Marxismo e sociologia – Gramsci crítico de Bukhárin

Imagem: Francesco Ungaro
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Por CELSO FREDERICO*

O pensador italiano via a disseminação das ideias de Bukhárin como um perigo a ser combatido

Bukhárin foi um dos principais representantes da intelligentzia russa que aderiram à causa revolucionária. Um país relativamente atrasado convivia desde a segunda metade do século XIX com uma tradição de grandes intelectuais democratas (Tchernichevski, Dobroliubov, Herzen). Na sequência, o processo revolucionário revelou uma geração de dirigentes políticos formada por homens cultos. Assim, o prestígio do marxismo que até então se concentrava principalmente na Alemanha deslocou-se paulatinamente para a Rússia.

O Manual de Bukhárin (forma como a qual Gramsci se refere ao Tratado de materialismo histórico) foi escrito em 1921, momento, é bom lembrar, que alguns dos escritos de Marx e Engels não haviam ainda sido publicados e os seus discípulos procuravam “completar” o materialismo histórico com as mais díspares teorias. Se o austromarxismo havia incorporado Kant ao pensamento marxista, na Rússia as ideias do físico Mach eram retomadas por diversos intelectuais, como o dirigente partidário Bogdánov, alvo da crítica de Lênin em Materialismo e empirocriticismo.

Com o intuito de apresentar didaticamente a essência do pensamento de Marx e combater suas distorções, Bukhárin escreveu o seu Manual, dedicado aos “operários desejosos de se iniciarem nas teorias marxistas”. Nele, discorre sobre uma infinidade de temas nos quais contrastava a doutrina de Marx com as ciências sociais da época e, em especial, com a sociologia. Leitor culto e bem informado, demonstrou surpreendente conhecimento de autores como Alfred e Max Weber, Durkheim, Sombart, Simmel etc., contrapondo a todos eles o que entendia ser o materialismo histórico sem negar, contudo, a possibilidade de incorporar à doutrina de Marx conceitos por eles elaborados.

Diversos pensadores comprometidos com o processo revolucionário reconheciam o talento e a cultura de Bukhárin, mas não deixavam de assinalar a precariedade de seus conhecimentos sobre a dialética. Lênin, por exemplo, num texto lido por Gramsci e que ficou conhecido como o testamento do revolucionário russo, faz a seguinte apreciação: Bukhárin é um valioso e destacado teórico do partido, e, além disso, é considerado merecidamente como o preferido de todo o partido; “porém, suas concepções teóricas muito dificilmente podem qualificar-se de inteiramente marxistas, pois há nele algo escolástico (jamais estudou e creio que jamais compreendeu por completo a dialética” ) (LÊNIN, V. I). Trotski, por sua vez, criticou em 1928 as várias tentativas para atualizar o materialismo histórico que acabavam por descaracterizar a doutrina de Marx, inclusive a “escolástica” e o “sistema eclético” de Bukhárin, afirmando que ele “não tem a coragem de reconhecer abertamente sua intenção de criar uma nova teoria histórico-filosófica”, sob “a tinta do materialismo histórico” (TROTSKI).

A dialética, como se sabe, esteve longe dos teóricos da Segunda Internacional. O projeto de resgatá-la, entretanto, estava presente em diversos autores que, entusiasmados com a revolução de outubro, retornaram às questões filosóficas para criticar aquelas concepções reformistas, as quais, em nome da férrea necessidade, não concebiam a história como um processo de rupturas e sim de tranquila evolução. Karl Korsch, em 1923, escreveu Marxismo e filosofia recorrendo à dialética para entender o marxismo como expressão da unidade entre teoria e práxis, como autoconsciência do processo histórico. Em 1924, Lukács publicou História e consciência de classe, livro que muitos anos depois ele passou a considerar ultra-hegeliano por conta, entre outras coisas, de ter afirmado a iminência da unidade sujeito-objeto a ser realizada na consciência de classe do proletariado. Em Hegel, contudo, a conciliação ocorreria no longínquo momento da realização do Espírito absoluto.

