Por RENATO ORTIZ*
O impacto das diferenças culturais e linguísticas em eventos acadêmicos e a importância do contexto histórico na filosofia
1.
Pronuncia-se “ôtawá”. O acento circunflexo deve cair na primeira vogal, bem separada do “t”; o agudo, sem exagero, na última sílaba. Não se deve pronunciar “otaua” como fazemos em português, o som é incompreensível para os ouvidos canadenses. O clima é primaveril, temperatura abaixo de zero, não sei o que entendem por inverno.
A viagem foi cansativa, cheia de tropeços. A greve da polícia federal paralisou os aeroportos brasileiros, fiquei três horas na fila para passar a imigração. Dormi mal, o assento que me deram, devido à passagem de emergência, não era reclinável, e minha bagagem perdeu-se no meio do caminho entre Toronto e Ottawa.
Trouxe comigo o último texto de Pierre Bourdieu – uma espécie de autoanálise intelectual (Esquisse d’une Auto-Analyse). É um livro curto, escrito na primeira pessoa do singular, de fácil leitura. Há uma constante ao longo dessas páginas: a inadequação do autor em relação ao mundo que o envolve. Não se trata apenas de sua origem social – seu pai era ferroviário –, é toda uma atitude de desconfiança e ceticismo em relação às instituições francesas que desponta.
Sempre me perguntei se isso não seria uma das chaves para se compreender a criatividade, a insatisfação funcionando como um antídoto à rotina. O conformismo é a morte da curiosidade intelectual. O mundo demasiadamente ordenado privilegia as normas e a cautela em detrimento do risco, as ideias amolecem e alimentam a preguiça da mente.
Percebo isso nos filmes de Luís Buñuel, ele traduzia a noção de ordem através da mesa de jantar. Nela, todos os apetrechos da ceia burguesa estavam dispostos: pratos, talheres, guardanapo, taças para vinho e água. Tudo esteticamente composto e bem-comportado. Os convidados sentavam-se à mesa, conversavam, entretanto, algo que lhes era exterior, estranho, perturbava a cena. A ceia não terminava nunca, sendo interrompida a cada momento. Os surrealistas tinham a virtude de captar o “sobre real”, isto é, a posição de estranheza que instaura o hiato entre o entendimento e a realidade.
2.
O colóquio tem um nome atrevido: “Modernity in Transit”. Congrega representantes de lugares distintos, como se fosse possível nas Ciências Sociais representar algo tão amplo como um país. Mas eles cultivam este tipo de ilusão multicultural ao convidar pessoas de territórios e gêneros diversificados.
Durante alguns dias serei Brasil, unidade ontológica enigmática. Devo ainda atuar numa mesa-redonda ao lado de uma figura distinta: Gianni Vattimo. Porém, um mal-entendido alimentou a controvérsia entre os participantes do seminário. Na fala de abertura dos trabalhos, Gianni Vattimo pronunciou a palavra judeu ao se referir à Jacques Derrida. Não havia em sua exposição nenhum traço depreciativo em relação ao termo, pelo contrário, sua observação, dita de maneira casual e amistosa, tinha um intuito teórico.
Disse em seguida, não consigo entender a distinção que ele faz entre “différance” e “différence”. Já conversamos sobre isso, somos amigos, eu lhe perguntei: “Como estabelecer a diferença entre Hitler e Jesus”? Foi a gota d’água. Algumas pessoas do público indignadas interromperam a apresentação. Era uma falta de respeito em relação aos judeus mencionar Hitler após tantas atrocidades.
Gianni Vattimo tentava se explicar, mas a cada frase sua reação era maior. No mundo anglo-saxão existem alguns tabus, ele, como um estrangeiro, tinha adentrado um campo minado. Sua observação nada continha de antissemitismo, mas o politicamente correto exigia o polimento dos termos para adocicar o discurso.
No final de sua apresentação, me aproximei para conversar. Eu o entendia. Jacques Derrida faz um jogo de palavras com o termos “différence” (com “e”) e “différer” que em francês significa também adiar, postergar. A “différance” (com “a”) se refere ao adiamento, o que torna o significado da linguagem sempre algo incompleto, “adiado”.
Neste sentido, as diferenças não conseguiriam exprimir algo que as transcenderia e estaria postergado, ou seja, fora do alcance de sua enunciação. Gianni Vattimo queria dizer que esse entendimento abstrato da linguagem fazia pouco sentido, por isso Hitler, Jesus, ou qualquer outro personagem, ao ter seu significado “adiado”, não poderiam ser diferenciados entre si (a comparação seria improcedente).
Para ele a “différance” deveria estar contextualizada. Este é talvez um dos traços que distingue a filosofia italiana – mesmo o idealismo hegeliano, na Itália, sempre se desenvolveu dentro de uma perspectiva historicista, seja em Benedetto Croce ou Antonio Gramsci. Era a materialização do conceito na história que atraía os pensadores italianos.
Gianni Vattimo é católico; seus antagonistas momentâneos, judeus. Eu lhe disse: “não sou católico, nem judeu, sou pagão”. Ele pareceu não entender e confessou, tinha um forte sentimento de culpa em relação ao que havia ocorrido, queria simplesmente dizer algo simpático, formular um artifício retórico (captatio benevolentiae) para cativar o público.
Foi quando respondi: “não sei o que é sentimento de culpa”. Neste momento seus olhos brilharam e retrucou: “você é um verdadeiro pagão”.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Influência (Editora Alameda) [https://amzn.to/44eOng6]
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