O bolsonarismo e suas apostas

Imagem: Zachary DeBottis
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Por ANTÔNIO DAVID*

As movimentações da família Bolsonaro e seus apoiadores obedecem não a uma estratégia jurídica, mas a duas estratégias políticas

1.

“Dobrar a aposta”. A expressão vem sendo utilizada nas polêmicas e embates mais recentes envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seus filhos e alguns de seus apoiadores. Em entrevista a um canal estadunidense no último dia 18 de julho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) acusou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, de “dobrar a aposta”, e veículos de imprensa têm replicado a expressão, só que a atribuindo à família Bolsonaro.

A expressão é certeira: de fato, o que os principais atores dessa trama estão fazendo é apostar, e se tem algo que neste momento merece ser levado em consideração é que o horizonte de expectativas de quem “aposta” é, por definição, incerto. Efetivamente, os embates estão acontecendo e ninguém, nem mesmo seus principais protagonistas, sabe o que vai acontecer.

Vendo-se em apuros, na iminência de uma condenação e da prisão do líder da família, a estratégia dos Bolsonaro foi ir para o ataque – o que, no caso, não é o mesmo que sair da defensiva, afinal, nos último dias o senador Flávio Bolsonaro (PL) passou vergonha em rede nacional, em mais de uma ocasião, ao tentar justificar o injustificável, a saber, a oportuna intervenção de Donald Trump, este mais preocupado com os interesses corporativos das Big Techs do que com o destino do pai do senador, ainda que as coisas estejam ligadas: se o bolsonarismo obtiver uma grande vitória parlamentar em 2026 e se um (ou uma) bolsonarista voltar à presidência, melhora o cenário para as Big Techs.

Não há dúvida de que Jair Bolsonaro será condenado e preso. E tudo leva a crer que o mesmo destino possa estar reservado a Eduardo Bolsonaro, que nos últimos dias tem agraciado os brasileiros ensinando a todos a arte de produzir provas contra si mesmo. Mas nada disso deve nos levar a perder de vista que as movimentações da família Bolsonaro e seus apoiadores obedecem não a uma estratégia jurídica, mas a duas estratégias políticas.

2.

Uma estratégia, eleitoral e parlamentar, tem como horizonte as eleições de 2026, como Flávio Bolsonaro deixou bastante claro na entrevista que deu à Folha de São Paulo em 14 de junho. Afora os objetivos óbvios do bloco eleitoral bolsonarista – eleger o máximo de parlamentares e governadores –, o objetivo maior é, de um lado, eleger um (ou uma) presidente que coloque no centro da campanha a anistia ou o indulto ao ex-presidente, mas também a seus corréus e aos condenados do 8 de Janeiro, e, de outro, fazer uma maioria qualificada no Senado, suficiente para afastar ministros do STF via processo de impeachment.

O plano pode tanto dar certo como dar errado. Se der certo, o STF declarará ilegal indultos que foram objeto de promessa de campanha? Sobretudo, declarará ilegal o impeachment de ministros da própria corte?

A outra estratégia, da qual a primeira depende e, por isso, a principal, ancorada na reprodução e circulação de afetos políticos, tem em mira a radicalização social e a mobilização de massas. Aqui, a aposta leva em conta o que as pesquisas de opinião têm uma atrás da outra mostrado: uma extraordinária resiliência do bolsonarismo (forma assumida pelo antipetismo nos últimos anos), que, apesar de não majoritário, segue sendo imenso, razoavelmente coeso e bastante engajado.

Dentre os muitos dados que as pesquisas têm produzido, um é especialmente revelador: pela primeira vez na série histórica, um partido político que não o Partido dos Trabalhadores (PT) apresenta pontuação significativa no quesito preferência partidária. Historicamente, a maioria dos eleitores declara não ter partido de preferência, mas o PT sempre gozou de uma pontuação considerável, aparecendo geralmente com mais de 20%, mesmo em seus piores momentos, ao passo que outros partidos raramente ultrapassaram a marca de 2% ou 3%.

Isso mudou nos últimos anos. Em pesquisa realizada em junho de 2025, a amostra a que o Datafolha chegou revelou que, enquanto 23% dos entrevistados declararam preferir o PT, nada menos que 11% declararam preferir o PL, percentual do qual o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) sequer chegou perto nas duas décadas de polarização com o PT. Parece pouco, mas não é.

É verdade que quanto maior a renda e a escolaridade, maior a preferência pelo PL e menor pelo PT, e vice-versa, o que significa que o percentual dos que preferem o PL ultrapassa 11% entre os mais escolarizados e com maior renda: 14% entre os que têm ensino superior, 16% entre os que ganham entre 5 e 10 salários mínimos, e substantivos 23% entre os que ganham acima de 10 salários mínimos. (Para o PT, os dados são, respectivamente, 18%, 19% e 13%). Apesar de numericamente minoritários, esses setores têm peso político como “formadores de opinião”.

A estratégia de radicalização e mobilização aberta pelo bolsonarismo na surpreendente aliança tática com Donald Trump funcionará? Não sabemos. Diferentes cenários estão abertos. Mas sabemos que, em junho deste ano, em um momento de grande exposição midiática da Suprema Corte, pesquisa Datafolha revelou que 58% dos entrevistados dizem ter vergonha dos ministros do STF. O clã Bolsonaro deve ter levado em conta esse dado e o fato de a vergonha predominar a despeito das abordagens claramente favoráveis à atuação do STF pelos principais veículos de imprensa no país.