Após a revolução de outubro, a discussão sobre a dialética ganhou força na Rússia revolucionária. A década de 20 assistiu a uma contenda opondo os “dialéticos”, tendo à frente Deborin, e os “mecanicistas”, representados por L. I. Akselrod. Deborin saiu vencedor do embate, mas nem por isso deixou de lançar uma dura crítica a História e consciência de classe, de Lukács. Sua fidelidade à ortodoxia, contudo, de nada lhe serviu: em 1931 foi acusado de ser um “ideólogo menchevique”. No mesmo ano, Stalin instituiu o diamat como doutrina oficial e, em 1938, publicou no quarto capítulo da História do Partido Comunista da URSS o famoso texto “Materialismo dialético e materialismo histórico”, pondo um ponto final na discussão.

Gramsci acompanhou o debate sobre a dialética na Rússia e, também, a revisão do hegelianismo proposta por Croce, autor com quem se identificara em seu período de formação.

A polêmica contra o Manual de Bukhárin enfeixa questões filosóficas derivadas das discussões sobre a dialética, mas cuja motivação principal tem, como sempre, um fundo político.

A crítica de Gramsci é contemporânea às suas preocupações em reconstruir o legado de Marx no início dos anos 30. A febril atividade desse período expressou-se nas reflexões sobre Maquiavel, na contínua retomada do conceito de hegemonia, na reflexão sobre guerra de movimento e guerra de posição etc. Nesse momento de esclarecimento e redefinição, incomodava a Gramsci a divulgação internacional das ideias de Bukhárin e a perspectiva de elas serem adotadas para o trabalho de formação dos militantes. Curiosamente, o próprio Gramsci havia recorrido ao Manual em 1925 em seus cursos, traduzindo capítulos daquele texto que então considerava “um tratado completo” sobre o materialismo histórico. O revolucionário russo, naquela época, gozava de um grande prestígio, tendo sido promovido ao cargo de secretário-geral da Internacional Comunista.

Os intérpretes de Gramsci não escondem certa perplexidade diante da virulência dos ataques ao revolucionário em desgraça que logo mais seria executado por Stalin em 1938. Essa mudança radical na avaliação nos Cadernos do cárcere deve ser situada no interior dos embates ocorridos no interior do Partido Comunista russo às voltas com os rumos a serem tomados pela revolução e seus reflexos entre os dirigentes do partido italiano na prisão de Turi onde Gramsci se encontrava. Em 1929, a Internacional realizou a desastrosa guinada à esquerda defendendo a tese segundo a qual a socialdemocracia e o fascismo eram “irmãos gêmeos” e derivando, a partir daí, a política de classe contra classe. Gramsci, assim, via suas concepções teóricas e práticas (guerra de posição, hegemonia) serem contrariadas. Isolado politicamente, passou a defender a política de frente única para a realização de etapas intermediárias e a necessidade de se lutar pela convocação de uma Constituinte. Tais propostas, por sua vez, levaram-no também a criticar a teoria da “revolução permanente” de Trotski. Gramsci, assim, voltava-se com redobrado afinco ao projeto de reconstrução do materialismo histórico.

A importância por ele concedida à hegemonia, consequentemente, via a disseminação das ideias de Bukhárin como um perigo a ser combatido. Horrorizava a Gramsci o entendimento do marxismo como prolongamento do senso-comum – o Manual, com esse pressuposto, pretendia educar os trabalhadores e aproximá-los do marxismo. Mas, tal concepção, para Gramsci, não substitui o verdadeiro trabalho de formação do progresso intelectual das massas para realizar a reforma cultural da humanidade. Aldo Zanardo observou a propósito: “Para Bukhárin, o marxismo se desenvolve em continuidade com o senso comum (…) vem a ser uma espécie de sistematização do senso comum. (…). No âmbito da teoria era necessário dispor de um conjunto de ideias, de fórmulas, relativamente ordenado, fácil, adaptado para a difusão; um instrumento simplificado, capaz de penetrar rapidamente nas grandes massas, de mobilizá-las, iluminá-las e conseguir que delas saíssem quadros. (…). Com uma colocação desse tipo permanece inabordado, contudo, o problema da formação dos quadros políticos e intelectuais superiores, o problema da educação ideológica permanente das massas populares, o problema da relação dos dirigentes com as massas, o problema da atividade e da passividade cultural e politica destas massas” (ZANARDO: 1989, p. 69). Transformar o marxismo numa sociologia positivista que apenas reproduz de forma pretensamente científica o senso comum, diz Gramsci utilizando uma expressão de Lênin para caracterizar a fase economicista do movimento operário, é permanecer na concepção econômico-corporativa. Trata-se, pois, de superar essa fase e passar para o momento político: a luta pela hegemonia. E aqui Gramsci enfatiza o papel dos intelectuais como “organizadores da hegemonia”, e a necessidade de um partido revolucionário para elevar o senso comum das massas.

