Por PAULO GHIRALDELLI*
Quando a consulta se torna uma transação à distância, o que se vende não é mais medicina, mas a ilusão de eficiência — e o paciente vira espectador de sua própria doença
1.
“Preciso do médico, não de seu moleque de recados”. É uma frase de Karl Marx, pertence ao chamado “Capítulo VI ‘Inédito’ de O capital”. Ela é clara, ou ao menos era clara em sua época. Se estou doente, não quero que o médico me mande um garoto entregar uma receita. Quero o médico na minha frente. Ele vai me apalpar, me observar e me ouvir. Vai me consultar. Pago um médico diante desse seu trabalho.
Marx qualificava esse trabalho como aquele “cujo produto não pode ser separado do ato de produção”. A consulta é o trabalho do médico. Ela é produzida no trabalho do médico enquanto o médico está ali presente junto ao paciente, corpo a corpo. Os resultados dela, não do ponto de vista do capital, mas simplesmente do ponto de vista da relação médico-paciente, são informações para o doente.
Ele deve incorporar os conselhos médicos aos hábitos, se for o caso, e deve seguir o papel da receita, em que estão as prescrições medicamentosas etc. No computo geral do capitalismo, essa atividade se integra perfeitamente.
Mas, Marx diz, essa atividade do médico, por suas características bem próprias, oferece certa resistência ao modo de produção capitalista. Só de maneira limitada o modo de produção capitalista se apropria desse tipo de atividade. Ela, a consulta, tem existência no ato de produção e ali é consumida, esta sua feição é o elemento que Marx aponta como formando um campo de resistência.
O trabalho é produtivo, para Karl Marx, se gera mais valia, se amplia o capital. Como venda de serviço, o médico está integrado no capitalismo. No cômputo geral, está participando da ampliação do capital. Todavia, como atividade em si, trata-se de trabalho imaterial que se rebela diante das transformações que o capitalismo faz com cada atividade humana.
Muitos de nós que trabalham com atividades desse tipo, chegaram a contar com essa “limitação”, não raro para conferir ao seu próprio trabalho o que seria, naturalmente, um campo propício para a luta política.
2.
O capitalismo atual nos dá essa esperança?
O capitalismo atual fez com que o médico pudesse abandonar o moleque de recados. O médico chega ao paciente diretamente via online. Pode atender o paciente de modo mais lucrativo para a empresa que emprega o médico. Há aí uma intensificação do sistema de exploração do trabalho pelo capital, se o trabalho é explorado por uma plataforma de uma empresa de serviços médicos.
O médico também pode atender seu paciente, por conta própria, sem uma grande empresa que o transforme em seu funcionário, apenas usando uma plataforma comum do tipo do Whatsapp? Sim, mas não esqueçamos: o próprio Whatsapp é uma plataforma empresarial.
Mas aqui, em qualquer dos casos, a observação de Marx continua valendo: o modo de produção capitalista tem os seus limites. Pois, não estando de corpo presente na consulta, esta se torna apenas uma breve entrevista, sem o toque no corpo do paciente e outros procedimentos próprios.
Muitos nem vão se importar com isso, pois já estiveram em clínicas em que o médico olhou rapidamente e não ousou sequer se levantar de sua mesa. Mas esse é o médico ruim. O médico bom entenderá Marx: de fato, o modo de produção capitalista, que busca trazer a consulta para modificações que a transforme em algo próprio do capitalismo, não consegue o que deseja sem deturpar o próprio conceito de consulta médica. A consulta médica, como outros trabalhos desse tipo, cria resistência, e se há uma aparência que ela cede, ela o faz se deteriorando.
O esforço do capital de separar o conhecimento médico do próprio médico por meio da maquinaria, seja ela a dos diagnósticos ou, então, as das plataformas virtuais – cujo desenvolvimento com a Inteligência artificial vai além da simples entrevista online – parecem não confirmar a existência de resistências. Mas, isso é a aparência.
