Por BERNARD LAHIRE*
É preciso dar mais um passo em direção a uma ciência social digna desse nome
“É interessante observar uma margem emaranhada, forrada com muitas plantas de todos os tipos, enquanto pássaros cantando nos matagais, vários insetos esvoaçam aqui e ali, e vermes rastejam pela terra úmida. E pensar que essas formas elaboradamente construídas, que são tão diferentes umas das outras e que dependem umas das outras de uma forma tão complexa, foram todas produzidos por leis que operam ao nosso redor. (Charles Darwin, A Origem das Espécies).[1].
Após mais de cento e cinquenta anos de existência, é evidente que as chamadas ciências “humanas” e “sociais”[2] lutam para ser ciências como todas as outras, o que dificulta a tarefa de impor a evidência de seus resultados e de suas principais realizações. Parte da responsabilidade por isso poderia ser atribuída ao (mau) tratamento político das ciências sociais ou ao caráter tardio e muito limitado de seu ensino, e não estaríamos errados. Mas o problema parte de dentro deste domínio de conhecimento.
Enquanto muitos cientistas sociais estão convencidos da necessidade de ser rigorosos na argumentação e na administração de evidências e de produzir um trabalho robusto e digno de interesse, são muito poucos aqueles que acreditam que as ciências sociais podem um dia se tornar ciências como as outras (ciências materiais e da vida em particular), capazes de produzir cumulatividade científica e de formular leis gerais sobre o funcionamento das sociedades. Pode o conhecimento sem fé (científica) ou leis ser realmente científico?
Além da fragilidade interna dessas ciências, vários fatores contribuem para tornar as mensagens que elas podem transmitir ainda mais confusas. As ciências sociais permitiram que uma divisão do trabalho mal controlada se desenvolvesse dentro delas, o que gerou uma infinidade de trabalhos dispersos disciplinar e subdisciplinarmente cujas contribuições dificilmente são cumulativas ou articuladas.[3] O sentimento de dispersão do trabalho por demasiada especialização também se ampliou sob o efeito da pluralidade teórica que muitas vezes impede, por competição entre “correntes” ou “escolas”, que se veja, mais uma vez, como as abordagens que nós muitas vezes opomos podem ser articuladas.
Do lado sociológico, por exemplo, continuamos a opor academicamente os “pontos de vista” de Durkheim, Marx e Weber; e perpetuamos as oposições entre estruturalismo e pragmatismo, estruturalismo genético ou construtivista e interacionismo, macrossociologia e microssociologia, objetivismo e subjetivismo, etc. Finalmente, para completar, o assunto dessas ciências — estruturas sociais, relações sociais ou comportamento social — tem despertado uma curiosidade crescente em disciplinas há muito percebidas como fora do campo em questão: biologia evolutiva, etologia ou ecologia comportamental, paleoantropologia, pré-história ou neurociência.
Diante desta situação de dispersão e baixa visibilidade, tanto interna como externa, das conquistas dessas ciências, um programa de trabalho coletivo e interdisciplinar é necessário para trazer à tona um quadro integrador e unificador para a ciência social. Tal orientação de pesquisa supõe um trabalho sistemático de apropriação crítica e síntese criativa de pesquisas resultantes de inúmeras disciplinas, dentro e fora do campo das ciências sociais, com todas contribuindo para o conhecimento das formas de sociedade e de comportamento.
A ambição dos fundadores
No próprio movimento de sua profissionalização ao longo do século XX, que foi inevitavelmente acompanhado por uma certa padronização-rotinização da pesquisa, as ciências sociais perderam gradativamente a ambição científica dos grandes fundadores que foram, dentre outros, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber.
Cada um procurou lançar luz sobre problemas fundamentais enfrentados pela humanidade ao longo de sua história – modo de produção, divisão do trabalho, dominação, formas de parentesco, relação com o sagrado, tipo de representação (mito, ideologia, ciência, etc.), etc. – e, portanto, não hesitou em deixar o presente para mergulhar numa história de muito longa duração, comparando sociedades muito diferentes (das sociedades de caçadores-coletores às sociedades capitalistas, da Europa e América do Norte à China e Índia, passando pela África, América do Sul e Austrália), e levantando questões de sociologia geral que atravessam todas as sociedades humanas conhecidas pela etnologia, história ou sociologia.