Reconstruir o materialismo histórico, para Gramsci, significava conceber a obra de Marx como uma obra in progress e não como um sistema fechado e concluído que pudesse ser sintetizado num tratado, como pretendia Bukhárin e, antes dele, o Anti-Duhring de Engels e os trabalhos de Plekhanov. A sistematização, contudo, foi oficialmente efetivada por Stalin em 1938 em Materialismo dialético e materialismo histórico. Tempos depois, em 1969, ecos desse intento podem ser constatados no divulgadíssimo manual de Marta Harnecker, Os conceitos elementares do materialismo histórico, livro empenhado em difundir o legado de Marx pela lente althusseriana.

Gramsci, em direção oposta, via o marxismo como um produto da história e da cultura, ou melhor, de uma nova cultura em estado latente. “É possível escrever um livro elementar, um manual, um “ensaio popular” de uma doutrina que está ainda na fase da discussão, da polêmica, da elaboração?”. Gramsci lança a pergunta e responde em seguida afirmando que qualquer tentativa de manualizar o materialismo histórico está condenada ao fracasso e que o intento de Bukhárin resultou “numa mecânica justaposição de elementos desconexos” (Cadernos do cárcere 1, 142, doravante CC).

O Manual inicia-se falando da sociologia e de um tema caro à Gramsci: a previsão. A sociologia burguesa, segundo o Manual, não soubera prever a revolução russa. A sociologia, convém lembrar, nasceu como uma resposta aos desafios postos pela consolidação da ordem burguesa e da perplexidade diante dos desarranjos provocados na vida social (as “anomias” de que falava Durkheim) e do receio em relação ao imprevisível futuro. Paralelamente à formação das primeiras teorias sociológicas, as ciências naturais haviam conhecido um espantoso progresso e, paulatinamente, foram conhecendo e controlando os fenômenos naturais, enquanto os sociólogos olhavam com perplexidade para a desconhecida, e por isso incontrolável, sociedade burguesa. Daí a pretensão de se construir uma ciência social que, à semelhança das ciências naturais, pudesse conhecer e controlar os fenômenos sociais, prevendo seus desdobramentos e interferindo em seu curso. Essa mesma equiparação com as ciências naturais é compartilhada por Bukhárin, que a transferiu da sociologia para o marxismo, trazendo para o interior deste as concepções positivistas que orientavam a sociologia em suas origens, visando, com elas, combater o idealismo e os resquícios da teleologia hegeliana que estariam presentes em Marx.

O conceito básico por ele incorporado da sociologia é o de equilíbrio, conceito conveniente à cautelosa estratégia de construção do socialismo de uma liderança necessitada de uma “pausa para respirar”. Após o trauma das rupturas drásticas, convulsões violentas, “saltos” dialéticos, a sociedade tenderia, segundo Bukhárin, a um equilíbrio, algo análogo à adaptação na biologia. Nas palavras do biógrafo, Stephen Cohen: “A seu ver, a primeira tarefa dos bolcheviques era refazer o tecido social do país, dilacerado e dividido pela Revolução e pela guerra civil. Promover a integração social era sinônimo de “normalizar” a autoridade soviética e fazê-la aceita pelo maior número possível de setores da população (…) uma sociedade em guerra consigo mesma não pode ser produtiva nem próspera” (COHEN: 1990, p. 142). Evidentemente, essas ideias foram primeiramente contestadas pelos defensores da “revolução permanente” e, em 1929, com a queda de Bukhárin, pelo stalinismo que, em sua ampla campanha difamatória, associou o “direitismo” na política às concepções deterministas da sociologia burguesa.

