Por RICHARD SEYMOUR*
As crises reais estão proliferando, mas o nacionalismo de desastre está se nutrindo de crises inteiramente fictícias
“É muito fácil ser antifascista no nível molar sem nem mesmo ver o fascista que existe dentro de você mesmo, o fascista que você mesmo sustenta, nutre e estima com moléculas tanto pessoais quanto coletivas”
(Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs).
1.
O fascismo, como Robert O. Paxton escreve em sua convincente história,[i] torna-se uma força histórica quando enfrenta “uma sensação de crise avassaladora além do alcance de quaisquer soluções tradicionais”. O livro, que aqui chega ao fim,[ii] aponta para num paradoxo: as crises reais estão proliferando, mas o nacionalismo de desastre está se nutrindo de crises inteiramente fictícias.
E, na medida em que se apresenta como uma solução, encontra-se também palpavelmente ansiando por um auge de limpeza e destruição mundial: ora, ele quer produzir tudo isso. Essa ficção de desastre, como foi sugerido ao longo do livro, provém de um trabalho onírico que está sendo encenado nas crises reais da presente época; ele conduz o fluxo molecular de misérias econômicas, emocionais e eróticas para uma onda crescente de violência vingativa.
Não se trata ainda de fascismo, ou melhor, trata-se de fascismo em potência. O nacionalismo de desastre certamente se constrói por meio de fantasias que visam implantar ditaduras militares contra a esquerda: QAnon e os ativistas do “Stop the Steal” pedem um governo militar em que Donald Trump se torna presidente vitalício; os manifestantes brasileiros imploram aos militares para “salvar” o Brasil do comunismo.
Ele se exalta fazendo referências abusivas ao fascismo histórico, tal como ocorreu quando o secretário de cultura brasileiro, Roberto Alvim, fez um discurso sobre política cultural que quase imitou precisamente as falas de um discurso de Goebbels, publicado em uma biografia recente, ou quando Sarah Palin fez uma referência provocativa às “quatorze palavras” usadas por nacionalistas brancos.
Ademais, ele lançou uma série de “insurreições” desajeitadas, pouco entusiasmadas e mesmo ineptas, as quais podem ser vistas como ensaios gerais para o grande dia que ainda está no futuro. Enquanto ideologia, afigura-se muitas vezes como o “ultranacionalismo palingenético”, que Roger Griffin descreve como o núcleo ideacional do fascismo.[iii] No entanto, o fascismo é mais do que mera ideologia: configura-se, tal como mostram Andreas Malm e o Zetkin Collective,[iv] como uma “força histórica real”. Uma força que leva ao suicídio civilizacional e que só se revela por completo quando chega ao poder.
2.
As crises que agora afligem, tanto no nível molecular das relações sociais quanto no nível molar da disfunção capitalista, da paralisia parlamentar e das derrotas cumulativas do sindicalismo e da esquerda, ainda não atingiram aquele cume que, no passado, alçou o fascismo ao poder absoluto. Ademais, a nova extrema direita ainda não atingiu o grau de clareza ideológica e auto-organização que a tornaria capaz de derrubar as democracias parlamentares.
No entanto, em todas as crises mencionadas, está operando um catalisador, um multiplicador de força que vem sacudindo de forma enérgica os fundamentos da civilização contemporânea: a crise climática. Ora, os eventos ocorridos estão potencializando já os vetores de contágio do nacionalismo de desastre; ademais, eles mostram bem que explosões maiores estão no caminho de acontecer.
Eis um exemplo: em 2021, em uma vila na margem do rio Brahmaputra, no estado indiano de Assam, um assassinato foi registrado num vídeo. O governo estava despejando muçulmanos bengalis de suas casas, 5.000 das quais foram destruídas, para dar abrigo aos hindus assameses supostamente “originários”. Um menino, Moinul Hoque, atacou a polícia armada em fúria cega visando a sua destruição; eles atiraram nele à queima-roupa e então começaram a bater em seu corpo moribundo com cassetetes.
Acompanhando a equipe policial estava um fotógrafo hindu, Bijoy Baniya. Quando os cassetetes pararam, Baniya correu e deu um salto de vitória; plantou então um pé no peito do menino moribundo. Em uma reportagem para a revista Time, Debashish Roy Chowdhury comentou: “Agora, pisar em um cadáver muçulmano tem um brilho de retidão patriótica… policiais foram vistos abraçando o fotógrafo em cena, num vídeo gravado após a morte de Hoque”.
Além das incitações dos supremacistas hindus, existia um outro subtexto obscuro para esse assassinato. Uma das principais razões para a migração de muçulmanos bengalis para Assam nos últimos anos foi a onda de desastres induzidos pelas mudanças climáticas, como inundações que perturbaram a ecologia do Delta do Ganges. Isso resultou, por décadas, em conflitos sustentados, já que hindus assameses atacaram muçulmanos de Bangladesh, resultando em mais de trinta mil mortes entre 1991 e 2008. O nacionalismo assassino começou já a prosperar no colapso climático há algum tempo.
A espoliação ecológica do planeta não gera, por si só, conflito social. Ainda menos gera ideologias do tipo do nacionalismo palingenético ou ainda as paixões vingativas que o acompanham. Cria, contudo, condições estruturais para a crise, ao mesmo tempo em que catalisa as condições disfuncionais existentes, tais como a escassez relativa de alimentos, a distribuição desigual das vulnerabilidades, os aumentos nos custos de produção e a exploração violenta.
Considere-se, por exemplo, os refugiados em razão de desastres naturais. De acordo com o ACNUR, 21 milhões de pessoas por ano foram deslocadas pelos eventos climáticos desde 2008. Até 2050, projeta-se que 1,2 bilhão de pessoas serão deslocadas pelas mudanças climáticas e pelos desastres naturais. Milhões desses refugiados caem em servidão por dívidas ou em formas de escravidão moderna. E isso ocorre simplesmente porque o estatuto de refugiados e o baixo nível da proteção que recebem os tornam mais vulneráveis à exploração. Desse modo, um aumento em seu número devido à crise climática provavelmente encurtará ainda mais os recursos e a recepção insignificante disponível para eles.
As mudanças climáticas também agravarão os riscos existentes associados a viajar para um país seguro. Por exemplo, migrantes e requerentes de asilo que tentam chegar à fronteira dos EUA pelo México agora devem passar pelo Deserto de Sonora para evitar a malha de patrulhas de fronteira e os muros fortificados dos EUA. Essa jornada, que é perigosa devido ao ambiente extremamente quente, está matando 350 pessoas por ano.
À medida que as temperaturas aumentam, o número de mortes por falência de órgãos e desidratação também deve aumentar. Um número crescente de refugiados climáticos, ao que parece, também intensificará a pressão nacionalista por restrições de fronteira mais violentos, tornando a jornada ainda mais perigosa. Contudo, um fluxo de refugiados como tal, no entanto, não é suficiente para criar uma “crise de invasão estrangeira” ou causar uma reação violenta, assim como os incêndios florestais não causaram a caça aos antifas no Oregon rural.
Como aponta o historiador Dan Stone, a ideia recente de que há uma “crise de refugiados” na Europa parece ser uma “construção puramente retórica”: enquanto “países como Líbano e Jordânia acolheram mais de um milhão de refugiados sírios, os países europeus aparentemente são incapazes de lidar com dezenas de milhares”.[v]
Os fluxos só se tornam “incontroláveis” do ponto de vista dos Estados quando eles já se comprometeram em manter os refugiados fora de suas fronteiras. Exemplo: os esforços da “fortaleza Europa” para fechar todos as rotas legais fazem com que os refugiados empreendam viagens de barco arriscadas nas quais centenas morrem no Mediterrâneo a cada ano. Enquanto isso ocorre, os políticos eufemisticamente culpam os “traficantes” por uma situação que eles mesmos criaram. Em 2015, sugeriu-se até que era necessário “bombardear” os traficantes. Na verdade, tudo isso mostra que o nacionalismo de desastre enxerga os refugiados como lixo humano indigno de receber apoio.
É assim que acontece na Índia de Narendra Modi: como os problemas de repartição e de direito foram resolvidos por décadas de forma étnica, para o benefício dos hindus, o assentamento de refugiados climáticos bengalis, em Assam, tornou-se motivo para o surgimento do nacionalismo assassino. Uma ecologia desordenada não se transformaria em “fascismo fóssil” ou em “ecofascismo” se tais potenciais já não estivessem circulando em regimes políticos ainda parlamentares.
3.
