, enquanto isso o que se pode fazer é buscar entender melhor essa barafunda.
Que é uma barafunda não há dúvida, mas, “barafunda da Ucrânia” é discutível – porque vai muito além disso. Reduzir toda a controvérsia atual à pergunta “afinal, o Putin vai ou não vai invadir a Ucrânia?” é embarcar no jogo de um dos lados (no caso, o americano).
O que está de fato acontecendo é um choque entre duas agendas distintas, a dos russos e a dos americanos. Prevalece, porém, somente uma única narrativa, a dos americanos. Apenas seis grandes conglomerados de mídia detêm a propriedade de mais de 1.500 jornais, 1.100 revistas, 9.000 estações de rádio e 1.500 canais de televisão – e operam em uníssono, fazendo com que ecoe apenas uma única “verdade” (a deles). Assim, a “agenda dos americanos” tem a seu serviço essa onipresente máquina de lavagem cerebral das populações, enquanto que a “agenda dos russos” permanece amplamente desconhecida, nos levando a acreditar que o único interesse dos russos seria… invadir a Ucrânia.
Vejamos estas duas agendas, resumidamente. A agenda dos americanos é isolar a Rússia do restante do mundo, buscando assim enfraquecer (e quebrar) a sua economia. A estratégia para alcançar esse objetivo é demonizar a Rússia, fazendo-a parecer um país expansionista, imperialista e agressor, que almejaria a restauração do finado “império soviético”. Esse expansionismo russo estaria dirigido contra a Europa, e assim o que se busca é romper os laços entre a Rússia e os países europeus, para por exemplo impedir a entrada em operação do gasoduto Nord Stream 2 (entre a Rússia e a Alemanha), de modo a privar a Rússia das receitas da venda de gás para a Europa tornando ao mesmo tempo a Europa dependente das exportações de gás dos Estados Unidos.
Já a agenda dos russos é afastar os mísseis da OTAN (leia-se, dos Estados Unidos) das suas fronteiras, e assim evitar o risco de um ataque fulminante e de surpresa que liquidaria o país sem lhe dar tempo de reação (os americanos também estão desenvolvendo os seus mísseis hipersônicos, que poderão voar dez vezes mais rápido que os atuais Tomahawks, e atingiriam Moscou em menos de cinco minutos). No final do ano passado, os russos apresentaram aos americanos um ultimato nesse sentido (e o fizeram em público), deixando claro que caso os seus pleitos não sejam considerados eles recorrerão a medidas unilaterais de natureza militar. Para uma melhor compreensão ver o artigo publicado no site A Terra é Redonda.
Assim, para entender todo esse falatório de “Putin quer invadir a Ucrânia”, é preciso ter em mente que o objetivo dos americanos é duplo: fazer vingar a sua agenda, mas, ao mesmo tempo, sabotar a agenda dos russos para que esta não vingue.
Ora, a cantilena da “invasão da Ucrânia” não é nova, já em abril do ano passado isso era aventado. Tomou, porém, a proporção que tomou, de escarcéu planetário, logo em seguida ao… ultimato dos russos.
Os americanos não vão ceder às exigências dos russos (e os russos sabiam disso, desde sempre; sabem portanto que precisão obter as suas “garantias de segurança” pela força, não pela diplomacia, vista por eles neste caso apenas como etapa que não pode nem deve ser saltada). Os americanos, contudo, não deixaram de levar a ameaça dos russos a sério, e não irão ficar passivamente esperando até que os russos a cumpram – por isso sacaram a carta da “invasão da Ucrânia”.
O que foi que os russos ameaçaram (e publicamente)? A adoção de “medidas unilaterais de caráter militar”. Ora, é isso o que os americanos esperam dos russos (e temem): uma ação militar (que pode ser qualquer coisa, não necessariamente contra a Ucrânia; aliás, os russos já estão engasgados com os neonazistas do governo ucraniano desde 2014, e nem por isso os atacaram até agora). Então, denunciar antecipadamente que os russos irão cometer uma ação militar específica (uma invasão da Ucrânia), tem o efeito indireto de predispor o resto mundo contra qualquer ação militar que os russos venham a cometer.