Para tomar apenas o caso de Karl Marx, este último podia ser apaixonado por A Origem das Espécies, de Charles Darwin – considerado por ele o livro que, “no campo da história natural”, forneceu a “base” de sua concepção materialista de história[4] –, e se apropriar, ao mesmo tempo, do trabalho de historiadores (François Guizot, Adolphe Thiers) e economistas (David Ricardo, Adam Smith) de sua época para empreender a análise do modo de produção capitalista. E não é por acaso que o “último Marx”, cada vez mais moldado por uma libido sciendi, mergulhou nas obras da história e da etnologia evolucionista de seu tempo: abandonando o projeto de escrita dos últimos volumes de O capital sobre a qual deveria trabalhar, Marx, durante os últimos oito anos de sua vida, deixou cerca de trinta mil páginas de notas em suas leituras, que indicavam a provável preparação de uma vasta história das sociedades humanas em vez do estudo cada vez mais aprofundado e delimitado do modo de produção capitalista.[5]
Alguns pensarão que esses são os vestígios de uma época passada que ficou para trás, mas estariam muito enganados. As grandes obras das ciências humanas e sociais sempre tocaram em questões fundamentais ou em pontos-chave relativos às propriedades da realidade social. Seus autores basearam-se em trabalhos de diversos setores do conhecimento e alguns dentre eles até sonharam com uma unificação de múltiplas disciplinas em uma única “ciência do homem” ou em uma grande “ciência social”.
O que estava presente em Marx, Durkheim e Weber foi continuado por autores como Norbert Elias ou Pierre Bourdieu. A obra impressionante e magistral, de erudição e clareza teórica, do antropólogo social Alain Testart, falecido em 2013, está aí para provar que podemos, ainda hoje, ao mesmo tempo pensar de forma ampla, profunda e rigorosa o conjunto das sociedades humanas documentadas. Impermeável às modas, o autor defendeu que se levasse em consideração, no quadro de uma sociologia comparada geral, todas as sociedades conhecidas pela etnologia, pré-história, arqueologia, história e sociologia.[6]
O social além das ciências sociais
Mas as ciências sociais consagradas (sociologia, antropologia e história em particular) não foram as únicas a se interessar pelas sociedades e pelo comportamento social humano. Temos a biologia evolutiva, que se interessa pelas características sociais das diferentes sociedades animais, pela origem da linguagem humana na continuidade dos sistemas de comunicação animal e pela emergência de processos de transmissão cultural paralelamente aos mecanismos de hereditariedade biológica; a etologia comparada, que permite apreender as semelhanças e diferenças entre as sociedades animais em termos de relações entre os sexos, cuidado parental, dominação, “gestão” de conflitos ou práticas de troca e ajuda mútua; a paleoantropologia e a pré-história, que buscam recompor o retrato das primeiras formas das sociedades humanas; e a psicologia e as neurociências, que trabalham com os comportamentos sociais. Todas essas disciplinas nunca pararam de produzir conhecimentos acerca da espécie humana enquanto espécie “ultra-social”.
Este novo ambiente científico no qual as ciências classicamente qualificadas como “sociais” estão evoluindo não é um simples ambiente externo que eles poderiam escolher ignorar. Ele nos força a redefinir objetos, revisar estruturas explicativas comumente aceitas e reformular as ambições dessas ciências. O trabalho dessas outras ciências contribui para revelar o que constitui a peculiaridade da espécie humana, no plano social, mental e comportamental. Reenquadrando as capacidades, comportamentos e formas de vida social específicas da humanidade em comparação com as de outras espécies animais,[7] ao evidenciar as particularidades sociais, biológicas ou psíquicas da espécie humana desde os primórdios da humanidade, todo esse conhecimento contribui para a compreensão dos fatos sociais em sua forma humana.
A lógica de especialidades e especialistas encerrados em seus territórios disciplinares e, mais frequentemente ainda, subdisciplinares, deve, portanto, ser contrabalançada pelo trabalho de cientistas ancorados em uma prática científica rigorosa, mas animados por um espírito de síntese indiferente às fronteiras disciplinares, às delimitações cronológicas e às divisões geográficas geralmente aceitas, e preocupados em responder às principais questões que se colocam às sociedades humanas.
