Por ERIVALDO COSTA DE OLIVEIRA
O Nordeste não é um só, mas muitos – e sua identidade, como o Brasil, permanece em disputa
1.
O Brasil é país com dimensão continental e de passado colonial, cuja construção identitária, além de complexa, pode ser vista como problemática. Como não poderia deixar de ser também, é um país perpassado por regionalismos de distintos matizes que se constituíram no decorrer do próprio processo de formação dessa identidade intricada, por sinal, ainda em aberto.
Tais regionalismos, tendo como referência recortes de determinadas porções do território brasileiro, as regiões, formaram pequenas comunidades imaginadas que mobilizaram ainda mobilizam representações do que é ser regional dentro do nacional. Nesse contexto, há regionalismo para todos os gostos e preferências. Em termos bem simples mesmo, há os fortes e os fracos; os militantes e os menos militantes; há os extrovertidos (voltados para fora daquilo que se chama nação) e os introvertidos (voltados para dentro).
No âmbito desses, ainda há o hedonista, por eleger a festa, a lentidão, o balanço da rede como norte da vida; há o equilibrado, o distante dos excessos, por reivindicar, dentre outras coisas, ser o centro geográfico do país; o de pretensões hegemônicas que evoca uma suposta superioridade, por se “vender” como a parte que representa o todo; há o que se apropria, reveste de inferioridade, de vitimização, por se dizer explorado e injustiçado; há o brasileiríssimo, por “vender” sua região como centro inicial de formação do Brasil, logo a verdadeiramente mais nacional e ainda há o fronteiriço, por se arvorar ser, nas lindes ou confins do território, a reserva, a barreira, a defesa da brasilidade frente à alteridade extranacional.
Como se pode ver, os regionalismos são múltiplos, mas, há que se dizer também que múltiplas podem ser a expressão de um mesmo regionalismo. Ou seja, não há tipos puros. Um mesmo tipo de regionalismo pode apresentar variadas expressões, mesmo que, por vezes, uma determinada tônica altissonante se sobressaia.
Considerações como essas, fazem-se necessárias, quando se depara com um artigo de opinião como o “Nordeste: região, identidade ou estereótipo?”, publicado no jornal Folha de S. Paulo (15, 05/205), caderno Tendências. Nesse texto, partindo da constatação de que a linguagem é um instrumento de poder, frequentemente utilizada como mecanismo de opressão à serviço da manutenção das desigualdades, e abrindo-se para uma perspectiva que a contemple, para além de questões de sexo, de gênero e de raça, busca a autora incluir, no debate da diversidade, a temática regional.
Para tanto, problematiza a identidade nordestina demonstrando o quanto o designativo Nordeste é saturado de estereótipos que comportam vários “poréns”. Nesse sentido, afirma: o Nordeste “carrega um peso: o peso do apagamento das singularidades, da falta de reconhecimento de que o Brasil é muito mais do que um eixo centralizado entre Rio de Janeiro e São Paulo”.
E complementando assinala: “Como se nove estados inteiros —com suas culturas, economias e realidades próprias — fossem um só bloco homogêneo”. Em continuação, compreendendo a criação da referida região como um plano, estratagema de dominação elaborado por atores externos à própria região, a autora vaticina: “Parece mais fácil jogar nove estados no mesmo balaio e chamar todo mundo de “nordestino” do que se dar ao trabalho de aprender que existem Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia […]”. Indo de encontro a algum possível defensor da pertinência representativa do designativo regional, pondera: “‘o Nordeste’. Você pode me dizer que ‘é só uma forma de simplificar’. Mas, simplificar, nesse caso, é ignorar. É apagar identidades, reduzir histórias, minimizar existências”.
Assim, depois de demonstrar os problemas que o desafortunado termo carrega, a autora explicita o diagnóstico do mal do qual o referido topônimo sofre, expressa: “Essa mania de reduzir tudo a ‘Nordeste’ […] não é apenas desconhecimento. É opressão regional disfarçada de conveniência. As regiões fora do eixo do Sudeste são frequentemente tratadas como marginais, invisibilizadas ou reduzidas a blocos homogêneos, como se fossem territórios de menor relevância. Essa lógica não é nova. Ela se construiu historicamente para reforçar dominações seculares para perpetuar uma hierarquia onde alguns estados são vistos como centro de poder e outros apenas como o ‘resto’”.
