Mentalidade escravocrata

Imagem: Fabio Perroni
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VANESSA MONTEIRO*

Caso de Nilton Ramon, motoboy baleado por não subir ao apartamento do cliente, expressa ódio racial e não só conflito trabalhista

Nilton Ramon de Oliveira, de 24 anos, foi baleado na última segunda-feira (5\03\2024) na zona oeste do Rio de Janeiro após se recusar a subir para entregar um pedido no apartamento do cliente, um policial militar. O caso estarrecedor foi só o extremo de uma situação que é comum aos entregadores de aplicativo. A recusa a subir é um dos principais pontos de confronto entre entregadores e clientes que, longe de ser uma mera coincidência, é expressão da mentalidade escravocrata que acomete uma categoria majoritariamente negra.

Afinal, não se espera a mesma postura subserviente por parte de outras categorias, como os trabalhadores dos Correios, por exemplo, contra os quais não se levantam odiosamente aqueles que esperam sua carta em mãos quando deixada na portaria de um prédio.

As empresas-aplicativo não podem ser desresponsabilizadas pela ocorrência desse tipo de conflito. Conforme aponta Liberato (2022), os aplicativos de entrega não são meros mediadores entre cliente, restaurante e entregadores, como propagam, mas “colocam em confronto clientes e entregadores, devido à forma como gerem e punem essa força de trabalho” (LIBERATO, 2022).

Um dos motivos centrais para a recusa do entregador em subir, portanto, tem a ver com a remuneração do aplicativo por peça e a pressão temporal exercida sobre eles; como dizem, “tempo é dinheiro”. Neste sentido, o tempo gasto em uma locomoção evitável por parte do entregador significa não só tempo em que poderia aceitar outros pedidos, como leva com que o aplicativo compute a entrega feita em maior tempo, o que pode acarretar mais mecanismos de punição.

Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) não há lei que verse sobre a obrigatoriedade ou não de o entregador ir até a porta dos clientes no ato da entrega. Entre os aplicativos de delivery não há consenso sobre o procedimento. O iFood, já em 2021, alegava que “não faz nenhuma exigência ao entregador para fazer a entrega diretamente no apartamento do cliente”, assim como se manifestou agora no caso que vitimou Nilton Ramon de Oliveira.

A falta de orientação explícita das empresas-aplicativo quanto às normas de regulamentação trabalhista corroboram para o conflito entregador-cliente, fomentando, ao invés da solidariedade entre trabalhadores, a fragmentação e a hierarquização. As plataformas deveriam orientar, dado que este não é um problema novo ou incomum, que os clientes que moram em apartamento desçam para retirar seus pedidos e, no caso de clientes com mobilidade reduzida, pagar um adicional ao entregador por subir para realizar a entrega.

A recusa por parte do entregador em subir deve ser vista além da pressão temporal imposta pela dinâmica do trabalho plataformizado. Assim como a expectativa dos clientes de que subam, ainda mais quando manifestada através do ódio, da raiva – e da bala – não pode ser naturalizada. Por parte do entregador, há muita justeza na rejeição em se subordinar a uma relação “patrão-empregado” que não existe, afinal o entregador não só não será remunerado por esse deslocamento como poderá ser posteriormente punido caso não cumpra o tempo de sua entrega.

Já por parte da fúria desse tipo de cliente há uma nítida cultura serviçal tão arraigada no país do “quartinho de empregada”, coisa que só uma abolição tardia somada à perpetuação de uma estrutura de classes racializada e segregada pode explicar. Não à toa, esse caso extremo ocorre no Rio de Janeiro, cidade profundamente marcada pela desigualdade racial. Lembremos do caso do entregador Max que foi chicoteado em São Conrado em plena luz do dia.

Os casos de desrespeito, maus tratos e violência explícita contra entregadores de aplicativo têm escalado e vindo cada vez mais à tona. Apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano quase 13 mil ameaças e agressões aos entregadores de aplicativo foram registradas pelo iFood. No estado do Rio de Janeiro, a plataforma registrou quatro mil casos de ameaças e agressões aos entregadores de janeiro a março deste ano. De acordo com a Central de Apoio Psicológico e Jurídico do iFood, 32% dos registros foram por ameaça e 25% por agressão física, sendo que a maioria está localizada na região mais elitizada, a zona sul da capital, com 42% dos acionamentos.

Recentemente, o entregador Éverton foi preso em Porto Alegre após ter sido vítima de esfaqueamento por parte de um homem branco, caso que gerou enorme comoção. Porém, assim como naquele caso olhamos para a disparidade racial (o branco agressor inocentado, enquanto a vítima negra foi alvo da perseguição do Estado) e invisibilizamos a questão do trabalho (o fato de a vítima, no caso, ser um entregador), não podemos agora novamente dissociar raça e classe e tratar do caso de Nilton Ramon como uma questão laboral, inviabilizando o fato de a vítima ser um jovem negro.

Os entregadores de aplicativo são expressão máxima das imbricações entre raça e classe no capitalismo de plataformas. Precisamos superar a barreira analítica que dissocia as reivindicações econômicas daquelas por reparação, reconhecimento e justiça racial, porque, ao fim e ao cabo, a precarização, a invisibilidade e a desunamização estão todos sob a égide da mesma sociedade neoliberal.

*Vanessa Monteiro é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES