Por RODRIGO DUARTE*
Leia a Apresentação do livro recém-editado de Theodor W. Adorno
O público de língua portuguesa tem agora à disposição um conjunto de escritos significativos de Theodor Adorno sobre um dos tópicos que mais bem caracterizam o seu legado filosófico, a saber, a reflexão crítica sobre a cultura de massas – a “indústria cultural”, de acordo com a denominação estabelecida por ele, juntamente com Max Horkheimer, no início da década de 1940, na Dialética do esclarecimento. Seja dito que estabelecer um corpus de textos para um só volume sobre um tema que ocupou tantas páginas da imensa obra de Adorno não é fácil, sendo que, certamente, algumas ausências foram inevitáveis, embora o elenco de textos aqui apresentado seja significativo sob pelo menos dois aspectos fundamentais.
O primeiro – e talvez o mais importante – é que tem-se, aqui, uma amostragem dos enfoques de Adorno sobre cultura de massas desde o início dos anos 1930 (portanto, antes mesmo do estabelecimento do termo “indústria cultural), passando pelo final dessa década e início da de 1940 e da 1950, até os anos 1960 — ocasião em que Adorno redigiu textos, no quais retoma e atualiza conceitos estabelecidos, juntamente com Horkheimer, na Dialética do esclarecimento. Desse modo, oferece-se nesta coletânea uma noção clara tanto dos antecedentes quanto dos desdobramentos da crítica à indústria cultural na obra de Adorno.
O segundo aspecto a ser ressaltado é a variedade das facetas sob as quais Adorno aborda o tema da cultura de massas: seja a partir do fenômeno do kitsch, das características que a recepção da música assume quando realizada por meio da radiodifusão, do caráter específico do fetichismo que adere à mercadoria cultural, do impacto da televisão no cenário da cultura de massas, antes dominada pelo rádio e pelo cinema, da tutela da cultura pelos setores da administração pública e das consequências do imediatismo difundido pela indústria cultural numa ação política que se pretende revolucionária.
Comecemos assinalando algo sobre o pequeno texto “Kitsch”, redigido por volta de 1932, que se conservou inédito no original em alemão, até a sua publicação no volume 18 dos Gesammelte Schriften (“Escritos reunidos”), de Adorno. Vale lembrar que o período presumido para a redação desse texto, no qual Adorno ainda residindo na Alemanha, presenciava o ocaso da República de Weimar e o perigo do nazismo (que não tardaria a se impor), é o mesmo em que ele redigiu ensaios como “A atualidade da filosofia” (1931) e “A ideia de história natural” (1932) – textos que apresentam um jovem filósofo, impregnado espiritualmente pelo Idealismo Alemão, por Marx e por Freud. Contava ele, então, com menos de trinta anos e já nutria, entretanto, ambições intelectuais que prefiguravam o grande pensador no qual ele se tornaria nas décadas subsequentes.
Esse texto de Adorno, que pode ser considerado um precursor nas abordagens do fenômeno em questão, com redação bem anterior ao ensaio de Clement Greenberg (de 1939), “Vanguarda e Kitsch”[i], ajudou a fixar o seu significado adotado até hoje, de algo ardilosamente meloso e desprovido de legitimidade cultural. Adorno parte de uma suposição etimológica então corrente, segundo a qual o termo alemão “Kitsch” teria advindo do inglês “sketch”, que designa “aquilo que permanece irrealizado ou apenas indicado”, podendo significar, portanto, uma espécie de molde que remete a formas artísticas de um passado remoto, as quais com o tempo perderam todo o conteúdo. A partir desse ponto de vista, Adorno aponta para a constituição essencialmente social do kitsch, asseverando que, persuadindo as pessoas “a aceitarem como atuais entidades formais do passado, o kitsch desempenha uma função social: iludi-los a respeito de suas verdadeiras condições.”[ii]
Vale observar que o tipo de ilusão que Adorno atribui ao kitsch prefigura fortemente o efeito que ele e Horkheimer atribuirão, cerca de uma década depois, aos produtos da indústria cultural, sendo que passagens desse pequeno texto poderiam enganar o(a) leitor(a), a quem fosse dito constarem no capítulo dedicado ao tema da Dialética do esclarecimento. Uma delas é a seguinte: ”Malgrado toda dissimulação, as reais relações de classe têm se delineado no kitsch sempre com maior clareza: como, de um ano para cá, nos sucessos especialmente feitos para funcionários– o da Loura Inge, por exemplo –, que, juntos ao cinema falado e à revista, querem convencer a datilógrafa de que no fundo é uma rainha. Mal se pode acreditar na rapidez com que o kitsch responde às necessidades.”[iii]
O ensaio ”Sobre o caráter fetichista na música e a regressão da audição” foi redigido no verão de 1938, poucos meses após a chegada de Adorno a Nova Iorque, ocorrida em vinte e seis de fevereiro desse mesmo ano. A primeira publicação do texto foi no volume 7 (1938), da Zeitschrift für Sozialforschung (“Revista para a Pesquisa Social”), tendo sido incluído posteriormente na coletânea Dissonanzen. Musik in der verwalteten Welt (“Dissonâncias. Música no mundo administrado”), organizada pelo próprio Adorno e publicada, em 1956, pela Editora Vandenhoeckund Ruprecht, de Göttingen. Esse livro teve edições sucessivas, apresentando novos prefácios, acréscimos e pequenas modificações, até a última versão durante a vida de Adorno, que ocorreu em 1969 (ano de sua morte). Posteriormente, o texto da quarta edição foi incluído no volume 14 dos Gesammelte Schriften (“Escritos reunidos”) de Adorno.
É oportuno lembrar que o texto “Sobre o caráter de fetiche na música e a regressão da audição” foi concebido por Adorno como uma possível resposta ao ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”[iv]. Na verdade, uma resposta apenas aproximada ao texto de Benjamin, pois, enquanto esse se refere a meios visuais, especialmente ao cinema, o texto de Adorno aborda principalmente a situação da música no capitalismo tardio. O ensaio coincide com o momento da integração de Adorno no “Princenton Radio Research Project” – principal motivação para sua ida para os EUA – e se enquadra também nos seus esforços de compreender criticamente como ocorrem os fenômenos musicais nas emissões radiofônicas. Esse texto representa, aliás, um importantíssimo passo na construção dos pressupostos teóricos da crítica da indústria cultural, a partir do início da década de 1940.