É evidente que as duas estratégias são combinadas, mas não se pode perder de vista que é muito mais do sucesso da estratégia de mobilização que depende o sucesso da estratégia eleitoral e parlamentar do que o inverso. Daí ser prematuro dar como certo que o tiro saiu pela culatra, pois essa conclusão superestima a atuação das instituições e subestima o papel da mobilização e do engajamento, e a aposta dos Bolsonaro é que, neste momento, mobilização e engajamento rimam com radicalização. Quem pode hoje garantir que não?

3.

Se é verdade que historicamente a maioria dos eleitores quer mudanças dentro da ordem, e por isso rejeita a radicalização, é igualmente verdade que a eleição de 2018 foi a primeira e única desde 1989 na qual o candidato vencedor não obteve a maioria dos votos entre eleitores situados na faixa de renda familiar até 2 salários mínimos, que votaram majoritariamente em Fernando Haddad (PT) – Jair Bolsonaro venceu em todas as demais faixas de renda, segundo pesquisa Datafolha realizada na véspera do segundo turno.

No novo realinhamento eleitoral de 2018, foram os eleitores situados na faixa de renda entre 2 e 5 salários que deram a vitória a Jair Bolsonaro, o que não deveria surpreender, afinal, desde as eleições de 2006 é esse grande, complexo e oscilante segmento que tem sido o fiel da balança, o setor no qual há real disputa. Não há dúvida de que o plano de Jair e seus filhos é repetir o feito.

Se, ao fim e ao cabo, nada der certo, outra estratégia será desenhada – ou talvez já tenha sido, como o próprio Flávio Bolsonaro fez questão de deixar claro na referida entrevista, ainda que a intenção de “jogar fora das quatro linhas” soe mais como um blefe do que como uma promessa consequente.

Quando, em duas reuniões em de dezembro de 2022, ainda como presidente, seu pai convocou o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças Armadas para discutir a possibilidade de “fazer algo dentro das quatro linhas”, é óbvio que o propósito real das reuniões não era discutir o conteúdo de minuta alguma – se assim fosse, os ministros da Justiça, da Casa Civil e da AGU deveriam estar presentes. Bolsonaro queria sentir, dos comandantes das três Forças, a inclinação e a disposição de cada um para um golpe.

A discussão em torno do instrumento legal foi um mero pretexto para justificar, perante os três comandantes, as reuniões. O que mais interessa aqui é o fato de o então presidente não ter sentido confiança em convocar as reuniões com os chefes militares para, sem pretextos, sem subterfúgios, sem firulas, colocar todas as cartas na mesa e ouvir dos mesmos se eles estariam dentro ou não. A necessidade de um pretexto, de uma aparência de legalidade, é reveladora de que Jair Bolsonaro não tinha controle sobre as Forças Armadas, para as quais a Constituição pesa.

4.

Como em 2022, nada por ora indica que os oficiais de mais alta patente se engajarão em uma aventura de golpe caso o plano agora posto em prática venha a fracassar. Mas o que acontecerá se o plano der certo e, havendo uma escalada de tensões e conflitos daqui até as eleições de 2026 e nos meses seguintes, tiver lugar um embate institucional entre, de um lado, um Senado dominado por bolsonaristas e a presidência tendo à frente um (ou uma) bolsonarista, e, de outro, STF? Não sabemos.

Mas podemos hoje saber que esse cenário só se concretizará se o bolsonarismo sair vitorioso das eleições, e que toda a movimentação que os Bolsonaro e seus aliados estão fazendo agora tem em vista a possibilidade da vitória eleitoral em 2026, em um quadro de radicalização social aguda.

As apostas estão sendo feitas, e ninguém sabe o que vai acontecer. Mas duas coisas são certas: as tensões sociais e conflitos políticos que vêm se avolumando no Brasil nas últimas décadas, do qual o bolsonarismo representa um capítulo – decisivo, é verdade, mas apenas um capítulo –, têm muito mais a ver com modos de vida e com condições materiais de existência (inclusive de trabalho) do que com meros discursos – essa é a primeira.

Em última instância, são tensões e conflitos que ecoam um Brasil em rápida transformação, no qual as inegáveis conquistas de direitos e os ganhos em termos de igualdade social que tiveram lugar nas três últimas décadas, ainda que de maneira não linear, vieram acompanhados do reforço de estruturas materiais e imateriais de privilégio e de mecanismos de sujeição, exploração e punição.

Esses são movimentos lentos e subterrâneos, mas consistentes, que as “pessoas comuns” sentem em suas vidas, percebendo-os e interpretando-os com os filtros que têm – filtros esses definidos não só por mídias sociais, mas também, e provavelmente sobretudo, por suas experiências cotidianas, experiências essas associadas a condições de vida e de trabalho.

A segunda é óbvia, mas lembrar do óbvio nem sempre é supérfluo: em 2026 haverá eleições e, como acontece sempre que há eleições, contarão muito candidaturas, partidos, campanhas eleitorais, tribunais eleitorais, além de diversos outros fatores, mas, no fim das contas, a despeito de tudo isso, quem definirá a eleição – não é demais lembrar – será o eleitor na boca da urna.

E, conforme o padrão, o fiel da balança, que decidirá o pleito de 2026, serão as pessoas comuns situadas na faixa de renda familiar entre 2 e 5 salários mínimos. Na vida dessas pessoas, ecoam os ritmos da história.

*Antônio David é professor do Departamento de História da Unicamp.


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