Por ROBSON ADAMI CAMPOS*
O economista maranhense é um dos principais intérpretes do Brasil
“Somente assim é possível organizar o espaço, incluindo o mundo inteiro no seu sistema” (RANGEL, 1968, p. 05).
Demiurgos, sim, aqueles que derivam da ideia de Platão, aqueles que criam a realidade, que a organizam e modelam, ou, em sentido simples, criadores de uma obra grandiosa, de relevante importância, como a referência que Antonio Candido fez aos intérpretes Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., e esta lista ganhou corpo com Francisco de Oliveira, ao acrescentar Celso Furtado e Florestan Fernandes, lista à qual pertencem também Darcy Ribeiro e Raymundo Faoro, todos estudiosos que empreendem uma interpretação do Brasil.[i] Seria a “grande tradição” dos explicadores do Brasil, celebrada por Chico de Oliveira, em exposição feita no tradicional CEDEC, lugar apropriado para se estudar e compreender a formação do Brasil na sua especificidade.
A ideia encaixa. Demiurgos, afinal, não criam a realidade na tradição platônica, mas organizam uma espécie de caos. Imprimem, assim, não apenas uma descrição que dê conta do que apreendem do mundo, mas põem, de fato, o próprio mundo.[ii]
Certa vez, Alexandre de Freitas Barbosa[iii] indagou a Luiz Gonzaga Beluzzo, ao contar sua história em entrevista, em especial sua trajetória e da Unicamp. Indagado que havia grandes nomes neste processo, do porte de Celso Furtado e Raul Prebisch, perguntaram-lhe: “mas Rangel?”. Ao acrescentar Ignacio Rangel,[iv] Beluzzo de pronto corrigiu que se esqueceu de mencionar o economista maranhense. Reforçando que muito era devido a Ignacio Rangel e esquecê-lo “era uma injustiça que não poderia cometer” (BELUZZO, 2011, p. 426).
Tal personagem é um intérprete do Brasil que estudou o enigma –[v], “Brasil, o nosso claro enigma” (SANTIAGO, 2002, p. XLVIII), entretanto, também não aparece na boa obra com 52 nomes proeminentes do pensamento brasileiro, elaborada pela Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty (IPRI-FUNAG, 2007). Assim como na densa coletânea sobre o pensamento nacional de Djacir Meneses, que inclui uma miríade de autores, os estudos rangelianos não estão presentes (O Brasil no Pensamento Brasileiro, 2011). Rangel foi pensador que inventou o Brasil – em casos especiais o fez também – tão pouco lembrado que não consta da obra de Fernando Henrique Cardoso (Pensadores que Inventaram o Brasil, 2013), entretanto, segundo José Márcio Rego, a reflexão do maranhense foi uma das suas inspirações para elaborar, junto com Enzo Falletto, a Teoria da Dependência (REGO, 1997).
Segundo Ignacio Rangel, o mesmo aconteceu com Hélio Jaguaribe ao se inspirar nas suas ideias, mas não foi lembrado (Brasil: Alternativas e Saídas, 2002). Ausente em outras obras que tratam essencialmente dos intérpretes e suas interpretações, como a Interpretações do Brasil (CARVALHO & EUGÊNIO, 2014); na coletânea de artigos Intérpretes do Brasil (AXT, SCHÜLER, & (Orgs), 2004); nos três volumes de As Identidades do Brasil cuja abordagem é essencialmente a partir de intérpretes.
O primeiro volume aborda, aproximadamente, 120 anos de pensamento brasileiro, de Varnhagen a FHC (REIS, 2007). Já o segundo volume, que enfatiza nomes que “interpretaram a civilização brasileira”, inclui autores de Calmon a Bomfim (REIS, 2006). A trilogia se finda com o foco na identidade nacional que inclui José Murilo de Carvalho a Darcy Ribeiro (REIS, 2017). Nada de Rangel. Na mesma toada a volumosa obra, cujo subtítulo é “Pequena Enciclopédia”, chamada de Nenhum Brasil Existe (ROCHA, 2003), que soma historiadores, literatos, documentos importantes da história nacional. Nadinha de Rangel.
Em obras com esta característica, Ignacio Rangel alça ao patamar de intérprete em trabalho cujo título é salutar para um ilustre desconhecido, organizada por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Ferreira Secco (Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, 2014).
Gera particular interesse este “desconhecimento”, por sua contradição: quem teve contato com a obra de Ignacio Rangel não lhe poupa elogios e o equipara a outros notáveis que se debruçaram sobre a realidade brasileira e a procuraram interpretar. Contudo, o que se pode constatar é um substancial desconhecimento sobre seu trabalho e sobre quem foi o intérprete. No ano de celebração dos 200 anos da Independência, no levantamento dentre mais de centena de estudiosos, não houve menção ao trabalho do economista maranhense.[vi]
Assim como na obra de Nelson Werneck Sodré, dedicada a se conhecer o Brasil, embora editada em sua primeira vez na década de 1940, com sucessivas e posteriores reedições, não consta menção à obra rangeliana (SODRÉ, 1967). Dentre os dez livros para conhecer o Brasil assinalados por Antonio Candido, escolha que, segundo ele, dependia sobretudo do arbítrio e das limitações que tinha. Singular modéstia de Candido, entretanto, Ignacio Rangel também não é apontado, assim como alguns de seus livros, como importante para se conhecer um cadinho mais o Brasil.