Se o fascismo entre guerras prosperou numa crise de democracia, se explodiu de modo vulcânico por meio de furiosas guerras civis de classe, no interior de países imperialistas decadentes, o nacionalismo de desastre está agora se insinuando por meio de uma crise climática que parece intratável e que ameaça a infraestrutura energética da civilização moderna. No momento, o comprometimento do nacionalismo de desastre com um capitalismo nacional musculoso exige que ele repudie a mudança climática como uma mentira “globalista”, como uma peta que vitima os possuidores de automóvel amantes da liberdade.
O nacionalismo de desastre assumiu uma forma negacionista; algo que foi construído pelos promotores do capital fóssil. À ideologia tradicionalmente em prol do capitalismo foi adicionada a ideia incitadora de que passou a existir agora uma ameaça racial: a mudança climática é um golpe que transfere riqueza para o comunismo chinês, diz Donald Trump, ou uma conspiração para entregar o resultado dos esforços dos “produtores” para os “parasitas”, diz Pamela Geller.
O “comunismo ambiental”, segundo o manifesto de Anders Behring Breivik, quer fazer uma “transferência de recursos… do mundo ocidental desenvolvido para o terceiro mundo”. Em desafio a todos os chorões e aos bondosos que estão supostamente “estragando tudo”, eles expressam de modo tecnológico aos seus desejos de onipotência: “drill, baby, drill!”
No entanto, já existem tendências verde-nacionalistas e ecofascistas na Europa e elas apareceram já, por exemplo, na afirmação de Marine Le Pen de que os migrantes são “nômades”, de que eles não têm “pátria”, de que não cuidam do meio ambiente. Assim, eles se tornam objeto de desprezo da alt-right; do mesmo modo, eles comparecem na especulação “Jewish Unnatur” e nos manifestos do “lobo solitário” de Payton Gendron, Brenton Tarrant e Patrick Crusius.
Essas peças conectam medos de superpopulação à “grande substituição” e ao “genocídio branco”. Essas afirmações repetem a ideia já presente na ecologia do século XIX e retomada no pensamento ecológico de Ernst Haeckel, Ludwig Klages, Savitri Devi, Jorian Jenks, Alain de Benoist, Renaud Camus, Garrett Hardin, Hervé Juvin, Björn Höcke e Dave Foreman. Em resumo dizem que o ambientalismo nada mais é do que uma guerra social darwinista devido à existência de um excedente biológico.
4.
“O fascismo” – alertou Félix Guattari – parece vir de fora”; contudo, “ele encontra sua energia bem no coração do desejo de todos”.[vi] Michel Foucault também alertou que o problema se encontrava no “fascismo que reside todos nós… em nossas cabeças e em nosso comportamento cotidiano, naquele fascismo que nos faz amar o poder, desejar a própria coisa que nos domina e explora”.[vii]
Antes que o fascismo se torne um movimento, ele deve circular na vida cotidiana, de forma nascente como paranoia política e de vitimização cotidianas, fantasias de restituição e vingança, desejo de dominação, a necessidade autoritária de estar certo, a capacidade de humilhar, conformidade de grupo em busca de aprovação e tendências inversas à malícia e ao sadismo social. Essas são os gozos dos fascistas comuns, ou seja, dos microfascismos, os quais, ao receberem uma forma ideológica apropriada, anunciam-se em voz alta em momentos de crise.
As crises do capitalismo geralmente também são crises da esquerda em seus modos habituais de pensamento e reprodução. E na política “diagonal” dos últimos anos, diversos intelectuais desclassificados, antes de esquerda, passaram a adotar alguma versão da política de extrema direita.
O eixo dessa transição, com frequência, tem sido uma ameaça percebida ao próprio corpo ou à sua liberdade de movimento. Os direitos transgêneros, por exemplo, parecem ameaçar os “espaços das mulheres”; as restrições trazidas pela Covid, assim como as vacinas mandatórias, parecem esmagar a soberania do indivíduo.
Seria reconfortante dizer que as sementes da apostasia são evidentes, que elas estão aí o tempo todo, mas isso não é verdade. Também seria bom poder atribuir tudo isso à esquerda que aliena desnecessariamente as pessoas ao negligenciar as questões que a direita explora, tais como a fácil censura online e a simplicidade da moral reativa. Trata-se de uma questão real que foi considerada por Naomi Klein em seu estimulantemente e perspicaz livro Doppelganger.[viii] Mas, pôr a culpa inteiramente nisso, implicaria em afirmar que os desertores não passavam de coelhos facilmente assustados.