E como solução para o problema, a prescrição é taxativa: “conheça o Brasil de verdade. Vá além dos rótulos e estereótipos. Aprenda a chamar os estados pelos nomes e reconheça suas particularidades. Abrir-se para essa diversidade não apenas uma questão de respeito, mas um ato político, um passo para construir um país menos hierárquico e mais justo em sua forma de representação”.
2.
Por um lado, diante do exposto, não há como discordar de elementos que embasam a argumentação da autora. Realmente, há uma forma de conceber, imaginar, compreender, explicar o país, aquilo que se chama de nação brasileira, que acaba por hierarquizar e, portanto, inferiorizar porções do território nacional bem como as populações que nelas vivem. Isso faz com que somente parte ou algumas partes do Brasil tenham o “monopólio” de dizer o que é o “nacional”, relegando todo o restante a um patamar periférico em todos os sentidos.
Isso não se deu e nem se dá sem tensões que envolvam os distintos regionalismos supracitados. Principalmente, a partir do século XX, mas com desdobramento até hoje, há uma disputa que pode ser chamada de geopolítica da construção da identidade brasileira, cujo movimento se consubstanciou mais pelos conflitos, contendas, negociações entre os referidos regionalismos do que pela simples supressão deles.
Uma geopolítica que, para o contexto da presente discussão, pode ser entendida como o embate, a peleja em torno da definição, da representação do que seria o “nacional” e, nesse âmbito, quais porções do país representariam melhor o conjunto do Brasil.
Desse modo, as disputas pela titularidade da identidade brasileira, ancoradas em fortes bases materiais, não deixaram de apresentar, em um jogo dialético, vencedores-vencidos e vencidos-vencedores, uma vez que estes últimos, apesar de abatidos politicamente e obrigados a modificações mantiveram a capacidade de projetar, de várias maneiras, a definição do nacional a partir de suas perspectivas.
Demonstradas as concordâncias, por outro lado, não tem como assentir com outros elementos argumentativos utilizados pela autora. Por exemplo, não parece lógico que, sob a alegação de fazer sobressaírem os estados e suas singularidades, se proponha o combate à opressão regional via indicação de reservas em relação ao designativo Nordeste.
Pois, nada garante que a discriminação regional não venha se manifestar sob a forma de preconceitos de origem geográfica em relação aos recortes estaduais. Tampouco identidade assentadas nesses espaços menores garantem que elas sejam não excludentes com porções significativas desses mesmos espaços. Exemplo disso é a identidade baiana, que tem seu eixo de representação identitária alocado, sobretudo, na cidade de Salvador, quando muito no Recôncavo Baiano. Enquanto que o sertão do estado é simplesmente posto de escanteio.
Ademais, uma solução nos termos propostos parece expressar menos lógica ainda, quando se coloca em tela a dinâmica da formação dos regionalismos brasileiros e, principalmente, a do regionalismo nordestino. Para ser claro. A região é, em certo sentido, uma criação daquele movimento regionalista. Sintomático é que a colocação, em 1942, pelo Estado, do Nordeste no quadro da primeira regionalização oficial brasileira que dividiu o país em cincos regiões (Norte, Sul, Leste, Centro e Nordeste) é apenas a assunção por parte burocracia estatal de um recorte espacial anteriormente criado pelo regionalismo. Ou seja, é um reconhecimento “post festum”.
E mais, no Brasil, tradicionalmente, os recortes provinciais no império e, depois estaduais na república foram bases de referências dos regionalismos. Porém o Nordeste (e outros espaços) se coloca fora dessa tendência, posto que se constituiu agrupando distintos estados. Isso tem a ver, dentre outras coisas, com as disputas vinculadas a já mencionada geopolítica da construção da identidade brasileira.
3.
Assim sendo, a contraposição comprobatória da autora, expressa na pergunta retórica “[…] cá entre nós, você já ouviu alguém chamar uma paulista de ‘sudestina’?” parece ter pouco poder de convencimento, tal qual sua resposta “Não fazemos isso porque São Paulo é conhecido, porque há um reconhecimento da identidade daquele espaço. O mesmo não acontece quando se fala do Piauí.”