O título do texto indica que, nele, são abordados dois fenômenos diferentes, porém essencialmente correlatos e complementares, que poderiam ser considerados, respectivamente, os lados objetivo e subjetivo do mesmo processo. Na primeira parte, que trata da fetichização da linguagem sonora sob as condições dadas pelos monopólios culturais, Adorno faz um balanço da situação contemporânea a partir do impacto causado pelo predomínio da música “leve” ou de entretenimento sobre a música chamada séria. Segundo ele, na prática chega a haver certa indiferenciação entre a música séria oficialmente aprovada e a música de entretenimento, já que, no âmbito da cultura de massas, ambas se transformam em mercadorias. A partir da consideração desses fenômenos musicais acessíveis como mercadoria, surge uma contribuição essencial para a elaboração posterior da crítica à indústria cultural, a saber, a recolocação do conceito marxiano de fetichismo no sentido de compreender sua especificidade no tocante às mercadorias culturais.
Exatamente a partir de uma determinação social dos valores de uso, no sentido marxista do termo, Adorno pensa uma nova forma de fetichismo: aquele que adere à mercadoria cultural. Se na mercadoria comum, o caráter de fetiche diz respeito à ocultação do caráter de valor-trabalho que ela possui através da idolatria do seu aspecto de coisa, no qual as relações de exploração ficam como que soterradas, na mercadoria cultural a suposta ausência de valor de uso (que, na verdade, é valor de uso mediatizado) é hipostasiada no sentido de se transformar, ela própria, em valor de troca.
Na parte do texto que diz respeito ao lado subjetivo da reificação na esfera cultural do capitalismo tardio, i.e., à “regressão da audição”, Adorno parte do princípio que “a consciência das massas ouvintes é adequada à música fetichizada”[v], apontando uma perfeita correlação entre os aspectos objetivo e subjetivo do processo: a regressão da audição significa a incapacidade crescente do grande público para avaliar aquilo que é oferecido aos seus ouvidos pelos monopólios culturais.
Vale ressaltar que “O caráter de fetiche na música e a regressão da audição” foi concomitante a uma série de estudos feitos por Adorno sobre a presença da música no medium radiofônico como sua contribuição no “Princeton Radio Research Project”, dirigido pelo sociólogo austríaco, Paul Lazarsfeld, que, como já se assinalou, foi a motivação principal para a ida do filósofo frankfurtiano para Nova Iorque. Ao lado de um memorando parcialmente inédito, com 161 páginas, datado de 23 de junho de 1938, intitulado “Music in Radio”, cujo conteúdo é brevemente descrito e comentado por Iray Carone[vi], Adorno produziu, além do supramencionado texto sobre o fetichismo, redigido em alemão, uma série de escritos em inglês, os quais se encontram no volume Current of Music, publicado pela Suhrkamp na seção 1, volume 3, dos escritos póstumos de Adorno[vii], a partir de manuscritos que Adorno pretendia publicar nos originais em inglês, sob o título mencionado acima, escolhido por ele mesmo – livro que o filósofo não chegou a ver publicado em vida.
Dessa coletânea, também publicada pela editora anglo-americana Polity em 2009[viii], encontra-se, aqui, o ensaio “Para uma crítica social da música no rádio”, primeiramente publicado no periódico Kenyon Review (Spring, 1945) e incluído pelo próprio Adorno no projeto inconcluso do seu Current of Music. Nesse texto, o seu ponto de partida é o fato de que as pesquisas de opinião junto a ouvintes de rádio poderiam, por um lado, ter mero caráter comercial no sentido de manipularem o seu comportamento para o consumo de produtos A ou B, ou, por outro lado, ostentar a qualidade do que Paul Lazarsfeld chamou de “pesquisa administrativa benevolente”, na medida em que houvesse um objetivo altruísta por trás do emprego de métodos quantitativos. Segundo ele, a “benevolência” estaria na característica da pergunta principal que agora seria: “de que modo podemos fornecer boa música ao maior número possível de ouvintes?”[ix]
O ponto de vista crítico de Adorno se apresenta imediatamente na rejeição dos termos, nos quais a pergunta foi posta. A começar do questionamento sobre o que se gostaria de dizer com a expressão “boa música”. Seria algo que simplesmente já era anteriormente mais tocado no rádio, considerado a priori de boa qualidade ou seria algo pertencente a um cânone de peças consagradas do repertório tradicional do Ocidente? Supondo que algum autor canônico, por exemplo, Beethoven, fosse paradigma para a “boa música”, restaria a questão sobre esse critério não poder ser uma invariante, além do fato de que o modo como ele seria ouvido poderia comprometer as próprias características de suas composições, que, inicialmente, teriam-nas alçado à condição de paradigma. Ponderações desse tipo levaram Adorno a colocar, nesse texto uma série de questões: “A distribuição massiva de música realmente significa incremento da cultura musical? As massas são realmente trazidas ao contato com o tipo de música que, segundo considerações sociais mais amplas, pode ser visto como desejável? As massas estão realmente participando da cultura musical ou são apenas forçadas a consumirem mercadorias musicais?”[x]
Certamente, essas mesmas perguntas reaparecem na maioria dos textos posteriores de Adorno de crítica à indústria cultural, sendo que tópicos como o mecanismo de “plugging”, usado pelas gravadoras, de comum acordo com as emissoras, para alavancar a vendagem de discos, analisado no artigo “On popular music”[xi], se encontram brevemente discutidos também no texto em tela. Sobre esse mecanismo e, numa referência indireta ao artigo mencionado, antecipando o posicionamento do capítulo da Dialética do esclarecimento sobre a indústria cultural, Adorno declara: ”Porém nós sabemos, a partir de outro segmento de nossos estudos, que o plugging de canções não segue as reações que ele mesmo incita, mas sim os interesses de investimento das gravadoras que lançam as canções.”[xii]
O texto seguinte, “A sinfonia no rádio. Um experimento teórico”[xiii], foi um dos três textos relativos ao “Princeton Radio Research Project”, juntamente com o ensaio sobre o fetichismo e o artigo, comentado acima, sobre a critica social da música no rádio, os quais Adorno publicou em inglês entre o final da década de 1930 e meados da de 1940, tendo sido o único texto produzido no âmbito do referido projeto publicado pelo seu coordenador, Paul Lazarsfeld, com quem, aliás, Adorno se desentendeu sobre a ênfase quantitativa e “administrativa” de sua pesquisa[xiv].