É esta ambição que animou a criação, em 2020, da coleção Ciências Sociais da Vida pela editora La Découverte.[8] Com esta coleção, pretende-se criar o espaço para tal reequilíbrio das forças científicas e assim trabalhar para o advento de uma visão de humanidade alimentada pela cultura científica mais avançada do nosso tempo. Mas o projeto que permite às ciências sociais se reconectar com as grandes ambições dos fundadores depende mais geralmente de um trabalho coletivo em grande escala.
A necessidade de síntese
Para começar a enfrentar este desafio, um coletivo foi fundado em junho de 2020: o grupo “Edgar Theonick”.[9] A abordagem implementada é inspirada em um experimento conduzido por matemáticos franceses em torno do grupo “Nicolas Bourbaki”. Por trás do pseudônimo de Nicolas Bourbaki, um matemático imaginário, disfarçou-se um grupo de jovens matemáticos que, na década de 1930, perceberam que sua disciplina estava muito fragmentada em ramos e línguas separadas. Jean Dieudonné resumiu perfeitamente, embora de forma modesta, as intenções do grupo ao dizer: “Chegamos a um tempo em que é necessário ordenar a riqueza que se acumulou por mais de um século na matemática. (…) Limitamo-nos simplesmente a tentar ordenar os resultados e os princípios que foram estabelecidos, digamos de 1800 a 1930. É a isso que se dedica o grupo Bourbaki. (Apóstrofes, 12 de junho de 1987).
Embora haja uma diferença óbvia entre uma ciência de nível único (teórica) como a matemática e ciências de nível duplo (teórica e empírica) como as ciências sociais, a história das ciências de nível duplo, como a física ou biologia, mostra que essa dificuldade não é intransponível.
Até agora, as ciências sociais têm resistido às transformações da paisagem científica pelo confinamento disciplinar e pelo corporativismo[10], baseados em uma perspectiva epistemológica pura que consiste em pensar que as disciplinas, conforme existem em um determinado momento de sua história, devem desenvolver simultaneamente pontos de vista disciplinares totalmente autônomos e estanques. A história prova, entretanto, que a sociologia, a antropologia e a história continuaram a evoluir tanto em seus objetos como em seus métodos. Houve um tempo em que a sociologia goffmaniana podia ser vista como uma forma de psicologia social[11] e a observação etnográfica era considerada inadequada aos objetivos da sociologia. As coisas mudaram muito e isso deve ser elogiado.
O medo de ser esmagado por disciplinas institucionalmente mais poderosas também é uma realidade que seria ingênuo não levar em consideração. A história das ciências mostra que estas são hierárquicas e possuem poder acadêmico desigual: assim, por razões históricas, a física domina a química, as ciências da matéria dominam as ciências da vida, e todas as ciências da matéria e da vida dominam as ciências sociais (elas mesmas organizadas em uma forma muito hierárquica).
Mas ser dominado, por exemplo, pela biologia evolucionária não deve impedir os cientistas sociais de tomarem nota da evolução das espécies e das consequências que a evolução teve sobre o que constitui, de forma central, seus objetos: o comportamento humano e as formas propriamente humanas de vida social. As ciências sociais se beneficiariam se tirassem todas as conclusões de trabalhos sobre questões comportamentais, cognitivas e organizacionais da vida em sociedade, produzidos por disciplinas oriundas em parte das ciências da vida.
O luto pela filosofia social não deve implicar o abandono de qualquer programa científico geral e ambicioso. Enfrentar o desafio de tal ambição, entretanto, requer a proposição de respostas adaptadas ao atual estado de avanço da ciência. Para não cair na “teoria pura” (seja a dos teóricos das ciências sociais sem material empírico ou a dos filósofos sociais), devemos antes procurar realizar um trabalho de síntese criativa (trabalho unificador e integrador) baseado em uma obra que não seja exclusivamente especulativa, mas sim construída teoricamente e fundamentada empiricamente.
E para realizar tal trabalho de síntese, é necessário devolver sentido à produção de trabalhos qualificados, muitas vezes com desprezo, como “de segunda mão”, que acabaram caindo em desgraça diante dos ditos trabalhos de “primeira mão”[12]. O modelo ideal de produção de conhecimento defendido hoje nas ciências sociais é o modelo artesanal em que os pesquisadores se valem essencialmente de dados empíricos que eles próprios produziram. No entanto, esse fetichismo da pesquisa de campo realizada por um indivíduo isolado (no caso da maioria das teses de doutorado) ou por um pequeno grupo (no caso de uma parte minoritária da pesquisa) constitui um obstáculo ao trabalho de síntese, e ao mesmo tempo, para um verdadeiro avanço nas ciências sociais.