Contudo, pergunta e resposta denotam ainda menor poder de persuasão quando se diferencia região, regionalidade, regionalismo e regionalização. Assinalando-se que, pelo primeiro termo, entende-se o recorte espacial; pelo segundo, a identidade da região; pelo terceiro, o movimento que cria o recorte e a identidade, por meio da regionalização – o quarto termo – que nada mais é do que o ato, a ação de um ator que produz o recorte espacial.
Ator esse que tanto pode estar imbuído de uma verve regionalista quanto movido apenas por razões estratégicas para fragmentar o todo espacial em partes, visando melhor geri-lo. O que implica dizer que, a depender de quem regionalizou, há tanto recortes espaciais destituídos identidade regional quanto regiões constituídas por fortes regionalidades.
Logo é problemático contrapor Sudeste ao Nordeste, uma vez que Sudeste é apenas um recorte destituído de regionalidade, de vínculos identitários, apenas fruto da reforma de 1970, realizada sob a égide do Regime Militar, que alterou a regionalização elaborada pelo IBGE de 1942 e fez congregar na mesma entidade regional São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Espírito Santos. Isso deixou como legado a atual configuração regional do território brasileiro: Norte, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste.
A bem da verdade, o espaço sudestino nada mais é que o “grosso” dos estados remanescentes da antiga região Leste (exceção feita a São Paulo, desgarrado do Sul), que congregava, para além das unidades federativas já citadas, Bahia e Sergipe, que foram realocados, com a reforma, para o seio do Nordeste. Aqui, talvez, esteja uma das explicações para o fato de a identidade baiana carregar a contradição litoral x sertão e não estar de todo integrada à identidade nordestina.
Tudo isso implica dizer o seguinte: São Paulo se destaca no Sudeste por, dentre outras coisas, possuir uma forte base material sobre a qual se ergueu uma potente identidade regional, hoje um tanto modificada pelo jogo das disputas com os outros regionalismos, mas ainda suficientemente vigorosa para projetá-la geopoliticamente para o conjunto do território nacional. E também por estar no seio de um recorte regional maior destituído de regionalidade. Quanto ao Piauí? Bem, o Piauí, por uma série de razões históricas de ordem econômica e política, mas não somente por esses motivos, agregou-se ao Nordeste.
Então, diante de todo o exposto, pode-se concluir que tais assimetrias, estereotipias não têm ou não podem ser combatidas, enfrentadas? Obviamente que não, tais problemáticas devem ser confrontadas. Porém, sem desconsiderar alguns elementos. Um dos principais é o fato de que as desigualdades, as assimetrias têm dimensões materiais e o combate a elas, mesmo envolvendo uma dimensão discursiva, passa por levar em conta o chão da história que as construíram e as mantêm.
Dito de outra maneira, não se pode esquecer a própria história dos recortes espaciais e suas fronteiras, já que os regionalismos, malgrado seus discursos naturalizantes e essencialistas são construções sociais produzidas pelo embate entre os internos e os externos à região. E não obstante as identidades espaciais, como todas as identidades, se inclinem à homogeneização e, nesse sentido, encubram as heterogeneidades, provavelmente, o movimento mais acertado, no tocante ao combate às simplificações, às estereotificações, às opressões, aos preconceitos, seja tornar as identidades regionais mais plurais e abertas às diferenças, ou seja, mais inclusivas.
Em tal perspectiva, em vez de colocar restrições, reservas ao uso do designativo geográfico nordeste por causa do peso da estereotipia que esse termo regional carrega, quiçá, mais indicado seria batalhar para mostrar os distintos nordestes dentro do Nordeste, ressaltando até mesmo as singularidades dos estados que o compõe.
O Nordeste, a despeito das limitações e estereotipias de sua identidade, tem dado importantes contribuições no sentido de tornar a identidade brasileira mais aberta à diversidade. O peso dos clichês identitários, perpetrados por interesses internos e externos à região e as assimetrias entre as distintas identidades regionais, somadas à força da inércia, talvez dificultem a visualização de tais contributos. ]Desse modo, talvez, o grande questionamento a também se fazer, no âmbito dessa discussão, não seja a pergunta “Nordeste: região, identidade ou estereótipo?, mas a afirmativa de que o Nordeste é uma região, uma identidade e um estereótipo, contudo, aberto a disputas!
*Erivaldo Costa de Oliveira é professor de geografia na Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
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