Não aprendemos nada com o golpe de 2016?

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Por VALERIO ARCARY*

A extrema-direita, em especial sua ala neofascista, não acata nada. Seus limites são aqueles determinados pela relação social e política de forças

“Assim, paradoxalmente, a causa mais profunda da revolução está não na mobilidade da mente dos homens, mas em seu conservantismo inato, Os homens só se levantam em massa quando percebem subitamente como estão mentalmente atrasados em relação aos tempos e desejam reparar esse atraso imediatamente É a lição que nos mostra a história da Revolução Russa: as grandes convulsões na sociedade seguem-se automaticamente da decadência de uma velha ordem; gerações podem viver em uma ordem decadente, sem terem consciência disso. Mas quando, sob o impacto de alguma catástrofe como a guerra ou o colapso econômico, adquirem consciência disso, há uma explosão gigantesca de desespero, esperança e atividades” (Isaac Deutscher, Trotsky: o profeta banido, p. 241).

Qual é o futuro da democracia no Brasil e na América Latina? Um dos temas centrais da atual situação é o problema da instabilidade dos regimes democrático-liberais que surgiram dos processos de derrubada das ditaduras há quarenta anos. A evolução nos últimos cinco anos não é muito animadora.

Depois de perder quatro eleições presidenciais seguidas a burguesia brasileira girou para o golpismo em 2016, e inflamou um movimento exasperado da pequena-burguesia que ofereceu a base social do neofascismo. A gestão negacionista, ou a rigor genocida da pandemia, produziu uma fratura na classe dominante, e um setor se deslocou para a oposição.

Mas seria ingênuo e superficial, considerando a perspectiva de uma polarização eleitoral entre a esquerda e a extrema-direita, apostar que um futuro governo Lula, se vencer as eleições, ainda que moderadamente reformista, não terá que medir forças com um bolsonarismo radicalizado com implantação nas polícias e nas Forças Armadas. O conflito será inevitável. A fração burguesa que apoia Bolsonaro não se impressiona com coalizões eleitorais “tranquilizadoras” para o “mercado” em 2022, seja qual for a candidatura à vice-presidência.

A extrema-direita, em especial sua ala neofascista, não acata nada. Seus limites são aqueles determinados pela relação social e política de forças. A história já demonstrou que um regime não é democrático porque admite eleições. A questão decisiva é saber se a classe dominante está ou não disposta a respeitar as liberdades democráticas, e até as próprias regras legais de acesso ao poder, quando descobrem seus interesses ameaçados.

Mesmo que um possível governo Lula se restrinja apenas a uma estratégia anti-cíclica para retomar o consumo interno, articulado com o impulso de programas de inclusão social para a extrema-pobreza. Só há uma resposta sensata: máxima tensão social e política. Não aprendemos nada desde 2016?

Uma parte da esquerda marxista latino-americana, em especial nos anos 1950 e 1960, manteve uma defesa ortodoxa da elaboração da Terceira Internacional, que considerava que as condições econômicas da inserção dependente do subcontinente no mercado mundial, e as consequentes mazelas sociais, um fator de objetivo de potencialização da instabilidade política de tal ordem, que impediria a consolidação de democracias. A miséria crônica seria incompatível com os novos regimes democráticos. A dominação política deveria assumir a forma de regimes ditatoriais.

Na etapa histórica do pós-guerra este prognóstico se confirmou. Depois da vitória da revolução cubana em 1959 as quarteladas instauraram ditaduras militares em todo o Cone Sul: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile. Mas os últimos quarenta anos, após a restauração capitalista na ex-URSS, parecem demonstrar, também, que esse vaticínio era, relativamente, transitório. O capitalismo, mesmo em países dependentes, não é incompatível com qualquer regime político, seja ele qual for.