Embora exista uma virtude formativa em forçar novos participantes a aprender não apenas os meandros e dificuldades de produzir dados empíricos confiáveis, mas também a reflexividade crítica quanto à natureza desses dados, este modelo de ‘primeira mão’ pode rapidamente se tornar um freio formidável ao conhecimento. Porque se considerarmos o estado de nosso conhecimento mais significativo, devemos isso aos grandes sintetizadores que foram Marx, Weber, Durkheim, Mauss, Bloch, Elias, Dumézil, Lévi-Strauss, Bourdieu ou Testart, para citar apenas alguns “grandes nomes” nas ciências sociais. Se o próprio Marx tivesse que produzir todos os dados nos quais os diferentes volumes de seu O capital se baseiam, ele provavelmente não teria escrito um décimo do que escreveu. E o que dizer de um livro tão importante como As formas elementares de vida religiosa, cujo autor (Durkheim) nunca conheceu um aborígene australiano?
Quando se examina numa perspectiva sintética as mais diversas obras das ciências que trataram de questões de ordem social, surpreende-se com o fato de que a riqueza e a diversidade dos fatos empíricos estabelecidos e interpretados, incidindo sobre sociedades, eras ou grupos bastante diversos, muitas vezes escondem um número relativamente pequeno de questões abordadas. Existem processos ou mecanismos fundamentais, seja qual for o tipo de sociedade, que foram estudados e por vezes denominados de maneiras diferentes por diferentes especialistas que não se comunicam, o que não permite que se apresentem claramente como tais[13].
As ciências sociais deveriam fazer de tudo, coletivamente, para alcançar o que a biologia ou a física, por exemplo, conseguiram fazer com Charles Darwin e sua teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural ou, respectivamente, com Isaac Newton e sua teoria da gravitação universal, ou seja, a construção de quadros gerais, sintéticos, integradores e unificadores nos quais muitas obras científicas específicas se inscrevem, orientam e fazem sentido.
Esta visão das coisas supõe questionar (1) a organização coletiva da divisão do trabalho para tornar possível e mesmo necessária tanto a existência de trabalhos de síntese integrativa e unificadora quanto de “primeira mão” e (2) a epistemologia exageradamente relativista, nominalista ou construtivista da esmagadora maioria dos pesquisadores das ciências sociais, reabilitando as noções de cumulatividade científica e lei social.
Um trabalho de síntese teórico-empírica não só pode como deve ser realizado de forma a economizar tempo para as futuras gerações de pesquisadores e para fazer avançar o conhecimento científico do mundo social de forma global, de forma mais consciente e coerente. Esta busca por problemas gerais, fatos importantes, processos ou mecanismos que estão por trás de muitas análises específicas tem sido praticada muito conscientemente em outros setores do conhecimento científico por certos grandes matemáticos (Alexander Grothendieck e os matemáticos do “grupo Bourbaki” por exemplo), físicos (Newton, Maxwell, Einstein, Schrödinger, etc.) ou biólogos (Darwin). Isso também é o que muitos grandes cientistas sociais têm feito à sua maneira, embora muitas vezes de forma menos explícita e menos sistemática.
E mesmo que este não seja o objetivo inicial, tal avanço teria consequências educacionais significativas. Se é importante mostrar que por detrás da abundância de trabalhos nas ciências sociais estão escondidos um número limitado de leis (princípios, problemas, processos ou mecanismos fundamentais), é também porque isso facilitaria consideravelmente o ensino dos conhecimentos fundamentais dessas ciências. Porque ser capaz de ensinar pontos cruciais básicos, inclusive para crianças ou adolescentes, supõe que se faça um considerável trabalho de abstração e síntese a montante.
Uma revisão epistemológica
A tomada de consciência da existência de grandes problemas, de processos e mecanismos fundamentais que nunca param de funcionar na pesquisa em ciências sociais, leva a uma revisão da epistemologia relativista e nominalista amplamente aceita nas ciências sociais. Devemos colocar os conceitos de cumulatividade científica e lei (de invariantes, constantes ou regularidades) de volta no centro de nossas reflexões, mobilizando a obra de autores que vão de Émile Durkheim a Alain Testart, incluindo Pierre Bourdieu, Maurice Godelier e Françoise Héritier[14].