“A sinfonia no rádio” contém um corajoso posicionamento de Adorno, segundo o qual, contra todo o discurso de democratização da cultura por meio da popularização da música “clássica”, a radiodifusão desse tipo de música, na verdade, corresponde a um aprofundamento na incompreensão, por parte do grande público, daquilo que é mais característico na melhor música produzida no Ocidente: o seu aspecto estrutural, entendido num sentido amplo, não apenas da “forma” stricto sensu, mas abrangendo todos os parâmetros da composição, do aspecto melódico à dinâmica, do elemento harmônico ao colorido tonal.
Nesse sentido, ainda que a expressão “música clássica” seja uma denominação equívoca do que hoje se chama “música de concerto”, no caso do ensaio de Adorno acaba por haver certa convergência, pois a sua análise recai sobre o classicismo musical, na medida em que a escrita anterior da música ainda não realizara o supramencionado procedimento estrutural na composição e a posterior – típica do romantismo – reagia programaticamente à construção clássica, buscando substituí-lo por elementos marcadamente expressivos. Para Adorno, o classicismo na música produziu uma intensidade que, segundo ele, se baseia na densidade e na concisão das interrelações temáticas, as quais se realizam particularmente bem no gênero sinfonia: “Essa densidade e essa concisão são de natureza estritamente técnica, irredutíveis a um mero subproduto da expressão. Elas implicam, em primeiro lugar, uma completa economia de meios; noutras palavras, um verdadeiro movimento sinfônico não contém nada de fortuito”.[xv]
A análise critica de Adorno se sustenta no fato de que a transmissão radiofônica da sinfonia compromete a capacidade de uma audição que contemple aquele procedimento estrutural que ele designa como “dinâmica absoluta”, o qual satisfaz às condições aludidas acima. Dentre os melhores exemplos desse procedimento, Adorno elege as sinfonias de Beethoven como paradigmas daquela intensidade musical que o médium radiofônico não consegue reproduzir. Quanto ao aspecto da dinâmica, Adorno observa que ”Embora o rádio preserve algo da tensão, ela não é suficiente. A tensão em Beethoven só alcança seu verdadeiro significado na gradação do nada ao todo. Tão logo seja restringida ao estrato mediano do piano ao forte, elimina-se de sua sinfonia o mistério da origem, bem como a potência da revelação.”[xvi]
Sob o aspecto do colorido tonal, Adorno assevera igualmente as limitações da radiodifusão e a sua incapacidade de proporcionar a base acústica para uma escuta não atomística da música: ”Ao exagerar o contraste abrupto, a neutralização imposta pelo rádio à cor obscurece justamente aquelas ínfimas diferenciações que são fundamentais na orquestra clássica.”[xvii]
Do ponto de vista técnico-musical, a deficiência principal da radiodifusão de sinfonias clássicas — especialmente as de Beethoven — pode ser resumida no fato de que essas criam uma temporalidade, associada à execução da música ao vivo, a qual não coincide com a da empiria, ficando essa temporalidade comprometida na escuta pelo meio radiofônico:
No rádio, o tempo consumido pela sinfonia é um tempo empírico. A limitação técnica que o rádio impõe à sinfonia acompanha ironicamente o fato de que o ouvinte pode simplesmente desligar a música quando quiser. Dito de outra forma, em contraste com o que acontece na sala de concertos, onde o ouvinte está de certo modo compelido a obedecer às leis da sinfonia, no rádio ele pode descartá-las arbitrariamente.[xviii]
Essa erosão da temporalidade essencial pela radiodifusão da música de concerto pode ser considerada central para o ponto de vista de Adorno, pois, se aquela “dinâmica absoluta” não pode ser preservada nesse meio, nele, a sinfonia aparece como uma coleção de melodias, numa espécie de pot-pourri, no qual as células musicais são como que colhidas alhures e encaixadas na composição, como se se tratasse de uma montagem. Em virtude disso, Adorno declara: “Uma sinfonia de Beethoven é essencialmente um processo; se esse processo é substituído por uma apresentação de itens congelados, a performance estará condenada. Mesmo que executada sob o grito de guerra da mais extrema fidelidade à sua letra.”[xix]
Para concluir esse breve comentário sobre “A sinfonia no rádio”, vale lembrar que o texto, desde a época de sua primeira publicação, em 1941, foi alvo de acirradas críticas, principalmente associadas ao suposto elitismo da posição de Adorno, para quem não valeria “a pena empreender qualquer esforço pedagógico que não leve em conta, com todas as suas implicações, as tendências regressivas promulgadas pela música séria no rádio.”[xx] Do ponto de vista da Teoria Crítica da Sociedade, sabemos o quão ideológico e condescendente com a indústria cultural é esse tipo de crítica; mas o desenvolvimento tecnológico tanto da engenharia de som (com o advento da alta fidelidade e dos equipamentos estereofônicos ou multicanais) quanto da própria radiodifusão (com a modulação de frequência e – mais recentemente – com a transmissão digital) tornou sem efeito as críticas de Adorno baseadas estritamente no estágio de desenvolvimento técnico da época. O próprio Adorno reconheceu isso num texto do final dos anos 1960, asseverando, no entanto, que apesar da caducidade desse aspecto meramente tecnológico, os seus pontos de vista críticos sobre a escuta atomística e sobre a destituição do elemento especificamente sonoro na radiodifusão da música de concerto permaneciam válidos:
Certamente, uma das ideias centrais se mostrou superada: derivar tecnologicamente a minha tese de que a sinfonia no rádio não seria mais uma sinfonia em virtude das modificações no som, da “faixa audível” do rádio da época, a qual foi entrementes eliminada pela técnica de high fidelity e de estereofonia. Mas acredito que nem a teoria da escuta atomística foi atingida, nem a daquele peculiar “caráter imagético” da música no rádio, o qual deveria ter sobrevivido à faixa audível.[xxi]
O próximo texto desta coletânea, “O esquema da cultura de massas” ocupa – não apenas do ponto de vista cronológico – um lugar central no desenvolvimento intelectual de Adorno, tanto sob o aspecto da crítica à indústria cultural quanto no do seu pensamento filosófico como um todo. Sua redação data de outubro de 1942, tendo sido o seu manuscrito encontrado no espólio de Adorno e considerado a “parte permanecida inédita” do capítulo sobre a indústria cultural da Dialética do esclarecimento, “da qual Adorno ocasionalmente falava”.[xxii] O editor da edição alemã dessa obra, no volume 3 dos Gesammelte Schriften (“Escritos reunidos”) de Adorno, chama a atenção também para o fato de que, na sua primeira edição, da Querido Verlag, em 1947, consta ao final do capítulo sobre a indústria cultural o aviso: “a continuar”, o qual foi retirado na edição da Fischer Verlag, de 1969. Tendo em vista todas essas vicissitudes do texto, e a sua inequívoca conexão com o tema da indústria cultural, ele foi incluído como apêndice na referida edição das obras reunidas de Adorno.
