A comunidade que vem

Arshile Gorky (1904-1948), Last Painting (The Black Monk), 1948.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Comentário sobre o livro de Giorgio Agamben.

Ruptura das identidades. Profanação das gramáticas estáticas. Desabamento das instituições. Crítica material-negativa da representação (política). Com efeito, o objetivo deste texto é apresentar uma brevíssima leitura – uma centelha apenas, que acende, busca despertar e se apaga – filológica do ensaio A comunidade que vem de Giorgio Agamben, filósofo italiano de presença marcante no âmbito das ciências humanas contemporâneas (com trabalhos na área de literatura, direito, política, teologia, artes e também filologia).

Minha apropriação toma este ensaio de Agamben como documento ou como expressão cultural-civilizacional de uma possível comunidade de iguais – de uma comunidade de liberdade contingente, não representativa. De seres humanos na sua igualdade pura. Farei uma tentativa, em particular, de interpretar a noção que estrutura o documento agambeniano de uma comunidade política que vem: a noção de qualquer. Assim, e partindo para a parte substancial do texto, a construção do qualquer ou o qualquer é fundamental no vislumbre de uma comunidade (política) de iguais – que quer se expressar como existência igual e não como dispositivos formais, normativos e substantivos de iguais.

Com efeito, a estrutura filológica do qualquer é a possibilidade contingente de que o ser que vem tenha como condição política – a sua não-forma política (e institucional), mas o co-pertencer político. Ou seja, que a política da igualdade se forje no pertencimento a uma linguagem que se abandone, se lance, na vivência de mediações ausentes. O que Agamben quer nos chamar a atenção em A comunidade que vem é para a circunstância de que ao imaginarmos uma forma de vida em uma suposta sociedade de iguais – e livres – devemos pretender que esta seja não uma sociedade enquanto tal, mas uma comunidade na qual a linguagem adquira o sentido do ter-lugar na imanência absoluta.

Pensar uma comunidade de iguais é pensar a língua como a materialidade que se toca; é como se na comunidade que vem superássemos a linguagem como um dispositivo sagrado que está abstraído dos seres por regras e normas de diferenciação, em direção a uma linguagem do pertencimento. Diante ao qual o falar irrompa como língua como. (Está é uma exigência da geração política atual…) Deste modo, na comunidade que vem (de iguais…) o qualquer agambeniano é destituído de singularidades. A filologia dos iguais, e agora em cito Agamben: “é a coisa com todas as suas propriedades, nenhuma das quais [porém a] constitui” (2013, p. 27).

É que a noção do qualquer como linguagem de iguais expressa o politicidade dos sem classe – ou da propriedade nenhuma. Aqui a filologia política de Agamben age como documento presentificado do Manifesto… de Marx. Em que as identidades construídas pela diferenciação-capitalista tornam inviável o ser-comum-da linguagem. Mas os sem classe agambeniano é a língua comum da (eu cito Agamben) “nova humanidade planetária […] que comunica apenas a si mesma” (Idem, p.64). Como Fanon: Agamben quer salvar o homem – as mulheres, as negras, os negros, os gays, os trans. É a vida que deve surgir no desvio insubmisso-profano das representações sociais.

Para terminar essas breves reflexões: exponho a noção do qualquer como figura do fora e como a hipótese Bloom (referência que Agamben retira do Ulysses de James Joyce) pensando a ação política como filologia política, e neste ponto eu encerro a comunicação. A figura do fora é a não-representação da linguagem. Se a singularidade impõe às sociedades humanas e civilizadas uma fala de diferenciação, e consequentemente, de desigualdade, isto ocorre porque aqui o “ser” está transitando dentro dos dispositivos em geral, dos dispositivos da língua limitada pelo conceito determinado, na qual o pertencimento revela-se um confinar da linguagem. Significa, portanto, que o fora na filologia agambeniano é a exterioridade do ser-tal, é o lançar-se do ser no co-partilhar, no co-pertencer de uma língua comum da política.

Citando Agamben, novamente; “O fora não é um outro espaço que jaz para além de um espaço determinado […] [ele] é a passagem, a exterioridade que […] da acesso […] a experiência do […] mesmo” (Idem, p. 64) da política comum. O qualquer como figura do fora é o acesso à capacidade de exteriorização pura do ser – por oposição e resistência aos dispositivos normatizados que constituem a singularidade limitada. Abre-se assim, a hipótese Bloom como possibilidade proposta pelo documento escrito por Agamben como filologia política que estruture a ação política na atualidade. Quer dizer a necessidade de sermos Bloom, ou seja, sermos um homem estrangeiro a si mesmo e sem resistência da sua condição diante da língua singular da dominação estatal, mercadológica e da sociedade do espetáculo, para no mesmo passo tornemo-nos Blooms quaisquer e negarmos as singularidades identitárias dos dispositivos e alcancemos o ser-na-linguagem comum como política da igualdade.