Ao contrário do que pode sugerir uma certa visão exclusivamente construtivista e profundamente relativista – que vê no trabalho científico apenas pontos de vista irreconciliáveis, mudando de acordo com os tempos e contextos científicos ou extracientíficos, que não podem realmente se comunicar entre si e, portanto, serem o sujeito de debate e articulação –, os problemas com os quais as ciências sociais lidam, e aos quais muitas gerações de estudiosos da história tentaram responder, são ao mesmo tempo muito reais e persistentes.
Quer consideremos a questão da diferenciação social das atividades ou funções, das relações de dominação, da socialização e dos processos de incorporação do mundo social, da transmissão cultural do conhecimento ou da produção de artefatos de todos os tipos, para citar apenas alguns exemplos, podemos dizer que a permanência de grandes questões nas mais diversas obras científicas não se deve a epistemes ou visões de mundo, mas sim à própria estrutura da realidade social.
Assim que concordam em enfrentar este fato, os pesquisadores necessariamente se deparam com um número limitado de problemas, porque estes últimos tocam em propriedades objetivas da realidade. Os pesquisadores podem, dependendo do estado de sua disciplina e de sua cultura científica pessoal, colocar esses problemas de maneira diferente, ou mesmo descobrir outros, mas seria um exagero dizer que eles os “inventam” ou “criam” todas as suas partes. E quando conseguem resolver alguns deles, ou quando conseguem integrar um conjunto de problemas em uma teoria coerente, alcançam o que pode ser chamado de progresso científico.
No entanto, parece-me particularmente importante reafirmar a possibilidade de progresso científico em uma época que acabou tornando essa palavra tabu. Porque deixar de “acreditar” no progresso da ciência, é inibir qualquer desejo de buscar na história das ciências sociais pontos de apoio que permitam identificar leis e avançar cientificamente com mais segurança.
Formular leis
As ciências sociais devem, portanto, assumir plenamente o uso do termo “lei” (ou o que pode ser formulado em outro lugar em termos de “invariantes”, “princípios”, “fundamentos” ou “constantes”), ao lidar com a difícil, mas não impossível, tarefa de formular leis ou mecanismos sociais importantes com base nos numerosos estudos realizados nas ciências sociais durante o último século e meio. Essa ambição, presente desde o início da disciplina (com Comte e Durkheim), foi amplamente abandonada depois disso[15].
Mas isso não significa, no entanto, que a obra acumulada desde o final do século XIX não esteja repleta de mecanismos gerais ou invariantes não ditos e não formulados, ou formulados de uma forma diferente da linguagem mais realista da lei. Nenhuma análise ou interpretação seria de fato possível se aqueles que as desenvolveram não tivessem em mente estruturas um tanto gerais e estáveis que lhes permitissem não apenas compreender tal e tal fato, em tal momento e em tal lugar, mas compreender tão bem outros fatos, em outras ocasiões e em outros lugares.
Um pesquisador do início do século XXI falará facilmente de conceito, teoria ou modelo, mas muito raramente de “leis” ou “mecanismos gerais”, dando ao mesmo tempo a impressão de que aquilo que se conquistou aqui sobre uma dada sociedade, período, grupo ou domínio de prática, não seria necessariamente verdadeiro em outro lugar. E que então se trataria, como no mito de Sísifo, de uma tarefa a ser perpetuamente recomeçada, com a análise sustentando-se mais no ponto de vista e na habilidade do pesquisador do que nas propriedades dos fatos estudados. Nas ciências onde a questão do determinismo ainda é regularmente debatida[16], a ideia de formular leis está longe de ser óbvia.
Se a física ou a biologia tivessem procedido desta forma, nunca teriam sido capazes de trazer à luz as grandes forças, os grandes princípios ou as grandes leis que regem a matéria e os seres vivos e, portanto, não teriam sido capazes de se constituir como verdadeiras ciências cumulativas, com os resultados que agora reconhecemos nelas. E seria um grave engano pensar que a operação foi mais simples para um Newton ou um Darwin do que para os sociólogos, antropólogos ou historiadores de hoje, devido à natureza de seu objeto. Um simples desvio pela história da ciência nos permite ver que as resistências ou as rejeições dessas abordagens nomotéticas unificadoras existiram em relação a objetos bem diferentes dos objetos sociais.