Esse é o contexto em que Gramsci, influenciado por aquela campanha, desfechou o virulento ataque ao Manual. Incomodava-o, sobretudo, a mescla entre sociologia e marxismo, pois, assim, a filosofia da práxis deixaria de ser uma teoria original, para ser apenas “a “sociologia” do materialismo metafísico” (CC, 1, 120), um materialismo que “diviniza a matéria”. (Quaderni del carcere, I, 451, doravante Q).

A busca da previsão é tema caro aos dois revolucionários. Em Bukhárin, ela caminha junto com o determinismo que persegue as causas geradoras do desenvolvimento, mas estas sempre remetem a uma causa anterior sendo, assim, nas palavras de Gramsci, uma das manifestações da “busca de Deus”. Desse modo, a busca da causa das causas, a causa primeira, comprova a concepção metafísica de matéria: a crença numa causa primeva anterior à história dos homens que, num gesto inaugural, pôs o mundo em movimento e se recolheu à sombra das origens. Entregue ao movimento sucessivo de causas e efeitos, a história se efetivaria mecanicamente sem conhecer rupturas e descontinuidades: “a lei da causalidade substitui a dialética. (…) Se “idealismo” é ciência das categorias a priori do espírito, isto é, uma forma de abstração anti-historicista, este ensaio popular é idealismo ao contrário”. As categorias empíricas, isto é, a matéria, são igualmente apriorísticas e abstratas e, a partir delas, pesquisam-se mecanicamente “as leis de “regularidade, normalidade, uniformidade”, sem superação, pois o efeito não pode ser superior à causa” (Q, II, 1054).

Uma preocupação recorrente do Manual é, portanto, atribuir ao materialismo dialético a necessidade de pesquisar as leis que regem o desenvolvimento da sociedade. Diz Gramsci: “Já que “parece”, por uma estranha inversão de perspectivas, que as ciências naturais fornecem a capacidade de prever a evolução dos processos naturais, a metodologia histórica foi concebida como sendo “científica” apenas se, na medida em que, habilita abstratamente a “prever” o futuro da sociedade” (CC, 1, 121).

Mas, só se pode prever algo na história se “se aplica um esforço voluntário e, desta forma, contribui-se concretamente para o resultado “previsto””. A previsão, portanto, não é um ato do conhecimento, e sim um “ato prático”, uma expressão da vontade coletiva. (CC 1, 122).

A crítica teórica desdobra-se em política, pois o evolucionismo de cariz positivista desconhece esse elemento “perturbador” que intervém na história para subverter o desenvolvimento linear. Na dialética, a ruptura é expressa na passagem da quantidade à qualidade; na história, pela irrupção da práxis humana. Na edição brasileira dos Cadernos do cárcere, há uma importante informação sobre a tradução gramsciana de práxis: “Subversão da práxis [rovesciamento della práxis] é a fórmula como ficou conhecida na Itália, a partir de uma não muito feliz tradução de Gentile, a expressão “unwälzende Práxis”, presente na versão engelsiana da III Tese de Marx sobre Feuerbach, que seria melhor traduzida por como “práxis subversora”. (No original de Marx está simplesmente “revolutiönare Práxis, ou “práxis revolucionária”.). Ao traduzir esse texto, Gramsci segue Gentile e usa também “rovesciamento dela práxis” (CC, 1, 461). Rodolfo Mondolfo fez, a proposito, o seguinte esclarecimento: “Mas à tradução “práxis que se subverte” [umwalzend Práxis] se tem objetado que seria mais fiel traduzir-se: “práxis que subverte” ou práxis subversiva revolucionária. A diferença entre ambas é evidente. Em uma se atribui à atividade humana a tarefa de subverter-se e transformar-se a si mesma; na outra, às condições exteriores objetivas. O certo é que a segunda expressão traduz melhor, porém não se lhe dá exatamente o conceito” (MONDOLFO:1967, p. 13) .

“Práxis que se subverte” ou “práxis subversora” aponta para o cerne da crítica do jovem Marx a Feuerbach que, em seu materialismo passivo, concebia apenas os seres individuais e o pensamento. Embora ainda não tivesse elaborado a categoria modo de produção, Marx já pressupunha a existência de uma totalidade social dinâmica formada por um conjunto de seres que se agrupam não pela ação da consciência, como queria Feuerbach, mas graças a uma mediação material, o trabalho. A práxis, portanto, é compreendida como mediação dialética: subverte os opostos e se subverte a si própria em sua incessante atividade.