Esse texto retoma elementos dos ensaios anteriores, associados à colaboração de Adorno no “Princeton Radio Research Project” e se relaciona também com as críticas ao jazz e ao cinema hollywoodiano desenvolvidas no capítulo sobre a indústria cultural da Dialética do esclarecimento. Além disso, o texto antecipa elementos fundamentais da Filosofia da nova música, cujo início de redação data desse mesmo período, e prefigura posicionamentos filosóficos bem posteriores, como os dos textos sobre televisão da década de 1950, comentados adiante, e até mesmo alguns tópicos da Teoria estética, elaborada a partir de meados dos anos 1960 e deixada inacabada pelo filósofo.
No que tange à conexão com a Teoria estética, salta à vista em ”O esquema da cultura de massas” a ideia da obra de arte como estando numa relação de oposição à realidade empírica, a qual tende a ser eliminada pela indústria cultural, uma vez que os seus produtos se apresentam como uma espécie de realidade substitutiva da empiria, na qual impera uma autorreferencialidade completa, sendo que a proximidade com o real, reivindicada pela cultura de massas, funciona como um modo de sua deformação, na qual os conflitos são desviados para a esfera do consumo.
No centro da reificação ocasionada pela indústria cultural se encontra a tendencial abolição do tempo nas consciências a ela submetidas a partir da atemporalidade inscrita nos seus produtos. Para Adorno, esse processo coincide com a eliminação da própria historicidade na vivência das pessoas, o que vem ao encontro da ideologia predominante no capitalismo tardio, no sentido de imposição da a-historicidade em todos os âmbitos da vida: ”Todo produto da cultura de massas é, por sua própria estrutura, tão esvaziado de história quanto o mundo administrado do futuro gostaria de ser desde já.”[xxiii] Um exemplo prático desse esvaziamento da história é, segundo Adorno, a transmissão radiofônica da música, tal como criticamente analisada nos textos comentados acima. Segundo ele, “Na música, o a-histórico foi implementado por transformações técnicas que a levaram ao rádio.”[xxiv]
Outro tópico abordado em “O esquema da cultura de massas” que antecipa discussões fundamentais na obra posterior de Adorno é a crítica à “pseudomorfose”. Essa pode ser definida como a pervasão do elemento fundamental de um métier artístico no cerne de outra linguagem da arte enquanto sintoma de um tipo de alienação generalizada na cultura em que ocorre de modo corrente e acrítico.[xxv] Adorno aborda, na Filosofia da nova música, por exemplo, o impacto da espacialidade – típica das artes visuais – na música, entendida como arte essencialmente temporal, sendo que, na contemporaneidade, a composição de Igor Stravinsky poderia ser considerada um paradigma.[xxvi] Mas também o impressionismo musical apresenta características semelhantes e Adorno não deixa de mencioná-lo em “O esquema da cultura de massas”: “Enquanto pseudomorfose da música com a pintura, a música impressionista imitou esse procedimento, e não por acaso Debussy escolheu a varieté como um de seus assuntos musicais.”[xxvii]
Essa conexão de um exemplo de música “séria” a elementos associados ao entretenimento remete à conhecida crítica de Adorno ao jazz, que aparece em vários momentos do texto em tela, sendo que, num deles, esse tipo de música popular estadunidense é equiparado aos esportes, já que tanto na execução musical não raro virtuosística quanto na dança frenética a ela associada há um gasto considerável de energia corporal, no qual o ritmo determina os gestos, que, segundo a crítica ácida de Adorno, traduzem o conformismo e a resignação: ”Se no jazz o prazer dos dançarinos pode ser buscado na síncopa como fórmula de sua própria mutilação – e sua função coletiva não deve enganar a esse respeito –, então no músico de jazz o prazer pode ser comparado ao do esportista que trabalha sob condições deliberadamente extenuantes.”[xxviii]
Não que o esporte, para Adorno, seja em si memo algo nocivo ao desenvolvimento pessoal; para ele “O esportista, como pessoa, pode desenvolver certas virtudes como a solidariedade, a solicitude, ou mesmo o entusiasmo, que seriam valiosos em momentos políticos cruciais.”[xxix] Mas a apropriação do esporte pela indústria cultural valoriza não a prática esportiva propriamente dita, mas a passividade dos que apenas assistem aos jogos, reagindo aos acontecimentos do modo previamente configurado pelos seus organizadores e difusores radiofônicos e/ou televisivos: “A cultura de massas não quer transformar seus consumidores em esportistas, e sim em ululantes torcedores de arquibancada.”[xxx]
Outro tema abordado em “O esquema da cultura de massas” que repercutiu decisivamente no desenvolvimento posterior de Adorno, foi o modo como aparece, nesse texto, a relação da imagem tecnológica dos dispositivos da indústria cultural com a escrita, enquanto médium anteriormente predominante, através do qual se veiculavam os conceitos no âmbito da cultura. A ideia é que a ideologia que se realizava antes pela palavra – inclusive enquanto escrita –, passou a se concretizar mais efetivamente no cinema enquanto imagens em movimento que, no fundo, desempenhavam uma função ideológica semelhante à da própria escrita: “Até mesmo como fenômeno ótico as imagens do cinema, que lampejam e desaparecem, se aproximam da escrita. Elas são percebidas, não observadas. A fita leva o olhar como a linha, e ao doce embalo das cenas flui o folhear das páginas.”[xxxi]
A efetividade da ideologia nesses termos atingiu níveis inéditos no filme sonoro, que se popularizou a partir de meados da década de 1920, o qual, na avaliação de Adorno, pôs fim à dialética imagem-escrita característica do cinema mudo, aprofundando a supramencionada tendencial indistinção entre a mercadoria e a experiência empírica das pessoas, transformando as mensagens em hieróglifos, nos quais, entretanto, a indistinção entre ícones e conceitos antes confundem as massas do que as esclarecem. Segundo Adorno: ”Nos filmes antigos, os signos escritos dos letreiros ainda se alternavam às imagens, antítese que emprestava peso ao caráter imagético das imagens. Essa dialética era, tal como todas as demais, insuportável para a cultura de massas. Ela afastou a escrita do filme como um corpo estranho, apenas para converter em escrita as imagens, que a absorveram.”[xxxii]
A conclusão de “O esquema da cultura de massas” aponta para o que, no corpo da Dialética do esclarecimento, aparece como “contexto universal de cegueira” (universaler Verblendungs zusammenhang), ou seja, a situação característica do capitalismo tardio, na qual a exploração do trabalho é escamoteada pela despersonalização radical dos agentes da produção, fazendo com que fatos sociais e históricos apareçam como fenômenos naturais, sem que, na verdade o sejam. O último período do texto, além de chamar a atenção para esse fenômeno de modo muito expressivo, aponta a parcela de responsabilidade que cada pessoa tem na conservação – ou na subversão – desse estado de coisas:
Os luminosos que despontam sobre a cidade, ofuscando com sua luminosidade a escuridão natural da noite, trazem como cometas, em seu arrepio de morte, notícias sobre a catástrofe natural que se abateu sobre a sociedade. No entanto, eles não caem dos céus. São controlados aqui da Terra. Cabe aos homens decidirem se querem apagá-los, para despertar do pesadelo que ameaça tornar-se realidade, apenas enquanto acreditarem neles.[xxxiii]
O texto seguinte, “Prólogo à televisão”, faz parte dos estudos que Adorno realizou como diretor científico da Hacker Foundation nos Estados Unidos, de 1952 a 1953, tendo sido publicado pela primeira vez no periódico Rundfunkund Fernsehen (“Rádio e televisão” – caderno 2, 1953) e posteriormente na coletânea Eingriffe. Neunkritische Modelle(“Intervenções. Nove modelos críticos”). Essa coletânea figura atualmente no volume 10.2 dos Gesammelte Schriften de Adorno.