Os principais problemas recorrentes tratados pelas ciências sociais podem ser explicados pelo fato de que a própria realidade impõe um certo número de linhas de força que as teorias se esforçam, mais ou menos adequadamente, por formular. Mesmo que todos os pesquisadores das ciências sociais nem sempre saibam como expressar claramente os problemas subjacentes aos seus estudos – quantas teses são mais ricas em resultados do que dizem aqueles que as defendem! – podemos dizer que tais problemas sempre se manifestam, implícita ou explicitamente, nos estudos em questão.
No entanto, alguns autores têm sido mais imprudentes em desafiar as proibições anti-positivistas. Sem nunca ter desenvolvido essas questões em textos epistemológicos, um autor como Pierre Bourdieu usou algumas vezes o conceito de “lei[17]”. Da mesma forma, Françoise Héritier colocou no cerne de sua pesquisa o fato de “encontrar o geral sob o particular” e “de tentar encontrar as leis [18]”. E poderíamos também destacar a contribuição de Maurice Godelier sobre “os fundamentos da vida social [19]”, ou de Alain Testart que estava explicitamente em busca de leis [20].
O caso deste último autor, um antropólogo social cuja obra, no entanto, foi por ele colocada na linhagem da sociologia comparada geral, é particularmente interessante. Engenheiro de formação (egresso da École des Mines) antes de se tornar antropólogo, ele tinha conhecimentos suficientes das ciências dos materiais para saber que elas souberam organizar, no interior de seu campo, um polo teórico de síntese e um polo teórico-empírico de análise mais específica dos múltiplos fenômenos físicos observáveis.
Homem de grande erudição na linhagem de Marx, Morgan, Durkheim, Weber, Fustel de Coulanges e Marc Bloch, dominando uma massa considerável de dados teórico-empíricos “de segunda mão” e tendo ele mesmo mal praticado etnologia de campo (depois, porém, de uma investigação de campo realizada entre os aborígines da Austrália), ele defendia a ideia de que era necessário tomar como objeto o conjunto das sociedades documentadas pela pré-história, arqueologia, história, etnologia e sociologia para poder identificar as leis, e assim aceitar “uma divisão do trabalho que já existia há muito tempo em muitas outras disciplinas e onde tinha dado os seus frutos[21]”.
Aprender esta lição e, coletivamente, dar mais um passo em direção a uma ciência social digna desse nome seria um gesto de grande inspiração. Isso supõe um pouco mais de fé científica, um pouco mais de confiança na riqueza da obra acumulada internacionalmente por mais de um século e meio, e um pouco menos de brigas estéreis, meio científicas meio políticas, que nada mais fazem do que alimentar discursos tão odiosos e estúpidos sobre a natureza supostamente ideológica dessa ciência.
*Bernard Lahire é professor de sociologia na École Normale Supérieure de Lyon. Autor, entre outros livros, de Monde pluriel: Penser l’unité des sciences sociales (Seuil).
Referê
ncias
Publicado originalmente no site AOC.
Notas
[1] Agradeço Laure Flandrin e Francis Sanseigne pela leitura deste texto.
[2] Que irei denominar, de forma abreviada, como “ciências sociais” no decorrer deste texto, tendo plena consciência que por detrás de adjetivos qualificadores como “humanas” e “sociais” se escondem concepções bastante distintas da natureza e do objetivo das ciências em questão, e, às vezes, até mesmo uma hesitação quanto ao caráter realmente científico dos conhecimentos produzidos. Também não evocarei o fato de uma parcela dos economistas colocar, contra qualquer lógica, sua disciplina – que devemos distinguir – fora das ciências sociais.
[3] Cf. Bernard Lahire, Monde pluriel. Penser l’unité des sciences sociales, Paris, Seuil, Couleur des idées, 2012. Este processo de especialização que observamos em todos os domínios da ciência não é, entretanto, “gerido” ou “organizado” da mesma maneira em todos eles. Por exemplo, a física acolhe em seu campo tanto os físicos experimentais como os teóricos, estes últimos ficando responsáveis pela síntese e não estando liberados da exigência de produzir quadros teóricos congruentes com o conjunto de resultados empíricos disponíveis.
[4] Carta de Marx à Engels datada de 19 de dezembro de 1860.
