A pandemia como calamidade pública

Imagem: Markus Spike
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Por ADRIANA SOARES DUTRA & LEONARDO KOURY MARTINS*

A pandemia do coronavírus também é marcada pela classe, gênero e raça, por isso sem políticas públicas não há condições concretas de proteção

No dia 20 de março de 2020, o Senado aprovou o Decreto nº 6/2020 que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública em função da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Enquanto conceito, calamidade pública significa catástrofe, desgraça pública, flagelo. A construção da palavra através do latim é calamitate, porém o conceito, de acordo com a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei nº. 12.608/12), vai além.

É por este conceito necessário considerar as situações que trazem ao Estado de Calamidade Pública uma situação anormal, provocada por desastres (ou não), causando danos e prejuízos à coletividade, que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido.

Desde que foi detectado o primeiro caso da doença, em dezembro de 2019 (Wuhan – China), o COVID-19 tem instado desafios incalculáveis à sociedade mundial. Por se tratar de algo que afeta todas as esferas da vida social, a pandemia provocada pelo COVID-19 ou Coronavírus precisa ter nos governos e demais entes estatais, como o Parlamento e o Judiciário, o suporte necessário para uma grande ação conjunta que leve em consideração que em situações como a vivida na atualidade não há espaço para atitudes fragmentadas ou parciais. A articulação conjunta é o que garante uma ação precisa, especialmente no tempo presente.

Todavia, o que assistimos, especialmente no Brasil, ainda se aproxima mais de uma disputa vaidosa entre os governantes do que propriamente de um esforço de unidade frente à complexidade da situação. Boa parte das recomendações de proteção contra a proliferação do vírus se mantém distantes da realidade experimentada por grande parte das classes trabalhadoras, na medida em que não são acompanhadas de medidas econômicas substanciais. Até o momento, mais de 600 mil mortos que se equilibram entre o covid e a fome em 2021.

Em tempos em que a uberização torna-se a tônica do mundo do trabalho, atribuindo aos trabalhadores de forma cada vez mais intensa e perversa a responsabilidade pela própria reprodução, permanecer em casa não é uma opção para muitos. Seja porque esta decisão está nas mãos de terceiros, seja porque não podem se afastar um dia sequer de suas ocupações, por mais precárias que sejam, sem faltar o que comer no dia seguinte, uma parcela significativa dos trabalhadores não dispõe de condições mínimas para sua proteção. Nesse sentido, por mais conveniente que seja acreditarmos que as doenças infecciosas são democráticas, a pandemia do coronavírus também é marcada pela classe, gênero e raça, como afirmou recentemente o geógrafo britânico David Harvey.

Neste contexto, o debate sobre o papel do Estado para a garantia da vida torna-se primordial. Sem políticas públicas não há condições concretas de proteção. Mas o discurso atrapalhado do presidente do país, Jair Bolsonaro, parece composto por um misto de negação e irresponsabilidade e, diante de uma incapacidade de apresentação de medidas econômicas concretas para os trabalhadores, até mesmo a quarentena, ainda que tomada de forma individualizada, já começa a sofrer forte pressão e ameaça ser suspensa a qualquer momento.

O que não deve ser compreendido como uma novidade nem ser recebido com surpresa. O lucro a serviço dos ricos, princípio básico da economia capitalista, impede um esforço mais concentrado sobre a importância do isolamento social em todo o mundo. Para o Sistema Capitalista e em grande parte das ações de governo no mundo, a Economia está acima das vidas humanas.

Porém é neste momento que devemos refletir, quando o sistema capitalista estava pensando ou agindo diferente? A defesa da propriedade encontra-se explícita desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789 no contexto da Revolução Francesa, e segue sendo a principal bandeira dos governos neoliberais da atualidade. Desta forma, não se trata de uma análise superficial, mas para que este texto tenha sua estrutura pensada a partir da Calamidade Pública, considerando a Pandemia como fator preponderante e o papel do Estado como primordial para este momento, devemos organizar o pensamento a partir do modo de produção vigente e da crise na qual se encontra, sendo a questão ambiental parte integrante deste arranjo global e a articulação integrada do Poder Público para tais enfrentamentos e a importância da articulação integrada do Poder Público para tais enfrentamentos.