Pode haver troca de informações sobre pesquisa médica e consultas. Haveria aí uma alimentação do General Intellect no campo da saúde, digamos assim. Mas, temos de nota, não ocorre medicina alguma se passamos a considerar que o conceito de consulta médica pode ser apropriado pelo modo de produção capitalista. Não pode.
Mas se o capital não consegue fazer as coisas certas, ele faz as erradas e tenta convencer os mais velhos que o conceito mudou. A medicina capitalista precisa se apresentar como tendo muito mais vantagem que a velha medicina. Fique ela mais barata, ou mesmo mais cara, ela tem que passar a impressão que é mais conveniente.
Não é preciso muito para que a propaganda faça efeito: basta olhar para o trânsito e para a espera na sala de consulta e já estará aí um bom elemento para acreditar que, afinal de contas, a opinião do médico vai se transformar em receita, também ela online, e a vida parece ficar mais mais fácil desse modo. Então, viva a medicina moderna! Claro que as companhias que vierem a se dedicar a isso não estarão fazendo outra coisa senão aquilo que a busca de esmero em ampliação de tecnologia e ao mesmo tempo deslocamento do poder do médico. A proletarização dos médicos pode se acentuar.
Não creio que será difícil conquistar os médicos para a ideia de que o trabalho deles deverá até ficar melhor a partir do novo conceito de consulta, no limite, a nova prática da medicina.
3.
Com o ensino as coisas se passaram de modo bem rápido. Professores e alunos não precisam conviver – este pressuposto falso tem imperado. A aula é considerada apenas um falatório e o aprendizado é avaliado por uma bateria de questões de múltipla escolha. A modalidade Educação a distância conquistou uma sociedade atabalhoada, mas de certo modo já treinada pelo ensino apostilado e pelos exames padronizados, no Brasil, ao menos desde os anos 1970.
A nova medicina, que se faz por plataforma virtual, pode vingar, principalmente se quando ela estiver sendo feita, ainda, entre corpos, o corpo do médico fique equivalente ao seu corpo do outro lado da tela. Aliás, talvez esta seja a maior propaganda da nova medicina. Com o tempo, a Inteligência artificial estará apta a dar as respostas às perguntas dos pacientes.
O Big Data dará aos processos algoritmos tudo que eles precisam para simular uma conversa entre médico e paciente. Logo haverá Inteligência artificial dos dois lados: pacientes robôs que irão treinar médicos. Pacientes robôs que irão treinar médicos robôs. As escolas de medicina irão se modificar nesse sentido.
Karl Marx tinha um gosto especial por citações literárias. Vivendo entre nós, ele poderia dizer que agora nossa sociedade passou a Molière o médico imaginário, uma boa companhia para o doente imaginário.
A tecnologia não anda pelas próprias pernas. A tecnologia que é fruto da ciência moderna nasceu do capitalismo e se desenvolveu segundo os objetivos do capital. Onde Karl Marx dizia que o modo capitalista só se dava de maneira limitada, é agora um lugar como outro qualquer, semelhante aos lugares em que o modo de capitalista de produção entrou mais cedo.
Os processos que se viam como longe de ganharem a forma mercadoria, são agora abarcados pelas transformações exigidas pelo capital, sem que exista força que sirva de barreira, a não ser os próprios conceitos. O conceito que sustentava que o paciente não queria o moleque de recados do médico é a única salvação da medicina.
Todavia, a questão é que nossa sociedade, talvez exatamente pelo modo como o capitalismo se desenvolveu, tem se recusado a ter apreço por conceitos. Dizem que os filósofos seriam os melhores guardadores de conceitos, por serem formados com o objetivo de criá-los.
Os filósofos poderiam atuar junto com os melhores médicos no sentido de manterem o conceito de consulta como ele se desenvolveu até aqui, ou filósofos e médicos serão levados de roldão para uma época em que o mais se verá por aí serão moleques de recados de médicos? Moleques algoritmizados, claro.
*Paulo Ghiraldelli é filósofo, youtuber e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial). [https://amzn.to/3HppANH]
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