Por que os americanos precisam que a Rússia invada a Ucrânia? Primeiro, porque confirmaria a narrativa, o que seria uma tremenda injeção de prestígio para o claudicante governo Biden; segundo, porque demonizaria a Rússia perante o mundo, isolando-a; terceiro, porque arrastaria a Rússia para o desgaste de uma guerra que ela não precisa e não quer; quarto, porque desviaria a Rússia da sua agenda própria, a de forçar a OTAN a recuar das suas fronteiras. Uma vez que os russos obviamente não quererão se prestar a fazer o jogo dos americanos, será preciso que eles de algum modo se vejam obrigados a atacar a Ucrânia – por exemplo como uma reação a um ataque da Ucrânia às repúblicas separatistas do Donbass.
Acontece que os ucranianos já entenderam que o papel reservado a eles é o de bucha de canhão, e vêm refugando. Devido a isso Washington vem exercendo imensa pressão sobre o presidente ucraniano Zelensky, podendo no limite buscar derrubá-lo para pôr em seu lugar alguém que se preste mais cordatamente a suicidar o seu próprio país.
Acontece, também, que os americanos (e a mídia ocidental) acabaram por criar uma armadilha para si próprios, ao terem ido longe demais nessa insuflação da histeria contra uma Rússia que estaria, já faz meses, na iminência de invadir a Ucrânia entre hoje e amanhã – se não houver a tal invasão, o que haverá será a erosão do pouco da credibilidade que ainda detêm. Caso lhes seja difícil coagir os ucranianos ao matadouro, resta sempre o surrado recurso à false flag, ou seja, cometer alguma atrocidade em larga escala contra civis ucranianos para atribuí-la aos russos em versão a ser instantaneamente alardeada por toda a mídia hegemônica. Os russos têm estado denunciando que está sendo armada uma false flag contra eles, obviamente sem maior repercussão nessa mesma mídia.
Se forem mesmo recorrer à false flag (a ser levada a cabo pela CIA em associação com o MI-6 britânico, segundo a contrainteligência russa), os americanos precisarão caprichar na encenação, sob risco de desmoralização. Já os russos botaram preventivamente o bloco na rua, com exercícios conjuntos na Bielorrússia (de onde poderiam atacar não apenas a Ucrânia, mas a Polônia – onde está sendo finalizada uma base de mísseis da OTAN – bem como os países bálticos) e com o envio de uma poderosa frota ao Mar Negro (de onde poderiam atacar não apenas a Ucrânia, mas a Romênia – onde já se encontra instalada uma outra base de mísseis).
O fato novo dos últimos dias é a mudança no timing das iniciativas russas. Já era certo que os russos não adotariam nenhuma ação militar (de iniciativa própria; uma reação militar diante de uma agressão ou provocação seria uma outra história) durante as Olimpíadas de inverno em Pequim para não lhes empanar o brilho (aliás, pelo noticiário da mídia ocidental parece não estar ocorrendo olimpíada nenhuma). Mas os russos haviam exigido dos americanos uma resposta por escrito ao seu ultimato, que detalhasse a negativa dos seus pleitos por garantias de segurança (resposta esta que já foi entregue, e tornada pública pelos russos, para contrariedade dos americanos).
Postos agora na defensiva diante da campanha de denúncia da “invasão iminente” da Ucrânia, os russos anunciaram que irão produzir uma “resposta da resposta” (a qual certamente tornarão pública também), indicando qual será a sua posição doravante, e fica claro que nenhuma ação militar russa ocorrerá antes que esse novo documento seja divulgado e, novamente, respondido pelo Ocidente. Por mais que se saiba que o conteúdo desse novo documento será de crucial importância para os desdobramentos da crise, é evidente que a mídia hegemônica o ocultará, no entanto assim que ele vier a público retornaremos ao A Terra É Redonda para discorrer sobre ele.
Por fim, a pergunta: haverá guerra? Os americanos (e britânicos) podem cometer a sua false flag, mas não podem prever qual será a reação dos russos a ela, e tamanha incerteza seguramente os exaspera (e oxalá faça com que desistam). Em termos estritamente militares, os americanos detêm superioridade militar sobre os russos a nível global, mas não no teatro europeu, onde sabem que sairiam derrotados em qualquer enfrentamento direto (afora nuclear, mas aí os dois lados – e o restante do mundo – seriam liquidados).