Como se na Comunidade que vem pudéssemos dizer como Bloom no Ulysses (antes não podemos deixar de lembrar o poeta Augusto de Campos que enunciou o “Bolchevismo literário”, extinção do “fascismo” – o passo da negatividade para a comunidade contingente e livre) “ao caminhar por e através de nós mesmos, conseguíssemos dizer “Eu. Ele. Velho. Jovem […] o homem [a mulher-gay-negro-branca-indígena-negra-o não idêntico], […] a língua do amor” (2004, pp. 279, 352, 357).

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

Referência


Giorgio Agamben. A comunidade que vem. Belo Horizonte, Autêntica, 104 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Valerio Arcary Henri Acselrad José Machado Moita Neto Eugênio Trivinho João Feres Júnior José Micaelson Lacerda Morais Eleutério F. S. Prado Gilberto Maringoni Ronald Rocha Samuel Kilsztajn Bernardo Ricupero Alexandre Aragão de Albuquerque Sandra Bitencourt Dênis de Moraes Luiz Roberto Alves Airton Paschoa Luciano Nascimento José Costa Júnior Salem Nasser Paulo Fernandes Silveira Lincoln Secco Milton Pinheiro Slavoj Žižek Jean Marc Von Der Weid Alysson Leandro Mascaro Julian Rodrigues Michael Löwy Paulo Martins Dennis Oliveira José Geraldo Couto Atilio A. Boron Leonardo Boff Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Chico Alencar Bruno Machado Antônio Sales Rios Neto Osvaldo Coggiola Gabriel Cohn Tarso Genro Antonio Martins Daniel Costa Yuri Martins-Fontes Francisco Fernandes Ladeira Priscila Figueiredo Tales Ab'Sáber Berenice Bento Andrés del Río Érico Andrade Antonino Infranca Paulo Sérgio Pinheiro Manchetômetro Marcelo Módolo Daniel Brazil Renato Dagnino Fernando Nogueira da Costa Marcos Silva Fábio Konder Comparato Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Werneck Vianna Marjorie C. Marona André Singer André Márcio Neves Soares Ari Marcelo Solon Paulo Capel Narvai Liszt Vieira Marcus Ianoni Flávio R. Kothe Kátia Gerab Baggio Rodrigo de Faria Benicio Viero Schmidt Annateresa Fabris Celso Favaretto José Luís Fiori Igor Felippe Santos Gerson Almeida Ladislau Dowbor Luiz Marques Ricardo Abramovay Jean Pierre Chauvin Luís Fernando Vitagliano Juarez Guimarães João Adolfo Hansen Fernão Pessoa Ramos Lucas Fiaschetti Estevez Ronald León Núñez João Carlos Salles Boaventura de Sousa Santos Jorge Luiz Souto Maior Luiz Eduardo Soares Jorge Branco Eugênio Bucci José Dirceu Michael Roberts Plínio de Arruda Sampaio Jr. Mariarosaria Fabris Thomas Piketty Otaviano Helene Heraldo Campos Afrânio Catani Maria Rita Kehl Caio Bugiato Henry Burnett Eliziário Andrade Ricardo Antunes Sergio Amadeu da Silveira Claudio Katz Marilena Chauí Ronaldo Tadeu de Souza Leda Maria Paulani Francisco Pereira de Farias Luiz Bernardo Pericás Tadeu Valadares Alexandre de Freitas Barbosa Manuel Domingos Neto José Raimundo Trindade Marilia Pacheco Fiorillo Lorenzo Vitral Flávio Aguiar João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Sacramento Mário Maestri Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Afonso da Silva Chico Whitaker Luiz Renato Martins João Carlos Loebens Eleonora Albano Andrew Korybko Elias Jabbour Denilson Cordeiro Ricardo Fabbrini Anselm Jappe Remy José Fontana Michel Goulart da Silva Vanderlei Tenório Matheus Silveira de Souza João Paulo Ayub Fonseca Eduardo Borges Alexandre de Lima Castro Tranjan Carla Teixeira Rubens Pinto Lyra Luiz Carlos Bresser-Pereira Vladimir Safatle Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Vinício Carrilho Martinez Ricardo Musse Leonardo Avritzer João Lanari Bo Marcos Aurélio da Silva Marcelo Guimarães Lima Bruno Fabricio Alcebino da Silva Carlos Tautz Walnice Nogueira Galvão Gilberto Lopes Bento Prado Jr. Rafael R. Ioris Celso Frederico

NOVAS PUBLICAÇÕES