Antes dos anos 1980 a esperança estava depositada nas perspectivas que a crise política que a agonia das ditaduras militares preparava. Supunha-se que o intervalo entre os Fevereiros e os Outubros, para retomar a analogia histórica, seria breve, como foi na crise do Czarismo na Rússia, e que as lutas democráticas contra as ditaduras seriam uma antessala da luta pelo poder para os trabalhadores. Uma interpretação “russificada” da teoria da revolução mantinha enorme influência.

Essa hipótese, evidentemente, não se confirmou. Duas conclusões esquemáticas e perigosas podem se inferir, no entanto, sobre esse tema. A primeira seria uma ilusão “democratista” sobre o futuro das democracias latino-americanas, ou talvez melhor sul-americanas, porque a situação do México é especial (como eles mesmo gostam de recordar, “pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos”). As atuais democracias nos países periféricos sob pressões “semi-coloniais” estão, umas mais do que outras, em uma crise séria. O Brasil, além de Honduras e Paraguai, conheceu uma nova forma de golpe “institucional”.

Os regimes políticos sul americanos encontram dificuldades para conseguir um mínimo de estabilidade, de tal forma, que a alternância democrática, ou seja as sucessões de mandato (depois da “lua de mel” das eleições que se sucederam ao sucesso dos planos de estabilização monetários inspirados em diversas formas de dolarização nos anos 1990) não se transformem em crises de regime crônicas. Fortes pressões bonapartistas, cujas expressões extremas foram o o uribismo na Colômbia, o fujimorismo no Peru e, recentemente, o bolsonarismo no Brasil se manifestaram.

O outro erro seria pensar que este “intervalo democrático” de uma geração, quase uma exceção na conturbada história do subcontinente, seria uma confirmação de que uma nova etapa teria se aberto. A hipótese de que uma maioria das classes dominantes estaria convertida às virtudes ou vantagens da democracia, e convencida de que esse seria o melhor regime para preservar a sua dominação de classe não se sustenta. Nenhuma classe social na história contraiu “matrimônio indissolúvel” com uma forma de regime político. O futuro da democracia republicana sul-americana permanece, portanto, incerto e duvidoso.

Na virada do século uma onda mobilizações de massas precipitaram situações revolucionárias no Equador, Argentina, Venezuela e Bolívia que abriram o caminho para governos que se apoiavam em sindicatos, movimentos populares e indígenas e elegeram Chávez, Lula, Evo Morales e Pepe Mujica. Vinte anos depois o contexto é muito complicado. Uma onda reacionária atingiu o continente, e teve no Brasil sua forma mais grotesca. Mas não conseguiu por enquanto, felizmente, se consolidar.

O Chile elegeu uma Assembleia Constituinte em 2021, dois anos depois de mobilizações de milhões e a experiência de uma greve geral, para enterrar o entulho pinochetista, mas o destino deste processo é incerto. As eleições presidenciais tendem a se polarizar entre o candidato da Frente Ampla Gabriel Boric e um neofascista. A Bolívia viveu uma ruptura golpista com uma quartelada policial-militar que sucumbiu em pouco tempo, com uma nova vitória eleitoral do MAS. Na Venezuela o governo Maduro sobrevive, apesar do cerco imperialista e das permanentes ameaças golpistas. No Peru a surpreendente eleição de Pedro Castilho abriu uma janela de esperança, embora uma forte reação por via parlamentar ameaça usurpar as expectativas das massas populares indígenas.

Mas é também incontornável que nenhuma situação revolucionária na América Latina, depois de Cuba em 1959-61, foi além do capitalismo. Mesmo na Venezuela, que conheceu a experiência mais radicalizada. A resposta repousa em muitos fatores. Entre eles, deve ser sublinhada a orientação política que prevaleceu na esquerda, que abraçou uma estratégia de reformas para estabelecer regulação das condições de exploração e opressão capitalistas. A experiência do PT no Brasil, ou da Frente Ampla no Uruguai são inequívocas.