Juntamente com o artigo “Televisão enquanto ideologia” – presente nesta coletânea e a ser comentado adiante – o “Prólogo sobre a televisão” procura reparar o déficit do texto da Dialética do esclarecimento no que tange à televisão, já que, na década de 1940, esse veículo ainda não estava suficientemente estabelecido, de modo que os autores pudessem fazer uma análise crítica sobre a sua vinculação ao sistema da indústria cultural. Dos dois textos, “Prólogo sobre a televisão” é o mais teórico e se inicia com a afirmação de que, para uma abordagem crítica da televisão, os “aspectos sociais, técnicos e artísticos da televisão não podem ser tratados isoladamente”[xxxiv]. Isso porque constata-se, já no início da década de 1950, nos Estados Unidos, uma inserção total do medium televisão no abrangente esquema da indústria cultural. Adorno observa, nesse texto, que a estratégia de duplicação do mundo sensível, já presente no filme sonoro, foi ampliada na televisão devido ao fato de que ela tem mais recursos para penetrar na vida privada das pessoas, invadindo a intimidade de seus lares.
Adorno constata, no entanto, o problema técnico – particularmente importante se se considera a tecnologia da época em que foi escrito o texto – do tamanho das imagens, pequenas, se comparadas com as projetadas na tela do cinema. Segundo ele, se não ocorresse um desenvolvimento técnico que possibilitasse o uso doméstico de telas maiores, tal como hoje é amplamente possível, o potencial de manipulação ideológica da televisão poderia não se realizar completamente. Outro problema “técnico” associado a tal escopo é a desproporção entre o realismo das vozes e o caráter fantasmático das imagens, a qual ocorria já no cinema, “pois entre as imagens bidimensionais e a corporeidade da voz reina uma contradição.”[xxxv] Esse problema seria, no entanto, acentuado na televisão pelo supramencionado tamanho reduzido das imagens.
Numa referência não explícita ao seu estudo sobre a sinfonia no rádio, Adorno observa ainda que o ocorrido com o som na época em que surgiu o rádio comercial, acontece agora com as imagens: “Acontece agora com todas as imagens aquilo que há tempos aconteceu com a sinfonia: o funcionário exausto, enquanto toma sopa em mangas de camisa, a tolera sem prestar muita atenção”[xxxvi].
A conexão das mensagens ao que é mais prosaico funciona como paródia da fraternidade e da solidariedade e é, segundo Adorno, a principal característica do médium televisão, havendo uma intenção deliberada de dissociá-lo do contexto de sacralidade do qual a obra de arte surgiu. Isso porque “o ambiente em que se assiste televisão não deve se distinguir demais da normalidade.”[xxxvii], pois os limites entre a realidade e o construto imagético-sonoro apropriado pela ideologia devem ser reduzidos até onde for possível. Essa apropriação se liga ao estabelecimento de uma linguagem visual, na qual os conteúdos são “pré-conceitualmente” introduzidos, uma vez que as palavras e os conceitos a elas correspondentes são antecedidos por imagens que, atuando em camadas inconscientes da psique dos consumidores, condicionam comportamentos confirmadores do status quo.
O texto “Televisão como ideologia”, o qual também faz parte da pesquisa financiada pela Hacker Foundation, apareceu como artigo em inglês, denominado “How to Look at Television“, primeiramente publicado em The Quarterly of Film, Radio and Television (Vol. VIII, Spring 1954, pp. 214–235). Nele, Adorno se propõe a analisar scripts de séries televisivas (trinta e quatro ao todo), enquanto produto típico desse medium, com acentuadas diferenças com relação aos filmes longa-metragem – o produto mais característico da indústria cultural até a época em que Adorno escreveu esse texto (por volta de 1952). Uma vez que esses teleteatros são mais curtos (as peças analisadas duram, no máximo, trinta minutos), sua qualidade fica, segundo Adorno, ainda mais comprometida do que a do cinema, embora, de acordo com ele, essas diferenças não comprometem a unidade monolítica da indústria cultural enquanto sistema, ainda que a abrangência e a penetração do meio televisivo justifiquem sua abordagem em separado, como ele se propõe a fazer.
Dentro do projeto de manutenção ideológica da ordem vigente, não há muita novidade, no que tange especificamente às análises dos scripts, excetuando-se o fato de que a escolha feita por Adorno para seus comentários recai sobre aqueles programas que mais tipicamente representam os “gêneros” comumente cultivados na indústria cultural. No que concerne às comédias, apresenta-se a história de uma professora primária que se encontra em sérias dificuldades financeiras, na qual se explora o aspecto, supostamente cômico, das suas investidas – sempre frustradas – no sentido de ser convidada para refeições em casa de amigos. Segundo Adorno, a mensagem subliminar é que, em qualquer circunstância – mesmo matando-se de trabalhar e não tendo recursos nem para a alimentação – não se deve perder o bom humor e o fairplay.