O neoliberalismo não é capaz de garantir ações eficazes no enfrentamento da Pandemia, o Estado mínimo não consegue trazer respostas coletivas além do protecionismo econômico para o próprio capital.

É seguro afirmar que o processo de constante expansão e de consumismo sem limites necessário à sobrevivência do capital sustenta-se na intensificação da exploração das trabalhadoras e trabalhadores, na extração desordenada da matéria prima, na produção agrária extensiva, fazendo com que a relação força de trabalho e matéria prima a cada dia se sucumbam à produção de mercadorias.

Para além da dilaceração da vida dos sujeitos em um nível mais imediato, tanto objetiva quanto subjetivamente, outras consequências enormes e graves se agudizam dia após dia. O efeito disso é o lixo, este que não sairá do planeta e em seu rastro o aquecimento solar, a camada de ozônio, El Niño e La Niña, a mineração, seus rejeitos e todo o crime ambiental que os acompanha. O planeta se encontra desgastado com a aceleração do capital sobre todas as formas de vida existentes.

Se é tempo de pensar no isolamento social como necessário para reduzir o número de pessoas infectadas e mortas pelo COVID-19, vale a reflexão do porque é tão difícil parar.

Esta realidade ultrapassa muito a calamidade pública gerada pelo vírus. Nos remete à lógica de produção e reprodução da vida no sistema capitalista e a necessidade urgente de repensarmos o caminho que está sendo trilhado nesta sociabilidade. O lucro não pode se encontrar acima da vida humana, determinando as condições em que vivemos. Seja pela pressão do ato de não parar, mas também de que forma parar, é necessário pensar de qual forma viver. Como se encontram os autônomos, desempregados, pessoas em situação de rua? Qual o diálogo sobre o acesso à alimentação enquanto um direito, o tamanho de nossas casas e as relações sociais enfraquecidas no cotidiano estão sendo estabelecidos?

Como parte do conjunto de trabalhadores, assistentes sociais não se encontram imunes à essa realidade. As frágeis condições de trabalho, incluindo vínculos precários, falta de autonomia e escassez de recursos têm sido alvo de preocupação e debate dentro da categoria nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, reconhecer a importância do trabalho do Serviço Social para a garantia de direitos é primordial, em especial em tempos de acirramento das expressões da questão social.

Mais do que nunca, é momento de defesa intransigente de um Estado de direito, de políticas públicas universais, de um sistema de saúde, de educação, do trabalho e também dos direitos de não ir ou vir, em tempos de pandemia.

Ao mundo, o que este período nos faz refletir: o Estado mínimo não tem condições de garantir a cidadania pela sua frágil mediação entre os interesses da população e a economia capitalista. A inoperância do Estado Neoliberal é proposital, frente às intempéries, pandemias e as grandes questões ambientais. Prova de que este modelo precisa ser derrotado nos países que aplicam tal organização política.

Ao Brasil, mais do que antes, renasce a urgência de lutar não apenas pela defesa da Saúde Pública mas contra os desmontes cotidianos nas políticas sociais. A Constituição Federal não pode ter no seu marco legal, emendas como a EC95 que retira por 20 anos os gastos públicos para os direitos sociais.

Esta dualidade desfaz o que se descreve quanto os artigos 6º e 7º da Constituição que garantem a toda população diversos direitos já instituídos, mas profundamente afetados na atualidade. O que se traz como garantidas para a coletividade não podem ser mercantilizado. A vida não é um negócio a ser equilibrado como balança do que é perda aceitável como sugerem os analistas do atual governo federal.

O reconhecimento da identidade de classe, o compromisso com àqueles que se encontram em processos de vulnerabilização e a valorização da vida devem orientar a defesa da paralisação da classe trabalhadora, assim como a garantia, por parte do Estado, de condições para que ela ocorra. Trata-se de elementos que podem contribuir para o resgate da unidade nas lutas sociais, frente um Brasil que se desdobra no Golpe contra seu próprio povo.

*Adriana Soares Dutra, assistente social, é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora do livro Gestão de desastres e serviço social (Appris).

*Leonardo Koury Martins é professor do curso de Serviço Social do Centro Universitário Unihorizontes.

 

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