O mesmo espírito norteia o pensamento de Gramsci ao criticar Bukhárin por desconhecer a dialética e menosprezar, com seu cientificismo positivista, o papel perturbador da vontade – que não deve ser confundido com voluntarismo caprichoso ou dever-ser abstrato movido pelo imperativo ético. Ela, contrariamente, orienta-se pelas “condições objetivas postas pela realidade histórica” – ela pressupõe, portanto, um núcleo “racional” e “concreto”. Ou como diz Gramsci: “a vontade como consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo”. (CC, 3, 17).

Como se pode ver, o foco de Gramsci procura ligar não só os indivíduos entre si como também os indivíduos com a “necessidade histórica de um drama real e efetivo”. Há um claro movimento de transcendência: ir além do momento presente, recusando os grilhões da férrea necessidade e, também, cobrando o desejo de universalização, de superação da mera individualidade, pois nesta ficamos restritos à “vontade de todos”, isto é, à somatória dos interesses privados. Na “vontade coletiva nacional-popular” há, contrariamente, uma superação da esfera privada, dos interesses econômico-corporativos, fazendo nascer uma consciência ético-política. Os indivíduos, então, manifestam plenamente a sua sociabilidade: são “indivíduos sociais”.

Gramsci retoma esse movimento de universalização quando escreve sobre “o homem-indivíduo e o homem-massa”. Uma multidão de indivíduos, diz ele, “dominada pelos interesses imediatos ou tomada pela paixão suscitada pelas impressões momentâneas […] unifica-se na decisão coletiva pior…”; nessas multidões, “o individualismo não só não é superado, mas é exasperado…”. Numa situação de assembleia, contrariamente, “os elementos desordeiros e indisciplinados” são unificados “em torno de decisões superiores à média individual: a quantidade transforma-se em qualidade”.

No passado, diz Gramsci, o homem-coletivo existiu sob a forma da liderança carismática. Através desta realizava-se “uma vontade coletiva sob o impulso e a sugestão imediata de um “herói”, de um homem representativo; mas essa vontade coletiva era devida a fatores extrínsecos, compondo-se e decompondo-se continuamente. O homem coletivo de hoje, ao contrário, forma-se essencialmente de baixo para cima, à base da posição ocupada pela coletividade no mundo da produção – “Qual é o ponto de referência para o novo mundo em gestação? O mundo da produção, o trabalho” (CC, 3, 263).

Além de esclarecer a orientação geral do marxismo, Gramsci critica também o positivismo e as chamadas leis sociológicas que “não passam de uma duplicação do próprio fato observado” (CC 1, 151), e esta resignação da teoria perante a realidade impossibilita a crítica do real. Tempos depois, a mesma ideia reaparecerá em Adorno em sua polêmica com a sociologia empírica norte-americana. Mas o que move Adorno é a crítica da identidade entre sujeito e objeto e a convicção de que o pensamento deve preservar sua irredutível distância perante o objeto – o mundo alienado. Gramsci, contrariamente, defende a unidade entre teoria e prática e quer que o pensamento se realize no contato com a realidade, que se efetive na transformação revolucionária do mundo.

A dialética, diferentemente do positivismo, fala em tendências e não em leis petrificadas. Por isso, a ação política, explorando as contradições sociais, “destrói as leis dos grandes números” (CC 1, 147-8). O culto aos números e a consequente substituição da teoria pela estatística, irá nortear a sociologia empírica a partir dos anos 40, especialmente nos Estados Unidos, como bem retratou por Wright Mills, em A imaginação sociológica. Uma verdadeira indústria de pesquisas unindo a Universidade com as grandes corporações consolidou o que Adorno batizou de “pesquisa administrativa”, voltada a conhecer e a manipular opiniões – seja para induzir ao consumo, seja para orientar o voto. A investigação sociológica, assim conduzida, produziu uma enxurrada de pesquisas comportamentais utilizando a técnica dos surveys: a coleta de amostras aleatórias de uma população, a partir de uma determinada porcentagem de indivíduos sorteados aleatoriamente e entrevistados individualmente, seria representativa do conjunto daquela população. Gramsci, atento aos desdobramentos do positivismo, antecipou a crítica aos fundamentos teóricos subjacentes às futuras pesquisas de opinião: “A lei dos “grandes números” pode ser aplicada à história e à política somente enquanto as grandes massas permanecerem passivas (…) ou se supõe que permaneçam passivas (…). A ação política tende precisamente a fazer sair as grandes multidões da passividade, isto é, a destruir a “lei” dos grandes números”. (Q, II, 856-7)

