Notas sobre a guerra na Ucrânia

Imagem: Elyeser Szturm
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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

Considerações sobre os efeitos do conflito na Europa, na Rússia, nos EUA e na China.

1.

A história da Rússia começa em Kiev por volta de 800 d.C. e nestes longos séculos o território atual da Ucrânia pertenceu à Rússia, e depois à Polônia, à Lituânia, à Áustria e finalmente, de novo à Rússia e à URSS no século XX. A Ucrânia só se transforma numa República por obra da Revolução Bolchevique de 1917, e vira um estado nacional autônomo em 1991, como parte da “punição” imposta à Rússia depois da derrota soviética na Guerra Fria.

Neste momento os russos estão questionando a expansão da OTAN sobre a Ucrânia, mas sobretudo estão se propondo a modificar os termos deste “acordo de paz” que lhe foi imposto na década de 1990. Deste ponto de vista, da história de larga duração dos povos se poderia até dizer que o território ucraniano tem uma relação mais longa e mais estreita com a Rússia de Ivan III e IV, e com o Império dos Romanoff, do que a relação de Taiwan com a China continental que só se estreitou depois do Século XVII.

Mesmo assim, não creio que o objetivo atual da Rússia seja anexar a Ucrânia, nem muito menos expandir-se para além do seu território atual. Não há dúvida, porém, que a Rússia está se propondo agora, pela via das armas, fazer o que havia proposto pela via diplomática: neutralizar militarmente a Ucrânia, e reverter parte de suas perdas impostas pela derrota do final do século passado.

2.

Depois que uma guerra começa é muito difícil prever até onde irá e quando terminará a menos que exista um perdedor claro. Neste caso dependerá muito do objetivo imediato e da velocidade da operação militar russa. No momento parece pouco provável uma guerra mundial envolvendo as grandes potências do sistema, uma espécie de terceira guerra mundial. Os países europeus e a própria Otan não tem capacidade militar suficiente para enfrentar a Rússia. Os EUA saíram muito divididos e fragilizados – interna e externamente – de sua recente humilhação militar no Afeganistão, e da política de suas “intervenções militares” com o objetivo de mudar os governos ou regimes da Líbia, do Iraque, da Síria, do Iêmen, e do próprio Afeganistão. Para não falar da “insuficiência” de suas sanções econômicas contra o Irã, a China e a própria Rússia.

3.

Os europeus temem a superioridade militar dos russos com relação a todos seus exércitos nacionais. De um ponto de vista estritamente realista os europeus sabem que são hoje um protetorado atômico dos Estados Unidos. No caso da Alemanha, trata-se de um país ainda literalmente ocupado por tropas e armamentos americanos. Além disso, os europeus têm uma dependência energética muito grande do petróleo e do gás da Rússia, que é a fonte de mais de 40% do gás consumido na Europa. Apesar das declarações ribombantes de alguns líderes europeus, em particular os alemães, a Europa não tem como substituir a energia russa no curto nem no médio prazo.

Se os europeus forem obrigados pelos norte-americanos a cortar seus “laços energéticos” com a Rússia, terão que enfrentar de imediato racionamento, inflação, perda de competitividade e muito provavelmente revoltas sociais de uma população que já foi atingida pesadamente pelos efeitos da pandemia do coronavírus. A Rússia deverá responder às sanções das potências ocidentais e quem será atingido de forma mais imediata serão os europeus, caso a Rússia suspenda, por exemplo, exportação de alimentos ou de minérios atingindo a população e as empresas europeias, para não falar da capacidade muito superior dos russos fazerem ciberataques às empresas e instituições governamentais europeias, se por acaso a Rússia decidir responder às sanções econômicas e financeiras que estão sendo anunciadas sem levar em conta a resposta que receberão dos russos. É um quadro muito complicado e indefinido para todos, mas com certeza o lado mais frágil é o dos europeus, no médio prazo.

4.

O historiador e filósofo alemão, Oswald Spengler (1880-1936) anunciou o “declínio do Ocidente” logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, e vários outros autores bateram nesta mesma tecla através do século XX, incluindo os autores que discutiram a “crise da hegemonia americana” nas décadas de 70 e 80 do século passado. Estes processos históricos, entretanto, são lentos e passam por caminhos muito sinuosos. Às vezes avançam, às vezes recuam.

Neste caso houve uma aceleração do tempo históricos nas duas últimas décadas, e, em particular, desde o momento em que a Rússia voltou à condição de segunda maior potência militar do mundo, enquanto a China decidiu acelerar a modernização de sua marinha e de sua capacidade balística, além de dar início ao seu grande projeto de construção e incorporação de mais de 60 países ao redor do mundo, no programa Belt and Road.

Caso se queira simplificar este processo mais recente, poderíamos dizer que a grande inflexão aconteceu no momento em que a Rússia interveio na Guerra da Geórgia, em 2008, dando um “basta” à expansão da OTAN, e depois interveio na Guerra da Síria, em 2015, por sua própria conta e seguindo seu próprio comando. Essas ações, de pleno sucesso militar, deixaram claro que surgia no mundo outra potência com capacidade de arbitrar, sancionar e punir por sua própria conta, mesmo que fosse – como neste caso – em nome de valores e objetivos buscados também pelas “potências ocidentais’, como era derrotar o chamado “Estado Islâmico”.

Esta inflexão acelerou ainda mais no momento em que a China de Xi Jinping colocou sobre a mesa seus objetivos estratégicos para as próximas décadas, e ao mesmo tempo chamou o Ocidente a respeitar o fato de que agora existem múltiplas culturas e civilizações dentro do mesmo sistema interestatal. A “declaração” da Rússia e da China, de 7 de fevereiro de 2022, consagra esta convergência e anuncia o fim do poder e da ética mundial unipolar imposta pelo Ocidente nos últimos 300 anos da história do sistema mundial. Uma coisa que chama a atenção nesta “carta aos povos do mundo” da Rússia e da China, é a defesa do que eles denominam de valores da liberdade, da igualdade, da paz e da democracia, respeitando-se a visão de cada povo com relação a cada uma destes “valores” que eles também apresentam como universais.

*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Rodrigo Martins e publicada no site da revista Carta capital [https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/os-europeus-temem-a-superioridade-militar-dos-russos-e-uma-crise-energetica/].

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