Mas o papel dos partidos dirigentes não esgota a explicação histórica. Por que as amplas massas operárias e populares não levantaram mobilizações “explosivas” para ir além, pressionando os governos de colaboração de classes, ainda mais quando a situação objetiva era dramática?

O “relógio” da história pode ser cruel. A questão da articulação dos fatores objetivos e subjetivos é mais complicada do que pode parecer. Uma situação revolucionária exige, evidentemente, condições objetivas. Mas elas podem estar maduras há décadas, podem ter apodrecido, até, de tão maduras, sem que uma situação revolucionária tenha se aberto.

A passagem de Deutscher, comentando Trotsky, ajuda a esclarecer esta questão: “Detendo-se na ligação entre os fatores “constante” e “variável” demonstra que a revolução não se explica simplesmente pelo fato de estarem as instituições sociais e políticas, há longo tempo, em decadência e prontas a serem derrubadas, mas pela circunstancia de que muitos milhões de pessoas perceberam tal coisa pela primeira vez. Na estrutura social, a revolução já estava madura bem antes de 1917; na mente das massas, ela só amadureceu naquele ano”.[i]

A luta “cega, surda e muda” das massas, ou seja, em condições políticas adversas, ou desfavoráveis, pela ausência ou debilidade de organizações revolucionárias, leva à dissipação das energias do ascenso muito rapidamente, e a oportunidade se perde. As massas podem passar da extrema atividade à prostração e, quando exaustas ou desmoralizadas, perdem a confiança em suas próprias forças, abrindo assim o caminho para que a classe dominante possa buscar uma alternativa política pela direita, ou pela extrema direita.

A dialética da disputa pela direção, entre os vários partidos que atuam dentro do movimento dos trabalhadores, se expressa em inúmeras reviravoltas, cujo sentido é incerto, e que traduzem também as flutuações de relações de forças que não são imóveis. Trotsky problematiza: “O pensamento marxista é dialético: considera todos os fenômenos em seu desenvolvimento, em sua passagem de um estado a outro (…) A oposição absoluta entre uma situação revolucionária e uma situação não-revolucionária é um exemplo clássico do pensamento metafísico, segundo a fórmula: o que existe, existe; o que não existe, não existe, e o resto é coisa de feitiçaria. No processo histórico existem situações estáveis absolutamente não-revolucionárias. Existem ainda situações notoriamente revolucionárias. Há também situações contrarrevolucionárias (é preciso não esquecê-lo). Mas o que existe sobretudo em nossa época de capitalismo em decomposição são situações intermediárias, transitórias: entre uma situação não-revolucionária e uma situação pré-revolucionária, entre uma situação pré-revolucionária e uma situação revolucionária… ou contrarrevolucionária. São precisamente esses estados transitórios que têm uma importância decisiva do ponto de vista da estratégia política… Uma situação revolucionária se forma pela ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. Se o partido do proletariado se mostra incapaz de analisar a tempo as tendências da situação pré-revolucionária e de intervir ativamente em seu desenvolvimento, em lugar de uma situação revolucionária surgirá, inevitavelmente, uma situação contrarrevolucionária”.[ii]

Qual seria a utilidade do uso desta conceituação de situações transitórias? Ela responde à necessidade de procurar uma aproximação mais precisa em relação à realidade, e isso exige, acima de tudo, compreender a dinâmica de processos em que todos fatores evoluem de maneira desigual, e em proporções variadas, mas incidindo, reciprocamente, uns sobre os outros. As situações transitórias respondem pela maioria das conjunturas políticas, em especial nos países dependentes, onde os graus de instabilidade econômico-social são mais elevados.

Estamos em uma situação transitória. Mas ainda não sabemos para onde vamos. Nossa esperança deve ser ajudar na preparação de uma situação revolucionária.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

Notas


[i] DEUTSCHER, Isaac. Trotsky: o profeta banido, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1984, p. 241.

[ii] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo, Editora Desafio, 1994, p. 70.

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