Ignacio de Mourão Rangel (1914-1994), nasceu em 20 de fevereiro na cidade de Mirador, Maranhão, filho de um magistrado e de uma professora, graduou-se em Direito. Em 1954, por indicação de Celso Furtado, vai para o Chile realizar o que ele denominou como sua dissertação de mestrado na Cepal, defendendo a tese intitulada “Desarollo Económico en Brasil”. Foi militante do Partido Comunista e integrou da Aliança Nacional Libertadora (ALN). Já na sua militância intelectual integrou o Clube dos Economistas, o IBESP, e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
Ocupou cargos públicos, como integrante da assessoria econômica de Getúlio Vargas, colaborando no projeto de criação da Petrobras e da Eletrobras. Ingressou nos quadros do BNDE em 1955, alça a chefe do Departamento Econômico, ainda participou do Conselho de Desenvolvimento da Presidência da República. Atuou no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Em 1964 foi convidado para ocupar o Ministério da Fazenda pelo Presidente João Goulart, mas não aceitou. Manteve uma coluna no jornal Última Hora no Rio de Janeiro entre 1969-1971 e em 1993, por mais de uma década colaborou com o jornal Folha de São Paulo.
O método que aplicou foi histórico-estrutural, ou na compreensão de Bresser Pereira, que aprecio, histórico-dedutivo (2009). O primeiro elemento do método rangeliano é a recepção crítica das teorias estrangeiras, na forma que é exposta, inicialmente, pelo bom senso nacional demonstrado por Barão de Mauá, Irineu Evangelista de Souza. O fazer de Ignacio Rangel passava pela assimilação crítica da teoria estrangeira – influência determinante dos ciclos de Kondratiev e Juglar: ondas largas produzidas pelas economias centrais, com expansão das forças produtivas introduzindo tecnologias – conjugado com a dinâmica das classes sociais, sua interação e posição na estrutura de poder e de domínio econômico. Sua posição, neste aspecto, é clara, ao falar das teorias, também em seus aspectos práticos:
“Devemos estar preparados para usar alternadamente o instrumental marxista, o keynesiano, o neoclássico, o clássico e até o fisiocrático, segundo as circunstâncias. Podemos aperfeiçoar esses instrumentos, reformular esses princípios, pelo emprego da moderna metodologia, quando esta for aplicável, mas não podemos excluir in limine nenhum deles. Todos nos serão úteis no trabalho prático”.[vii]
Para Guerreiro Ramos, a obra dualidade é um marco na história das ideias pela forma que recepciona e utiliza criticamente a teoria estrangeira. Ramos sustentou à época que Ignacio Rangel havia encontrado a lei básica da formação econômica do Brasil. A dualidade é a teoria que junge o processo socioeconômico com a dinâmica das classes sociais. A inquietação que perpassou a longa vida de Rangel foi a existência de uma dualidade dinâmica no interior de uma unidade nacional, esta Terra de Santa Cruz. Sua visão se assemelha, grosso modo, à de um engenheiro que observa sua criação ao ver um veículo automotor em funcionamento. Algo que se constitui de diversas partes em funcionamento, cuja finalidade é o deslocamento, o movimento. Ignacio Rangel enxergava o processo que se empreendia por estas terras e se esforçou para compreender a sua formação.
*Robson Adami Campos, advogado e professor, é mestre em Estudos Brasileiros pela USP.
Notas
[i] OLIVEIRA, Francisco. Como pensar? Lua Nova: Revista de Cultura e Política. 2001, n. 54, pp. 87-132. Em: https://www.scielo.br/j/ln/a/tWRDxghtCHdRddwpYSc5jtt/?lang=pt#.
[ii] OLIVEIRA, Francisco. Diálogo na grande tradição. In: Novaes, Adauto. A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[iii] Professor livre-docente, economista raiz, docente do corpo permanente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
[iv] Ignácio Euquério de Mourão Rangel teve a grafia de seu nome alterada após um incêndio no cartório onde foi registrado. Após novo registro passou a ter seu registro civil como Ignacio de Mourão Rangel.
[v] Primorosa coletânea de estudos que reúne “29 intérpretes e um País” foi organizada por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz partindo da premissa que decifrar o Brasil não é um empreendimento nada simples (Um Enigma Chamado Brasil, 2019). Destaca-se que Ignacio Rangel não está no seleto rol de intérpretes estudados na obra.
[vi] Veja a matéria do Jornal Folha de SP nominada 200 anos, 200 livros elaborada sobre o projeto de que reúne 200 importantes livros para entender o Brasil, um levantamento com obras indicadas por 169 intelectuais da língua portuguesa que pode ser consultado em: https://arte.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/04/200-livros-importantes-para-entender-o-brasil/.
[vii] Vide a integra explicitação em Desenvolvimento e Projeto (RANGEL, Obras Reunidas, 2012, p. 207).
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