A submissão ao caráter inexorável das leis pressupõe a passividade na esfera política, pois leva ao conformismo, ao fatalismo e à derrota. Soma-se a isso a crença no progresso, na evolução natural e por etapas do processo histórico. Gramsci contrapõe a essa noção positivista do progresso a noção dialética de devir: “o progresso é uma ideologia, o devir é um concepção histórica”. Inicialmente, a ideologia do progresso exerceu um papel democrático e progressista, incentivando os homens a controlar a natureza, libertando-os, assim, do domínio das forças naturais que deixa de ser visto como fatalidade. No plano político, a ideologia do progresso serviu de referência para a formação dos modernos Estados constitucionais. Hoje, diz Gramsci, ela perdeu esse aspecto progressista, tornando-se uma ideologia resignada. O devir, contrariamente, rompe com o evolucionismo mecânico ao introduzir na história a negatividade, a ruptura e os saltos produzidos pela “perturbadora” vontade humana (CC, 1, pp. 403-5).

A raiz dos equívocos de Bukhárin, afirma Gramsci, advém de seu desconhecimento da dialética responsável, entre outras coisas, pela divisão da filosofia da práxis em duas disciplinas: de um lado, uma sociologia evolucionista (materialismo histórico), de outro, uma filosofia transformada num sistema fechado, pronto e acabado (o materialismo dialético). Assim fazendo, cria-se um corpo lógico (a dialética e suas leis) exterior ao processo histórico. A divisão do marxismo em duas disciplinas, contudo, acabaria sancionada por Stalin e reproduzida pelos manuais de “marxismo-leninismo” que passaram a orientar em todo mundo a formação dos militantes comunistas.

Na contracorrente, Gramsci observou que na expressão “materialismo histórico” “deu-se maior peso ao primeiro membro, quando deveria ter sido dado ao segundo: Marx é essencialmente um “historicista””. (CC, 6, 359). Quanto ao materialismo, Gramsci lembra que em Marx essa palavra tinha uma conotação negativa quando empregada para criticar os filósofos materialistas do século XVII e que ele preferia falar em “dialética racional” em oposição à “especulativa” e não em dialética materialista.

Gramsci, assim, considerava um erro a divisão do marxismo em duas disciplinas, pois tal procedimento faz da filosofia (materialismo dialético), um corpo exterior ao processo histórico concebido como extensão das ciências naturais e erigido em método aplicável a qualquer realidade, como se quisesse “colocar toda a história no bolso”. Para Gramsci não existe um método em geral pois, como quer a ontologia marxiana, “o método desenvolveu-se e foi elaborado conjuntamente ao desenvolvimento e à elaboração daquela determinada investigação e ciência, formando com ela um todo único. Acreditar que se pode fazer progredir uma investigação científica aplicando-lhe um método tipo, escolhido porque deu bons resultados em outra investigação ao qual estava relacionado, é um equívoco estranho que nada tem em comum com a ciência” (CC 1, 122-3).

Em outra passagem, nos chamados “cadernos miscelâneos”, Gramsci retorna ao tema fazendo uma vigorosa inflexão ontológica ao enfatizar que o método não constrói o objeto. Ele, ao contrário, está subordinado ao objeto, reconhecendo sua prioridade ontológica: “não existe um método por excelência, “um método em si”. Toda pesquisa científica cria para si um método próprio, uma lógica própria, cuja generalidade e universalidade consiste apenas em ser “conforme ao fim”” (CC 1, 324-5).