A verdade, suspeita-se aqui, está mais próxima do palpite de Félix Guattari, segundo a qual o desejo pelo fascismo é uma tentação latente da qual ninguém está isento. Pode sempre haver apegos, que moram nas crenças mais profundas das pessoas, que se mostram mais importantes do que o comprometimento que possam ter com a realidade como tal. Nesse sentido, pode-se pensar no “fascismo latente” que existe em todas as pessoas” da mesma forma que elas como um todo foram encorajadas a se ver como transmissoras do vírus Covid-19: ninguém, mesmo sem saber, deixou ser vista como uma pessoa contagiosa.
Há aqui um aviso da história e ele foi descrito no ensaio de Alf Lüdtke.[ix] Ele questionou os trabalhadores alemães sob o nazismo: “o que aconteceu” – perguntou-lhes – “com aquele “vermelho ardente”? Alf Lüdtke, assim, mostrou o choque dos social-democratas e dos comunistas, ocorrido em março de 1933, quando os bairros da classe trabalhadora foram enfeitados com suástica postas bandeiras e zumbidos com aprovação ao Führer.
Alguns trabalhadores se alistaram nas tropas de assalto (SA) nazistas. Outros se mantiveram em silêncio. A maioria dos trabalhadores não se juntou ao fascismo, particularmente aqueles que votaram na esquerda. Mas o fascismo não teria sido tão abrangente em sua vitória se não tivesse despertado os anseios latentes de parte pelo menos desses trabalhadores.
Ao detalhar os patógenos emocionais que contribuem para o contágio nacionalista do desastre, o livro descreveu ressentimentos, ódios e anseios do fim dos tempos aos quais todas as pessoas poderiam plausivelmente sucumbir. A teoria da política da “ferradura”, segundo a qual os “extremos” estão mais próximos uns dos outros do que em relação ao liberalismo, é banal. Mas é óbvio que as paixões básicas que impulsionam a esquerda podem sempre, sob pressão de desespero e decadência suficientes, no manto atmosférico da derrota, ser pervertidas e invertidas em seu oposto fascista.
O nacionalismo de desastre ainda não é fascista. Contudo, em seu zênite recente, ele trovejou já ao longo de trilhos que rumavam em direção à guerra total, ao cataclismo ecológico e à aniquilação humana, assim como em direção à instalação daquele “outro reino” com sua “própria fatalidade peculiar”. Como se sabe, o sobrevivente do campo de concentração Buchenwald, David Rousset, em seu livro de reflexão,[x] chamou esse “outro reino” de “univers concentrationnaire“.
*Richard Seymour é jornalista. Edita o blog leninology.co.uk e é co-editor da revista Salvage. É autor, entre outros livros, de Corbyn: The Strange Rebirth of Radical Politics (Verso). [https://amzn.to/3Pb7qQ8]
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Notas
[i] Paxton, Robert O. – A anatomia do Fascismo. Paz & Terra, 2008.
[ii] Seymour, Richard – Disaster nationalism – The downfall of liberal civilization. Verso, 2024. Livro este que aqui se publica alguns trechos.
[iii] Griffin, Roger– The Nature of Fascism. Routledge, 1993.
[iv] Malm, Andreas e Zetkin Collective – White skin, black fuel: on the danger of fossil fascism. Verso, 2021.
[v] Stone, Dan – The Holocaust: An Unfinished History, Penguin, 2023.
[vi] Guattari, Félix – Everybody Wants to be a Fascist. In: Chaosophy: Texts and Interviews, 1972-1977, Semiotexte, Los Angeles, 2007
[vii] Foucault, Michael – Preface. In: Gilles Deleuze and Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, University of Minnesota Press, Minneapolis, MN, 1983
[viii] Klein, Naomi – Doppelgänger: Uma viagem através do Mundo-Espelho. Editora Carambaia: 2024.
[ix] Alf Lüdtke, Ordinary People, Self-Energising, and Room for Manoeuvering: Examples from 20th Century Europe, in Alf Lüdtke, ed., Everyday Life in Mass Dictatorship: Collusion and Evasion, Palgrave Macmillan, 2016,
[x] Rousset, David – L’univers concentrationnaire. Fayard/Pluriel, 2011.
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