Nobel da “paz” premia María Corina Machado

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Por TIAGO NOGARA*

A mesma mão que assinou o decreto golpista de 2002 agora recebe o prêmio da paz, num teatro geopolítico onde “paz” significa rendição incondicional aos interesses americanos

1.

María Corina Machado, principal liderança da extrema direita venezuelana, acaba de ser agraciada com o Nobel da Paz de 2025. Nas palavras do comitê que lhe outorgou o prêmio, seu recebimento se deve “por seu incansável trabalho em promover os direitos democráticos do povo da Venezuela e por sua luta para alcançar uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”.[i]

Tal descrição coaduna com a narrativa que vem sendo amplamente difundida nos últimos tempos pelos grandes veículos da mídia capitalista internacional, fantasiando María Corina Machado como abnegada defensora da democracia e do povo venezuelano, injustamente perseguida por supostos desmandos autoritários do governo de Nicolás Maduro. Entretanto, sua trajetória difere bastante de tais caracterizações, e sua escolha como ganhadora do Nobel da Paz de 2025 diz muito sobre a temperatura política e ideológica do mundo na atual quadra histórica.

No ano passado, em meio à explosão das manchetes que apelavam em prol da permissão para que ela pudesse concorrer como candidata da oposição nas eleições presidenciais venezuelanas, o politólogo argentino Atílio Boron fez uma ótima recapitulação de sua trajetória política.[ii]

Quando da ocorrência do vergonhoso golpe de Estado que derrubou e sequestrou o presidente Hugo Chávez em 2002, María Corina Machado, então uma das lideranças da ONG Súmate, assinou o famoso “decreto Carmona”, emitido pelo empresário Pedro Carmona Estanga, que se autoproclamou presidente após a prisão de Chávez e dissolveu o conjunto das instituições democráticas do país.

Em 2005, foi julgada e condenada a 28 anos de prisão, não apenas pela sua assinatura no “decreto Carmona”, mas também pelo comprovado recebimento de um subsídio de 53 mil dólares do Fundo Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy – NED), financiado pelo Congresso dos Estados Unidos.

No mesmo ano, foi recebida pelo presidente americano George Bush para uma conversa privada no Salão Oval. Como bem observou Atílio Boron, ela e outros golpistas acabaram sendo anistiados pelo então presidente Hugo Chávez, e, na contramão das narrativas hoje correntes, provavelmente “em nenhum outro país María Corina Machado poderia seguir fazendo política como fez na Venezuela até o dia de hoje”.[iii] Até porque a anistia passou longe de servir para que abandonasse suas atividades conspiracionistas e antidemocráticas.

2.

Quando da ocorrência das brutais “guarimbas” em 2014 e novamente em 2017 – com características que lembravam muito as manifestações violentas típicas das revoluções coloridas made in CIA –, coincidentemente aceitou assumir o cargo de embaixadora suplente do governo do Panamá junto à OEA, e em uma reunião do Conselho Permanente desta solicitou que a organização apoiasse uma intervenção militar para derrubar o governo de Nicolás Maduro.

Quando da instauração do autoproclamado e ilegítimo “governo” paralelo de Juan Guaidó, foi igualmente cúmplice das tramoias que resultaram no roubo do patrimônio público venezuelano pelas potências imperialistas. Foi dentro desse quadro, portanto, como argumentou Atílio Boron, que em 2015 ela foi inabilitada pelo período de 15 anos para exercer cargos públicos.

Ainda assim, esteve ativamente presente e liderando um conjunto de atividades da campanha de seu fantoche na corrida eleitoral presidencial de 2024, o diplomata aposentado Edmundo González. O professor Steve Ellner[iv] apontou que Edmundo participou de apenas um dos primeiros dez grandes comícios da oposição venezuelana visando o pleito de então. Seu lançamento como candidato “substituto” foi apenas uma maneira de driblar a inabilitação da candidatura principal, mantendo-a no foco da atenção.

A plataforma programática de María Corina Machado sempre foi a defesa irrestrita do liberalismo econômico, anunciando publicamente a intenção de impulsionar um massivo processo de privatizações que envolvesse inclusive a PDVSA. Seu pai, Enrique Machado Zuloaga, foi um importante empresário do setor metalúrgico e presidente da Siderúrgica Venezolana S.A. (SIVENSA), que teve uma de suas subsidiárias, a Siderúrgica del Turbio (SIDETUR), expropriada em 2010. Não por acaso, ela sempre insistiu na bandeira de reverter o conjunto dos processos de expropriação liderados pelos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Ao ser anunciado o resultado do prêmio, grande ênfase midiática tem sido dada com relação ao suposto descontentamento de Donald Trump e da Casa Branca com o resultado, tendo em vista a campanha aberta que o presidente vinha fazendo em prol de que ele próprio vencesse – chegando a afirmar no mês passado que “seria um grande insulto” para os Estados Unidos se o Nobel da Paz não lhe fosse atribuído.[v]

Entretanto, tal insatisfação setorial de forma algumaescondeo alinhamento evidente entre os interesses da extrema-direita venezuelana e do imperialismo americano. Afinal, María Corina Machado foi indicada ao prêmio por um grupo de senadores e deputados do Partido Republicano dos Estados Unidos, constando entre os políticos que assinaram o documento nada mais, nada menos, do que Marco Rubio, secretário de Estado de Donald Trump, e Michael Waltz, atual embaixador dos Estados Unidos na ONU.