Materialismo vulgar, positivismo, fetichismo do método, evolucionismo – todas essas características do pensamento de Bukhárin confluem num determinismo que desconsidera o papel perturbador da ação dos homens na história. Isso transparece na visão mecânica e desistorizada das relações entre infraestrutura e superestrutura, bem como do entendimento dessas duas esferas. Para Bukhárin as forças produtivas se reduzem à técnica e esta é erigida em princípio, em causa primeira e única conduzindo tanto o desenvolvimento da ciência como o de toda a sociedade. Nas páginas do Manual podem ser lidas diversas passagens nesse sentido: “chegamos à conclusão de que sempre as combinações de instrumentos de trabalho e a técnica social determinam as combinações e as relações dos homens, isto é, a economia social”. Ou então: “Em geral, o desenvolvimento das “superestruturas” é função da técnica social” (BUKHÁRIN: 1968, pp. 158 e 219).

Considerar a técnica como “determinante básica” é uma tese estranha ao marxismo que alimentou a crítica de Gramsci e, antes dele, a de Lukács num artigo respeitoso sobre Bukhárin dedicado a assinalar seus pontos fracos: a pretendida autonomização da técnica, sua centralidade no interior da estrutura econômica, a pretensão de prever o curso histórico.

A crítica diplomática de Lukács parece sugerir que Bukhárin corrija seus equívocos; Gramsci, ao contrário, afirma ser necessário destruir aquele conceito de ciência recolhido das ciências naturais e afastar do marxismo a visão determinista que vê o desenvolvimento social governado pela metamorfose do instrumento técnico. Sobre este último ponto, Gramsci observou que a filosofia da práxis estuda uma máquina não para conhecer suas estruturas e propriedades, mas “enquanto é momento das forças materiais de produção, enquanto é objeto de propriedade de determinadas forças sociais, enquanto expressa uma relação social e esta corresponde a um determinado período histórico”. (CC, 1, 161).

Mais do que apontar falhas, o empenho de Gramsci vai concentrar-se na necessidade de reconstruir o materialismo histórico segundo sua própria visão. Talvez por isso, ele não tenha se preocupado em assinalar as hesitações e confusões teóricas presentes no Manual, que muitas vezes, levaram o autor a contradizer suas próprias teses.

A desmedida ambição enciclopédica de Bukhárin teve como resultado final uma narrativa esparramada que tudo quer explicar, mas, em meio a tantas digressões, fez involuntariamente correções de ideias antes afirmadas de modo inequívoco.

Assim, após afirmações conclusivas, Bukhárin fez questão de ressaltar “a questão da “influência de retorno” das superestruturas sobre a base econômica e sobre as forças produtivas da sociedade”, bem como o seu “papel de regulador” do conjunto da vida social, pois sem elas “a sociedade deixará de existir e cairá em decomposição”. E aqui não se trata de uma questão meramente teórica: o dirigente bolchevista estava, em sua prática diária, utilizando o aparelho estatal para interferir na base material e, assim, viabilizar a transição ao socialismo.

Igualmente importante é a afirmação da materialidade das superestruturas, já que elas incluem “homens e coisas”. Reforçando essa afirmação, Bukhárin acrescentou: “Vimos que a imensa “superestrutura” disposta acima da base econômica da sociedade é ela mesma bastante complexa na sua “estrutura” interior. Ela contém objetos materiais (utensílios, instrumentos, etc.)”. Por isso, sua organização interna está organizada nos moldes do trabalho material: “Na sociedade capitalista, por exemplo, um grande laboratório técnico está interiormente organizado como uma empresa industrial. A organização de um teatro, com o proprietário, o diretor, os artistas, os figurantes, os técnicos, os empregados, os operários, lembra igualmente a de uma fábrica”. Outro exemplo citado é o da religião, provavelmente inspirado na leitura de As formas elementares da vida religiosa de Durkheim: “A religião é uma superestrutura que não consiste somente num sistema de ideias concordantes; ela tem também uma organização apropriada de homens (organização eclesiástica, segundo a expressão corrente), assim como um sistema de regras e de maneiras de adoração da divindade” (BUKHÁRIN: 1968, pp. 269, 267, 254, 243, 256, 202).