Adorno analisa também outro enredo de comédia, segundo o qual uma excêntrica senhora idosa faz o testamento de seu gato de estimação, nomeando como herdeiros pessoas comuns desconhecidas, as quais são obrigadas a fingir que são velhas conhecidas da senhora, até que se descobre que a “herança” não passava de brinquedos para gato. Depois de descartados os brinquedos, constata-se que, em cada um deles, se encontrava escondida uma cédula de cem dólares, o que obriga os honrados cidadãos de classe média a revirar a lata de lixo à procura do dinheiro. Tanto em relação a esse script quanto ao anterior, a análise de Adorno aponta para o encorajamento do conformismo.
Embora mencione outros exemplos dentre os gêneros que mais bem caracterizam os produtos televisivos, Adorno se detém na análise de uma peça que supostamente apresenta traços mais “psicológicos” em seus personagens. Trata-se do script da peça, na qual uma atriz de muito sucesso, porém de trato difícil, passa por um processo de “tomada de consciência” de sua própria situação e se torna, ao final, doce e amável. O agente nesse processo é um dramaturgo, que se apaixona por ela e escreve um roteiro que se aproxima tanto da biografia da própria atriz, que ela vai se transformando paulatinamente até que ela não apenas se declara apaixonada pelo protagonista, como também se abre para um sentimento religioso que até então recalcara. Isso ocorre após um episódio catártico em que a filha da atriz, antes rejeitada pela mãe, tenta se afogar no mar e é salva, com a participação ativa do dramaturgo.
No que tange às observações conclusivas das análises dos scripts, Adorno destaca dois aspectos: o primeiro diz respeito à maneira deliberada e abertamente “kitsch” com que tais produtos rotineiros da indústria cultural são apresentados, na esperança de conquistar também a adesão dos espectadores menos ingênuos, atentos ao que possa lhes parecer uma “autocrítica” embutida nas mercadorias culturais. A outra observação relaciona-se exatamente às possibilidades de uma conscientização dos telespectadores sobre os aspectos mais fortemente ideológicos da televisão, a qual teria como pressuposto uma tomada de consciência por parte dos próprios produtores desse meio de comunicação, fato que pressuporia, por sua vez, outra estrutura organizacional que não a estação comercial:
Para começar, o mais importante é tornar conscientes fenômenos como o caráter ideológico da televisão, não apenas entre os que se encontram nos setores da produção, mas também entre os espectadores. Na Alemanha em especial, onde interesses não-econômicos controlam a programação diretamente, pode-se esperar algo das tentativas de esclarecimento. Se a ideologia, que utiliza um número algo limitado de truques e ideias sempre repetidos, fosse posta em seu devido lugar, então talvez pudesse surgir alguma aversão do público a ser tratado como gado, apesar da disposição de inúmeros espectadores para que a tendência social da ideologia prevaleça. Talvez seja possível cogitar uma espécie de imunização do público contra a ideologia disseminada pela televisão e o meios afins.[xxxviii]
O texto seguinte “Cultura e administração”, datado de 1960, foi originalmente uma palestra de Adorno, publicada primeiramente no periódico alemão Merkur (vol. XIV, 1960, caderno 2, p. 101) e no volume de anais Vorträge, gehaltenanläßlich der Hessischen Hochschulwochen für staats wissenschaftliche Fortbildung (“Palestras proferidas na ocasião da semana de escolas superiores de Hessen” — vol. 28. Bad Homburg, VDH, 1960, pp. 214–231), depois acolhida na coletânea conjunta com Horkheimer, Sociologica II. Redenund Vorträge (“Sociológica II. Discursos e palestras” – Frankfurt AM Main: EuropäischeVerlagsanstalt, 1962) e, finalmente, incluída no volume 8 dos Gesammelte Schriften(“Escritos reunidos”) de Adorno, dedicado aos seus escritos sociológicos (parte I).
Trata-se de um instigante ensaio, no qual Adorno investiga, como indica o próprio título, as relações entre a produção cultural e os processos administrativos. Para o senso comum hodierno, totalmente imbuído do espírito da indústria cultural, esses dois âmbitos estão tão mutuamente imbricados que Adorno se vê autorizado a iniciar o seu texto afirmando, provocativamente, que “Quem diz cultura, diz também administração; quer queira, quer não.”[xxxix] Mas, para além disso que parece atualmente um truísmo, o filósofo se reporta ao conceito alemão de cultura, que seria o extremo oposto da administração, pois ela almejaria ser exatamente aquilo que há de mais elevado e puro, num tipo de idealização que excluiria até mesmo a modelação de seus produtos por meio de critérios técnicos ou práticos. Nesse sentido, a cultura teria como contra-polo a civilização, locus do tipo de organização à qual se filia a administração num sentido amplo.
Mas, segundo Adorno, o relacionamento entre a cultura e a administração é tão complexo que poderia ser equacionado um paradoxo formulado desse modo: “quando planejada e administrada, a cultura é danificada; quando relegada à sua sorte, entretanto, ela corre o risco de perder não apenas sua efetividade, mas também sua própria existência.”[xl] Nesse sentido, a sobrevida da cultura depende de um tipo de organização, para cuja caracterização Adorno recorre ao conceito weberiano de racionalidade, no sentido de incorporar uma boa dose de universalidade no âmbito das instituições que compõem a sociedade burguesa, enquanto superação de particularidades que se expressam nos laços de família na condução dos negócios públicos, por exemplo, em benefício da competência técnica para a realização dos fins a que se destinam as referidas instituições.