[5] Cf. Lawrence Krader (ed.), The Ethnological notebooks of Karl Marx, Studies of Morgan, Phear, Maine, Lubbock, transcribed and edited, with an introduction by Lawrence Krader, Van Gorcum & Comp. B.V., Assen, 1974; Michael Krätke, « Le dernier Marx et le Capital», Actuel Marx, n° 37, 2005, p. 145–160 et Kolja Lindner, Le Dernier Marx, Toulouse, Éditions de l’Asymétrie, Réverbération, 2019.
[6] Cf. Cf. Alain Testart, « L’histoire globale peut-elle ignorer les Nambikwara ? Plaidoyer pour l’ethnohistoire », Le Débat, 2009/2, n° 154, p. 109–118, e principalmente o primeiro volume de sua última obra inédita: Principes de sociologie générale, Volume I — Rapports sociaux fondamentaux et formes de dépendance, Paris, CNRS Éditions, 2021.
[7] Mesmo enquanto eles parecem estar tratando apenas de animais não-humanos, os trabalhos de etologia comparam sem parar, implícita ou explícitamente, linguagens, apredizados, usos de artefatos, comportamentos e organizações sociais não-humanas e humanas. Eles, portanto, sempre nos oferecem muito mais acerca das propriedades das sociedades e dos comportamentos humanos que daquelas que dizem respeito aos animais não-humanos.
[8] Com o apoio entusiasmado de Stéphanie Chevrier (Diretora-geral-presidente da editora La Découverte) e de Bruno Auerbach (Diretor literário).
[9] Anagrama do nome de um célebre unificador. O grupo “Edgar Theonick” se reúne mensalmente desde junho de 2020.
[10] Um corporativismo que deixa o caminho livre para as empresas que se apresentam como mais abertas ao diálogo interdisciplinar (com as ciências cognitivas, principalmente) mas que são, na verdade, as mais destruidoras da lógica própria das ciências sociais.
[11] Yves Winkin, « Erving Goffman : portrait du sociologue en jeune homme ». In : Erving Goffman, Les Moments et leurs hommes, Paris, Seuil/Minuit, 1988, p. 87.
[12] Retomo, aqui, o desenvolvimento que consideri crucial acerca desta questão em « “Première main” et “seconde main” : les obstacles à la cumulativité scientifique » (La Part rêvée. L’interprétation sociologique des rêves. 2, Paris, La Découverte, Laboratoire des sciences sociales, 2021, p. 11–16).
[13] Trata-se do que procurei demonstrar em uma obra recente acerca do poder simbólico e da magia social. Cf. Ceci n’est pas qu’un tableau. Essai sur l’art, la domination, la magie et le sacré, Paris, La Découverte, Poche, 2020.
[14] Bernard Lahire, «Misère du relativisme et progrès dans les sciences sociales», La Pensée, n°. 408, 4o. trimestre de 2021, a ser publicado.
[15] Charles-Henri Cuin, «La démarche nomologique en sociologie (y a-t-il des lois sociologiques ?)», Swiss Journal of Sociology, 32 (1), 2006, p. 91–118.
[16] Bernard Lahire, «Chapitre 10: Déterminisme sociologique et liberté du sujet», In: Daniel Mercure et Marie-Pierre Bourdages-Sylvain (éd.), Société et subjectivité. Transformations contemporaines, Presses de l’Université Laval, Québec, 2021, p. 157–170.
[17] Em Questions de sociologie (Paris, Minuit, 1980, p. 45), o sociólogo fala em “lei” admitindo a seu interlocutor que seu uso pode ser “perigoso”, caso a veja “como um destino, uma fatalidade inscrita na natureza social”, isto é, mais como uma “lei eterna” do que como uma “lei histórica, que se perpetua pelo temo que a deixarmos operar”. Ele fala também, em seu curso inaugural no Collège de France, da “lei social … que estabelece que o capital cultural atrai capital cultural”. Pierre Bourdieu, Leçon sur la leçon, Paris, Minuit, 1982, p. 19–20.
[18] Françoise Héritier, «Une anthropologue dans la cité. Entretien», L’Autre, Cliniques, cultures et sociétés, 2008, vol. 9, n° ; 1, p. 12.
[19] Maurice Godelier, Fondamentaux de la vie sociale, Paris, CNRS éditions, Les grandes voies de la recherche, 2019.
[20] Pierre Le Roux, «L’inlassable chercheur de lois. Hommage à Alain Testart. (1945–2013)», Études rurales, 193, 2014, p. 9–12.
[21] http://www.alaintestart.com/biographie.htm