A materialidade das estruturas, que deixam de serem concebidas como meros reflexos etéreos, desencarnados, é uma ideia que será retomada, desenvolvida e refinada por Gramsci e, a partir dele, influenciou as obras de Raymond Williams sobre a organização da cultura e de Althusser sobre os aparelhos ideológicos do Estado. Um dos primeiros intérpretes a chamar atenção sobre esse ponto foi Christinne Buci-Gluckmann, discípula de Althusser, num livro denso sobre o pensador sardo no qual, num tour de force, procurou compatibilizar os dois autores. Segundo essa autora, Bukhárin efetuou “uma verdadeira revalorização das superestruturas” BUCI-GLUKMANN: 1980, 322).

Gramsci reconhece en passant sua dívida chegando a perguntar-se diante das observações de Bukhárin: “as bibliotecas são estrutura ou superestrutura? E os laboratórios experimentais dos cientistas? E os instrumentos musicais de uma orquestra? (…). Na realidade, certas formas de instrumento técnico têm uma dupla fenomenologia: são estrutura e superestrutura: a própria indústria tipográfica (…) participa dessa dupla natureza. Ela é objeto de propriedade, portanto de divisão de classes e de luta, mas é também elemento inseparável de um fato ideológico ou de vários fatos ideológicos: a ciência, a literatura, a religião, a política, etc. (CC 6, 359). Voltando ao tema, porém, Gramsci refreou seu entusiasmo considerando que “esse modo de colocar a questão torna as coisas inutilmente complicadas”, sendo apenas “um modo barroco de pensar” (CC. 1, 159). De qualquer modo, as considerações sobre a materialidade das superestruturas, tal como afirmada por Bukhárin, foram traduzidas e incorporadas ao pensamento gramsciano.

A questão estava lançada e Gramsci, em suas análises minuciosas, esteve atento aos diversos níveis presentes nas esferas superestruturais, vendo nelas não somente a ação de retorno e a sua materialidade, mas, principalmente, o campo de batalha em que se trava a luta pela hegemonia. Mas, para isso, foi preciso superar inicialmente a concepção determinista das relações sociais, pois estas estão articuladas no mecânico antagonismo entre forças produtivas e relações de produção, concebido de modo a-histórico. Em Bukhárin, a sociedade era vista de modo mecânico, como se fosse um sistema (concepção que mais tarde orientará a sociologia funcionalista). O historicismo de Gramsci antecipa, assim, a crítica a essas tentativas de esvaziar a historicidade da vida social, bem como antecipa a crítica da ontologização da estrutura, tal como ocorrerá no estruturalismo clássico (Saussure), que a identifica com a linguagem, ou com a cultura e suas invariantes trocas (a “antropologia estrutural” de L. Strauss), ou com o inconsciente (Lacan), ou como Althusser, em sua concepção de ideologia como um fenômeno a-histórico que tudo contamina. O papel ativo e contraditório da superestrutura como local de disputa pela interpretação da realidade indica que no léxico gramsciano não há lugar para expressões uniformizadoras como “indústria cultural”, “dominante cultural”, “habitus”, etc.

Contra a rigidez das estruturas, Gramsci invoca sempre o “elemento perturbador”, a vontade. Na recorrente referência ao Prefácio de 1857 da Contribuição à crítica da economia política, Gramsci insiste em afirmar que a aparente solidez do modo de produção contém em seu interior a esfera ideológica – aquela onde os homens tomam consciência dos conflitos sociais e podem agir para resolvê-los: “a estrutura, de força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política” (CC, 1, 314).

Gramsci usa a palavra catarse, retirada e traduzida da estética de Aristóteles para, com ela, nomear esse momento de suspensão em que se dá a passagem do objetivo ao subjetivo, da necessidade à liberdade, do econômico-corporativo ao ético-político.

*Celso Frederico é professor aposentado e sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Sociologia da cultura: Lucien Goldmann e os debates do século XX (Cortez).

Referências


AUSILIO, Manuela. “La volontà coletiva nazionale-popolare: Rousseau, Hegel e Gramsci a confronto”, in Critica marxista, número 6, 2007.

BUCI-GLUCKSMANN,Christinne. Gramsci e o Estado (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980).

BUKHÁRIN, Tratado de materialismo histórico (Lisboa-Porto-Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s/d).

COUTINHO, Carlos Nelson. “Vontade geral e democracia em Rousseau, Hegel e Gramsci” in Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (São Paulo: Cortez, 1994).

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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002, 6 volumes).

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