Com todo o caráter republicano, porém, impresso no posicionamento weberiano, Adorno assevera que sob esse aspecto de uma racionalidade que poderia se chamada “instrumental”, até mesmo organizações em prol do terror político, como a SS nazista, por exemplo, se encaixaria bem no tocante à correlação entre meios e fins, em detrimento da avaliação sobre a racionalidade dos fins: “na própria teoria da racionalidade de Weber pode-se suspeitar a presença latente da racionalidade administrativa.”[xli]
Racionalidade administrativa essa vocacionada a colidir com demandas oriundas de setores como os da criação artística e cultural, as quais ocorrem sob o signo da particularidade, embora, paradoxalmente, sejam aquelas que têm em si mesmas a consideração dos fins e a projeção de outro tipo de universalidade – via de regra –, desconsiderados pela razão supostamente universalista da administração. Isso explica, segundo Adorno, os conflitos de interesses entre a cultura e a administração numa sociedade de classes como a capitalista: “Numa sociedade antagônica, organizações orientadas para fins devem perseguir fins particulares, isto é, precisam se estruturar às custas dos interesses dos demais grupos”.[xlii]
É por isso que a subsunção da criação e produção artísticas à administração gera, no âmbito da cultura uma incontornável heteronomia, na medida em que aquela deve adequar quaisquer assuntos culturais a normas que lhe são essencialmente extrínsecas, totalmente alheias às características dos seus objetos. Isso quando, de algum modo a sociedade está, ainda que moderadamente, convencida de que os investimentos na área cultural valem a pena, uma vez que sobre esse âmbito sempre pesa a acusação de ele ser inútil, de não trazer qualquer benefício concreto para a coletividade.
A esse respeito, a resposta de Adorno é clara: não há qualquer certeza metafísica sobre o fato de algumas coisas serem consideradas úteis e outras não, havendo, isso sim, construções sociais que procuram justificar o beneficiamento de certos setores da sociedade em detrimento de outros: “A utilidade do útil não está acima de qualquer dúvida, e o inútil ocupa o lugar daquilo que não se poderia mais desfigurar pelo lucro. (…) A cultura deve ser completamente inútil, e por isso estar além dos métodos de planejamento e administração da produção material, para que assim ganhem maior relevo as pretensas justificativas do útil, assim como as do inútil”.[xliii]
A ideia que embasa essa dialética da utilidade, proposta por Adorno, é a de que a noção de trabalho socialmente útil não pode ser abstraída do que ele chama de “socialização integral”, i.e., a consideração da utilidade não apenas do ponto de vista dos interesses imediatos dos setores dominantes numa sociedade, mas daqueles que demonstram a sua utilidade exatamente pela problematização daquela noção predominante de utilidade. A isso se associa a ideia de que a utilidade mediata da cultura seria a humanização da humanidade, diante de cujo fracasso Adorno afirma: “A cultura não foi capaz de assentar raízes nos homens enquanto lhes faltem condições para uma existência humanamente digna: não é à toa que esteja sempre propensa a irrupções bárbaras, com rancor reprimido pelo destino que lhe coube, a falta de liberdade experimentada profundamente.”[xliv]
Apesar disso, a conclusão de Adorno não é necessariamente pessimista, no sentido de que o paradoxo formulado no início do ensaio pode não ser insolúvel e a cultura pode ser objeto de apoio institucional, sem que isso signifique fatalmente a sua imersão completa na heteronomia: “Quem quer que opere os meios administrativos e as instituições com imperturbável senso crítico pode ainda realizar algo mais que a pura cultura administrada.”[xlv]
O último texto da coletânea “Resignação” foi, originalmente, uma palestra radiofônica no Sender Freies Berlin (“Emissora Berlim Livre”), transmitida em 09/02/1969, e publicada como capítulo do livro Politik, Wissenschaft, Erziehung. Festschriftfür Ernst Schütte (“Política, ciência, educação. Escrito comemorativo para Ernst Schütte” – Frankfurt amMain 1969, pp. 62–65). Foi posteriormente acolhido no volume 10.2 dos Gesammelte Schriften (“Escritos reunidos”), juntamente com o ensaio “Kritik” no que seria um livro denominado Modelos críticos III, o qual não chegou a ser finalizado em virtude do falecimento de Adorno em 06/08/1969.
A compreensão do significado desse texto depende do conhecimento do contexto particularíssimo no qual ele foi gestado, a saber o dissenso entre Adorno e os estudantes da Universidade de Frankfurt, mobilizados a partir de 1968, num movimento correlato ao de maio desse mesmo ano na França. Os estudantes alemães, por um lado, protestavam contra a violência policial que lhes era dirigida e contra medidas autoritárias que estavam prestes a ser tomadas pelo governo conservador da Alemanha Federal; por outro lado, reivindicavam mais democracia interna nas instituições de ensino superior alemãs, sendo que as suas facções mais radicais acreditavam – erroneamente, ao que tudo indica – se encontrar num período pré-revolucionário.[xlvi] Em relação a Adorno e a outros docentes da Goethe Universität, a queixa dos revoltosos era mais específica: representantes de Teoria Crítica da Sociedade tinham sido os inspiradores teóricos do seu movimento e teriam supostamente traído os seus alunos em não os apoiarem nas suas ações práticas e a não tomarem a sua defesa com a veemência que consideravam necessária. Tendo em vista esse contexto, e levando em conta a crescente radicalização nas ações dos estudantes diante da repressão policial, Adorno afirma que: ”A contestação que nos fazem em voz baixa diz algo como: aquele que, em tempos como estes, duvida da hipótese de profunda transformação da sociedade, e por isso não participa em ações violentas e espetaculares nem as recomenda, teria capitulado.”[xlvii]
Adorno rebate enfaticamente a acusação que lhe é dirigida, chamando a atenção para o fato de que o anti-intelectualismo demonstrado por vários protagonistas da revolta estudantil parecia ser uma reprodução da habitual hostilidade aos intelectuais pelos meios de comunicação, que atinge, ironicamente, os próprios grupos oposicionistas que são difamados, eles próprios, como intelectuais. O fundamento, invocado pelos estudantes, para a acusação dirigida a Adorno e seus colegas seria a indissolubilidade entre a teoria e a práxis, com a qual, em princípio, se poderia concordar completamente. Mas Adorno pondera que, numa situação social específica em que o elemento “prática” significaria apenas o incremento da produção material, o que estaria em questão seria uma completa submissão da teoria à práxis: “A tão evocada unidade entre teoria e práxis tem uma tendência de converter-se abusivamente em predomínio da práxis.”[xlviii]
Adorno identifica como núcleo do conflito entre ele os estudantes o fato de esses nutrirem expectativas exorbitantes quanto ao alcance do seu movimento, as quais não eram compartilhadas pelo filósofo, que acreditava estar sendo objeto da ira dos revoltosos porque encarnava a figura daquele que tentava avisá-los de que não deveriam esperar uma revolução socialista para o dia seguinte. Segundo Adorno: “Por ora, não há no horizonte nenhuma forma de sociedade superior: quem gesticula como se ela estivesse ao alcance das mãos tem algo de regressivo.”[xlix] Para o filósofo, a atitude mais subversiva que se poderia assumir naquele momento seria uma radicalização do pensamento – fator decisivo para a configuração de uma práxis transformadora, não assumindo a situação presente como definitiva e prefigurando suas possíveis saídas. A explicação tentada por Adorno para compreender a atitude dos estudantes é que o mundo administrado tende a inibir toda e qualquer espontaneidade, canalizando-a para o que ele chama de “pseudoatividade”, termo com o qual ele designa o acionismo dos estudantes.
