Por JOSÉ CLÓVIS DE M. LIMA*
O sistema de previdência da Islândia tem recursos fartos para garantir por anos e anos a aposentadoria e pensões de sua população
Tomo emprestado de um colega jornalista a analogia do título. Ele costuma utilizar o termo “loteria genética” para se referir a temas relacionados ao campo da medicina e utiliza conceitos filosóficos sofisticados para tratar dos limites das conjecturas racionais. Não me arrisco a empregá-los sob o risco de passar vergonha com os mais sabidos.
Pretendo sim, à sombra daqueles que conhecem bem o tema, tentar imaginar como seria diferente ter nascido na Islândia e não em Picuí, no sertão paraibano, e ter migrado bem menino para São Paulo com meus pais fugindo da seca dos anos 1970 e da miséria.
Logo de cara digo, caro leitor: como bom nordestino que sou, jamais me acostumaria ao frio da Islândia! Porém, se nascesse lá talvez dissesse justamente o contrário: como podem esses pobres mortais viver num lugar tão quente? Ora, não é sobre o clima quente ou frio que pretendo falar, é sobre a loteria geográfica de nascer num país que trata a questão das pensões e aposentadorias dos seus habitantes como algo fundamental para o futuro do país.
Poxa, camarada! Vocês vão me dizer com alguma razão, falar do sistema de previdência social da Islândia é algo que está fora da nossa realidade. A Islândia é um país com pouco mais de 300 mil habitantes e a realidade social de lá é bem diferente da nossa.
Esse artigo deriva da notícia de que o sistema de aposentadorias e pensões implantado na Islândia está com recursos suficientes para garantir por muitos anos o futuro e a sobrevivência de sua população, em processo de envelhecimento. Lá os trabalhadores contribuem com 4% dos seus ganhos e as empresas com quase 12%, em um sistema que se divide em três partes: um geral e público, que garante uma espécie de renda básica para todos os cidadãos; alguns fundos de pensão públicos e os fundos de previdência privada.
A diferença do sistema da Islândia e o de outros países europeus que adotaram modelos parecidos de previdência pública é que os trabalhadores podem escolher em qual fundo de previdência investir. É verdade que esses fundos tiveram um prejuízo de mais ou menos 20% com a crise financeira internacional de 2008, mas desde então se recuperaram e agora estão com recursos acumulados suficientes para pretenderem modificar a legislação e investir um percentual maior não somente internamente, mas no exterior. Usando uma linguagem não técnica, esses fundos são para a Islândia aquilo que Celso Furtado pensou ao ajudar a criar os bancos nacionais de investimento social.
Agora voltando à conjectura que gostaria de fazer. Já pensou se quando eu comecei a trabalhar na década de 1980 pudesse optar por recolher 4% dos meus ganhos para um fundo de previdência público que pudesse escolher? Que a empresa na qual trabalhei por um ano e quatro meses, antes do alistamento militar, lá na avenida São João, ao lado do antigo e charmoso cinema Comodoro, tivesse ao invés de ter descontado do meu salário e não ter repassado ao INSS, como safadamente o fez, realizado a contribuição devida sobre o ganho líquido do seu capital e dos enormes lucros que tinha na venda de pneus e assessórios para carros e com isso ajudado a construir um fundo de assistência social?
O sistema de tributação brasileiro e o recolhimento de impostos é caótico. No que tange ao INSS, não era – até bem pouco tempo – nacionalmente informatizado; algumas empresas, como esta em que trabalhei na década de 1980 e que tinha sua sede em Curitiba, recolhiam a contribuição dos trabalhadores e não depositava na conta do segurado, de tal modo que quando este fosse pedir a contagem de tempo de trabalho e contribuição lá na frente para fins de aposentadoria, como fui fazer recentemente, teria o desalento de saber que precisa comprovar o registro de trabalho e esperar que o INSS avalie se vai considerar ou não esse tempo de contribuição.
Ao sair da agência do INSS, fui tomado por algumas perguntas: quem vai pagar essa conta da sonegação? A empresa que já não existe mais? Eu, o contribuinte prejudicado nas duas pontas? Ou, em última instância, a sociedade em geral, através da oneração adicional do Estado?
Voltando ao nosso tema da loteria geográfica. Espertos mais habilitados poderão objetar que há uma diferença conceitual entre seguridade social e as assistência e previdência. Sim, isso existe de fato, mas sabiamente, tanto os legisladores da Islândia, quanto os nossos constituintes de 1988 souberam dar respostas, cada um ao seu modo, àquilo que as sociedades esperavam.
No caso brasileiro, se não fosse a Constituição de 1988 estaríamos vivendo – nessa conjuntura marcada pela estagnação econômica e pela pandemia – um caos social completo. A assistência social e as aposentadorias e pensões são geridas em grande medida pelo INSS, órgãos do Governo Federal; militares, Estados e Municípios também têm seus institutos de previdência e existem alguns fundos de pensão privados, porém, é justamente o INSS que cumpre a função de seguridade social ampla em nosso país. Grande parte desses recursos advém justamente das contribuições dos trabalhadores da iniciativa privada.
A contribuição patronal para o INSS existe, mas considero que poderia ser maior e vinculada não só aos lucros de capital, mas, principalmente, aos ganhos do patrimônio. Quando se fala da taxação das grandes fortunas penso logo nisso. Reclama-se, com razão, dos altos impostos, mas será que a nossa elite estaria disposta a abrir mão de parte de seus ganhos de patrimônio e capital para retribuir socialmente?
Em muitas cidades brasileiras, é justamente a pensão e a aposentadoria dos mais pobres – conjugadas ou não com o bolsa família, agora rebatizado – que continuam fazendo a economia girar e garantindo um pouco de feijão e farinha no prato de milhões de brasileiros, além de ajudar a manter as crianças nas escolas.
Sei que estamos muito longe da realidade da Islândia, mas se criássemos esse fundo garantidor das empresas para a construção de uma renda básica e cidadã, como apregoa há anos Eduardo Suplicy, isso faria com que muitos de nós não pensassem em nascer em outro lugar que não no Brasil.
*José Clóvis de M. Lima, funcionário público, é graduado em filosofia pela USP.