A dança entre russos e americanos começa a compor um padrão discernível, que poderia ser chamado de estica-e-alivia-a-corda: os russos, que ameaçaram os americanos com alguma ação militar (sem contudo indicar nem o que e nem quando fariam) para forçar a OTAN a recuar das suas fronteiras, posicionam as suas forças para um possível ataque, a pretexto de “meros exercícios de rotina dentro do próprio território”; os americanos, receosos do que os russos possam fazer, gritam “lobo!” (“a Rússia vai atacar a Ucrânia!”), de modo a que qualquer ação militar que os russos venham a cometer estigmatize o país como “inimigo da Paz”; dentro do establishment americano (que não é monolítico) os falcões pró-guerra (pró-qualquer guerra) começam a tramar para a guerra aconteça; os russos, para evitar serem arrastados para uma guerra que só interessaria aos americanos, dão declarações apaziguadoras e começam a desmobilizar as suas tropas; os americanos dão declarações agressivas (voltadas ao público doméstico) enquanto que, nos bastidores, acenam aos russos com novas rodadas de negociações sobre as “garantias de segurança”; confirmado o retorno aos quartéis dos soldados russos, os americanos procuram capitalizar que teria sido a sua postura firme o que fez com que os russos “medrassem” – e as coisas se acalmam até a próxima mobilização de tropas russas, quando o esticar da corda recomeça.
A dança parece ter entrado no movimento de aliviar-a-corda, pois no dia 14 de fevereiro Putin fez televisionar uma reunião com Lavrov em que o mote foi “queremos negociações”, e em seguida o ministro da defesa Shoigu anunciou o retorno de tropas da Bielorrússia (originalmente previsto para ocorrer somente após o dia 20 de fevereiro). No dia 15, Joe Biden foi à TV falando grosso ao melhor estilo John Wayne, ao passo que Blinken telefonou para Lavrov pedindo… o agendamento de novas rodadas de negociações.
O “alívio na corda”, porém, não durou nem 24 horas. Aparentemente, diante do alto risco de uma false flag própria, os americanos alternaram para uma “false flag reversa”: Joe Biden anunciou que, segundo as suas fontes de inteligência (sic), os russos estariam para cometer alguma atrocidade contra civis das repúblicas separatistas do Donbass (tipo despejar artilharia sobre um jardim de infância), para atribuí-la ao governo de Kiev, e assim justificar uma invasão como “reação”.
Ocorre que nas últimas 24 horas a Ucrânia elevou consideravelmente o fogo de artilharia sobre áreas urbanas do Donbass, assim coisas como bombardeios de jardins de infância ou hospitais tendem a acabar acontecendo mesmo. Paralelamente, os sites informativos das repúblicas separatistas foram postos fora do ar ou operam com grandes dificuldades (para coibir qualquer contraditório às versões “oficiais”).
A Rússia tornou pública a sua “resposta da resposta” (ao seu ultimato, exigindo o recuo das forças da OTAN das suas fronteiras). O site do ministério das relações exteriores da Rússia também foi posto fora do ar, assim a fonte disponível até o momento é a agência TASS, com traduções para o inglês por sites independentes.
O novo texto basicamente repisa o original, só que em tom mais duro e com argumentação mais desenvolvida, ou seja, parece ter sido escrito mais para a opinião pública do que para os canais diplomáticos (o tamanho é dez páginas, também bem maior que o do ultimato original). Um excerto que resume aquilo que está em jogo é “In the absence of the readiness of the American side to agree on firm, legally binding guarantees of ensuring our security by the United States and its allies, Russia will be forced to respond, including through the implementation of military-technical measures” (Na ausência de disposição do lado americano em entrar em acordo quanto a garantias firmes e legalmente vinculantes que salvaguardem a nossa segurança por parte dos Estados Unidos e seus aliados, a Rússia será forçada a reagir, inclusive pela implementação de medidas técnico-militares) (ao que parece, a expressão “técnico-militares” foi concebida como um eufemismo para poupar o uso da palavra “militares” puramente).
*Ruben Bauer Naveira é funcionário público aposentado e ativista. Autor do livro Uma nova utopia para o Brasil: três guias para sairmos do caos, disponível para download em http://www.brasilutopia.com.br.