Apesar da atmosfera um tanto sombria do texto, a qual remete ao profundo sofrimento experimentado por Adorno nessa situação (que talvez tenha levado-o à enfermidade e à morte), ele termina por evocar a alegria do pensante enquanto símbolo da própria humanidade e fator de resistência contra o assédio do mundo administrado:
E porque aquele que pensa, não quer fazer mal a si mesmo, tampouco quer fazer mal aos demais. A alegria que emana dos olhos de quem pensa é a alegria da própria humanidade. Por isso, a tendência universal à opressão investe contra o pensamento enquanto tal: ele é felicidade mesmo ali onde define a infelicidade; pois a enuncia. Somente por seu intermédio a felicidade penetra o domínio da infelicidade universal.[l]
Essa felicidade do pensamento tem a sua universalidade implícita também no fato de que ela pode se realizar em qualquer contexto histórico ou geográfico, o que é um mote para concluir este prefácio, chamando a atenção do público leitor para a enorme qualidade dos textos e desta edição, a qual prefigura certamente momentos felizes no pensar.
*Rodrigo Duarte é professor titular no Departamento de filosofia da UFMG. Autor, entre outros livros, de Varia aesthetica: Ensaios sobre arte e sociedade (Relicário)
Referência
Theodor W. Adorno. Indústria cultural. Tradução: Vinicius Marques Pastorelli. São Paulo, Unesp, 2020, 286 págs.
Notas
[i] Clement Greenbert, “Avant-Gardeand Kitsch”, In: The ColectedEssaysand Cri2cism. Vol.1. Chicago/Londres, The Universityof Chicago Press, 1988, pp. 5-22.
[ii] Theodor Adorno, “O kitsch”.
[iii] Ibidem.
[iv] Esse ponto de vista de Adorno em relação ao seu texto aparece tanto no prefácio de Dissonanzen (Gö Xngen, Vandenhoeckund Ruprecht, 1982 p. 6) quanto no relato autobiográfico de “Experiências científicas na América” (Gesammelte Schri6en 10.2, Frankfurt AM Main, Suhrkamp, 1996, p. 706).
[v] Theodor Adorno, “Sobre o caráter de fetiche da música e a regressão da audição”.
[vi]IrayCarone, Adorno em Nova Iork. Os estudos de Princeton sobre a música no rádio (1938-1941). São Paulo, Alameda, 2018, p. 24 et seq.
[vii]Nachgelassene Schriien. Abteilung I: Fragment gebliebene Schriien – Band 3: Current of Music. Elements of a RadioTheory. Frankfurt am Main, Surhkamp, 2006.
[viii] Theodor Adorno, Current of Music. Elements of a RadioTheory. Cambridge/ Malden, Polity Press, 2009.
[ix] Paul Lazarsfeld, “RemarksonAdministragveand Crigcal Communicagons Research”. In: Studies in Philosophyand Social Science 9, 1941. pp.2-16. Apud Theodor Adorno, “Para uma crítica social da música no rádio”..
[x] Theodor Adorno, “Para uma crígca social da música no rádio”.
[xi] Primeiramente publicado em Studies in Philosophyand Social Science, vol IX, 1941, p. 17-48. Republicado em Current of Music, op. cit., p. 271 et seq.
[xii] Theodor Adorno, “Para uma crítica social da música no rádio”.
[xiii] The Radio Symphony. An Experiment in Theory, in: Radio Research 1941. Ed. by Paul F. Lazarsfeld and Frank N. Stanton. New York 1941. S. 110ff. Republicado em Current of Music (op. cit., p. 144 et seq.). Nesta edição houve o acréscimo de algumas passagens recolhidas no manuscrito e disponíveis no volume: Theodor Adorno: Essays on Music, organizado por Richard Leppert (Universityof California Press, 2002, p. 251 et seq.).
[xiv] Sobre esse desentendimento, ver IrayCarone, op. cit., passim.
[xv] Theodor Adorno, “A sinfonia no rádio”.
[xvi] Ibidem.
[xvii] Ibidem.
[xviii] Ibidem.
[xix] Ibidem.
[xx] Ibidem.
[xxi] Theodor Adorno, Wissenschailiche Erfahrungen in Amerika, In: Stichworte. Krigthsche Modelle II, Gesammelte Schri6en 10.2. Frankfurt amMain, Suhrkamp, 1996, p. 717.
[xxii]Editorische Nachbemerkung (Nota editorial), In: Gesammelte Schri6en 3, Frankfurt am Main, Suhrkamp, p. 336.
[xxiii] Theodor Adorno, “O esquema da cultura de massas”.
[xxiv] Ibidem.
[xxv] V. Rodrigo Duarte, “Sobre o conceito de ‘pseudomorfose’ em Theodor Adorno”. Artefilosofia 7, 2009, p. 31-40.
[xxvi] Cf. Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik. In: Gesammelte Schri6en 12. Frankfurt AM Main, SuhrkampVerlag, 1978, p. 127 et seq.
[xxvii] Theodor Adorno, “O esquema da cultura de massas”.
[xxviii] Ibidem.
[xxix] Ibidem.
[xxx] Ibidem.
[xxxi] Ibidem.
[xxxii] Ibidem.
[xxxiii] Ibidem.
[xxxiv] Theodor Adorno, ”Prólogo à televisão”.
[xxxv] Ibidem.
[xxxvi] Ibidem.
[xxxvii] Ibidem.
[xxxviii] Theodor Adorno, “Televisão como ideologia”.
[xxxix] Theodor Adorno, “Cultura e administração”.
[xl]Idem.
[xli] Ibidem.
[xlii] Ibidem.
[xliii] Ibidem.
[xliv] Ibidem.
[xlv] Ibidem.
[xlvi] Sobre o contexto que gerou a produção desse texto de Adorno, ver, Rodrigo Duarte, “O movimento estudantil alemão na década de 1960 e a Teoria Crígca da Sociedade: algumas anotações”. Revista Kritérion, Número especial, julho de 2020.
[xlvii] Theodor Adorno, “Resignação”.
[xlviii] Ibidem.
[xlix] Ibidem.
[l] Ibidem.