Sua visão de política internacional se alinha perfeitamente com a dos falcões de Washington, sem esconder nem por um segundo sua aversão extrema às esquerdas latino-americanas e ao conjunto dos países soberanos que buscam a construção de uma ordem global multipolar. Em uma postagem datada de março de 2022 no X, María Corina Machado afirmou que “Maduro é hoje um peão de Rússia, China e Irã”,[vi] e recentemente sentenciou que “uma vez que derrubemos o regime de Maduro, vamos libertar Cuba e Nicarágua”.[vii]

Em fevereiro, participou do encontro do grupo “Patriotas pela Europa”, que reuniu, sob o lema “Make Europe Great Again”, o conjunto da extrema direita europeia em Madri, sem vergonha de desfilar em um espaço que ressoava slogans políticos tais como o da “Reconquista” (aludindo, sob uma perspectiva ultrarreacionária, à retomada da Europa pelos próprios europeus).[viii]

Ademais, é também uma reconhecida simpatizante da extrema direita israelense: em 2018, chegou a pedir ajuda ao primeiro-ministro de Israel, Benjamín Netanyahu, para uma intervenção militar contra o governo de Nicolás Maduro, e nessa mesma ocasião prometeu “que algum dia teremos uma relação estreita entre Venezuela e Israel, e acredito e posso anunciar que nosso governo mudará a nossa embaixada israelense para Jerusalém… isso será parte do nosso apoio ao Estado de Israel”.[ix]

3.

Portanto, é no mínimo irônico que o Nobel da Paz seja entregue a uma aberta defensora do que há de mais retrógrado e violento no mundo: as políticas imperialistas que fomentam guerras, sanções e conflitos, e o ultraliberalismo econômico que priva as maiorias do acesso às riquezas, destinadas a um pequeno punhado de multimilionários que patrocinam a difusão de tal doutrina.

Ademais, María Corina Machado não é só uma defensora da violência abrupta da extrema direita internacional, mas uma das máximas representações do entreguismo e subserviência das elites reacionárias latino-americanas aos interesses estadunidenses, defendendo abertamente a imposição de humilhantes sanções e até mesmo intervenções militares contra o seu próprio povo.

O que é certo é que a indicação de uma notória reacionária como vencedora do Nobel da Paz pode ser vista como um exemplo típico de “vinho velho em garrafa nova”. Não é de hoje que os bons serviçais do império têm seu lugar periodicamente reservado no altar da hipocrisia. Ser cúmplice dos banhos de sangue protagonizados pelos americanos no Vietnã e pelas ditaduras militares na América Latina não impediu que Henry Kissinger recebesse também a honraria.

O alinhamento irrestrito do Dalai Lama com os planos perversos da CIA e dos reacionários tibetanos também abriu caminho para que ganhasse o prêmio. Por fim, os sorrisos e a fala mansa de Barack Obama foram o suficiente para que os jurados lhe outorgassem a premiação logo no seu primeiro ano de mandato, e pouco tempo antes de patrocinar a arbitrária intervenção militar da OTAN na Líbia, que tornaria o país que detinha o maior IDH da África de então em um Estado falido, rota de tráfico de pessoas para a Europa, culminando no cruel assassinato de seu líder histórico Muammar Gaddafi.

O teatro de Donald Trump e seus asseclas, com declarações tais como as de que o comitê colocou “a política acima da paz”,[x] não oculta o que há de mais evidente na premiação de María Corina Machado: a crescente adesão de grande parte das elites capitalistas globais às fileiras da extrema direita.

Os interesses políticos realmente prevaleceram sobre os da paz na entrega do Nobel, mas de forma alguma contra a vontade do imperialismo estadunidense. Um ditado amplamente conhecido costuma aludir à necessidade de nos precavermos contra os “lobos em pele de cordeiro”.

No caso de María Corina Machado, não há disfarce de cordeiro, pois o lobo jamais teve vergonha de mostrar à luz do dia sua verdadeira essência, com as marcas indeléveis do apoio ao neofascismo e à subserviência humilhante diante de Washington.

*Tiago Nogara é professor da Universidade de Nankai.

Notas


[i] The Nobel Prize. “Announcement, Nobel Peace Prize 2025.The Nobel Prize, 10 de outubro de 2025.

[ii] Atilio Borón. “María Corina Machado and the Betrayal of Venezuela.” Orinoco Tribune, 13 de fevereiro de 2024.

[iii] Atilio Borón. “María Corina Machado and the Betrayal of Venezuela.Orinoco Tribune, 13 de fevereiro de 2024.

[iv] Steve Ellner. “María Corina Machado: What the Mainstream Media Isn’t Saying About Her.Venezuel Analysis, 8 de julho de 2024.

[v] O Globo. “Trump não ganha Nobel da Paz e Casa Branca reage: ‘Nunca haverá ninguém como ele’; entenda escolha do Comitê.O Globo, 10 de outubro de 2025.

[vi] María Corina Machado. “Maduro es hoy un peón de Rusia, China e Irán.X (Twitter), 7 de março de 2022.

[vii] El Nacional. “María Corina Machado: ‘Una vez que saquemos al régimen de Maduro, vamos a liberar a Cuba y Nicaragua.El Nacional, 13 de junho de 2025.

[viii] Reuters. “Orban, Le Pen Hail Trump at Far-Right ‘Patriots’ Summit in Madrid.” Reuters, 8 de fevereiro de 2025.

[ix] Fuser News. “María Corina Machado prometió a Israel en 2020 trasladar embajada de Venezuela a Jerusalén.Fuser News, 3 junho de 2024.

[x] Reuters. “White House Says Nobel Committee Puts ‘Politics over Peace.’Reuters, 10 de outubro de 2025.


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