Democracia sob fiança

Imagem: David Dibert
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANTÔNIO DAVID*

Por baixo da polarização eleitoral, relações de hegemonia vão sendo construídas; desconhecê-las é uma resposta fora do lugar

Os acontecimentos das últimas semanas deram a direção da conjuntura político-institucional do país, ainda que seu sentido não seja óbvio. Esse sentido tem sido visto como a polarização social e política que tem lugar no contexto das eleições que se aproximam. Nada há de novo aqui: durante seu mandato como presidente da República, Bolsonaro nunca saiu de campanha, razão pela qual a polarização manteve-se acesa desde que tomou posse.

Mas um horizonte alternativo a esse, não tão visível, mas não menos real, foi sendo aberto nos últimos três anos. Dois eventos recentes deram-lhe corpo: o aclamado lançamento da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” e a disputada posse de Alexandre de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O primeiro evento tem sido encarado como uma demonstração de força de setores progressistas da sociedade brasileira, no que se incluem os principais veículos de imprensa, com protagonismo da esquerda social – de que é emblemática a intervenção, na ocasião, da presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto; o segundo, por seu turno, tem sido analisado em termos de uma contundente afirmação da força das instituições da República, com evidente destaque para o Poder Judiciário. Dessa ótica, ambos os acontecimentos teriam performado a capacidade de sociedade e instituições oferecerem resistência e barrarem os abusos do atual chefe do Poder Executivo, segundo o script dos freios e contrapesos.

Sem tirar a razão dessas leituras, esses dois acontecimentos devem ser inseridos no contexto mais amplo da conjuntura brasileira e global, marcados pelo surgimento (ou extraordinário reforço) do que o teórico estadunidense Bernard Harcourt chama de “estado de emergência”, ou seja, um novo modo de governar pelo qual os governos “fazem todo o possível para legalizar suas medidas de contrainsurgência e colocá-las solidamente dentro do império da lei – por meio de consultas intermináveis a advogados do governo, argumentos legais hipertécnicos e longos memorandos legais”.

Ainda que se possa questionar o autor sobre o que há de novo nesse modo de governar quando a perspectiva que se adota é a de países “periféricos”, a contribuição não perde relevância, haja vista a tendência global de recrudescimento do poder de Estado e de sua capacidade de sujeição e das inovações em termos de estratégias e técnicas de dominação de Estados contraparte de seus cidadãos.

No Brasil, o “estado de emergência” vem sendo aperfeiçoado pelos três poderes nas esferas municipal, estadual e federal há mais tempo do que Harcourt supõe, sendo as polícias apenas uma peça da engrenagem. Mas, desde o fim da Ditadura civil-militar, não houve quem liderasse a montagem da engrenagem, isso a despeito da ambição ditatorial de Bolsonaro. A chegada de Alexandre de Moraes ao Supremo Tribunal Federal (STF) em um contexto de grande evidência e politização do Poder Judiciário, este assanhado pela legitimidade adquirida junto à classe média, e de uma atuação de Bolsonaro marcada por aquilo que o jurista Oscar Vilhena Vieira chama de “método do infralegalismo autoritário”, deu a Moraes a oportunidade de apresentar-se como o homem capaz de encarnar o estado de emergência. É o que ele tem feito. O perfil e o currículo para tanto, já ostentava.

Sua atuação como magistrado, em particular a partir da abertura do inquérito das fake news em 2019, excede em muito o papel reservado a um juiz da suprema corte. Desde então, o inquérito é o carro chefe da presença do STF na mídia. Não há dúvida de que, através de uma calculada performance jurídico-policial-política, e com o inestimável auxílio da mídia (e de Bolsonaro), Moraes tornou-se um ator de peso e relevo no cenário político brasileiro.

Não é novo que ministros do STF ocupem esse lugar. Há pouco mais de uma década, Gilmar Mendes ensaiou ser o porta-voz da direita brasileira ao criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Mas o espetáculo da posse na presidência do TSE, como experiência nova em um mundo onde no centro da política está o espetáculo, indica que Moraes converteu-se em algo mais do que um ator dentre vários atores no quadro da “República”. Sua estratégia tem lhe aberto o caminho para que seu nome seja visto, cada vez mais, como alternativa de poder. Em um país no qual a política e em particular as eleições são altamente personalistas, não é pouco.

A despeito de Bolsonaro e Moraes serem inimigos, não é certo que Moraes não possa ocupar o espaço e, em qualquer dos cenários, organizar a direita social (e parte do bolsonarismo). Não se trata aqui de profecia, mas de uma possibilidade, que vai se tornando cada vez mais concreta e real. Seja no cenário de derrota eleitoral de Bolsonaro, seja no cenário de o atual presidente vencer as eleições, a possibilidade existe. O que muda é a tática exigida.

A posse de Moraes como presidente do TSE joga luz sobre o lançamento da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”. Como em outras ocasiões da história do Brasil, um acontecimento que poderia acumular para a esquerda – e de certa maneira, acumulou – foi, ao menos em parte, sequestrado pela direita. Não é apenas irônico que muitos dos que se somaram no apoio à Carta e ao “Estado democrático de direito” tenham apoiado ou silenciado sobre o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 – o qual, alçando Michel Temer à presidência da República, alçou Alexandre de Moraes ao Ministério da Justiça e, em seguida, ao Supremo Tribunal Federal. É sobretudo sintomático. O mais relevante é o fato de este episódio ter mostrado que parte expressiva da direita social anti-Bolsonaro está unida e organizada.

Como os acontecimentos de 2013, o contexto do lançamento da Carta foi ambíguo. Mas a presença de determinados atores e a circulação de determinados discursos no contexto do lançamento davam o tom de uma disputa no interior da própria direita. No momento em que a Carta era lida no Largo São Francisco, a Folha de São Paulo noticiava: “Ao pela democracia une sociedade com falas duras e contra golpismo de Bolsonaro”, e em seu editorial: “Atos pluralistas mostram que democracia se tornou a pele cívica dos brasileiros”. Em 2020 – portanto, quatro anos depois do golpe de 2016, para o qual dera assertivo apoio –, o jornal mudou seu lema, de “Um jornal a serviço do Brasil” para “Um jornal a serviço da democracia”.

A semântica nacionalista da “sociedade unida” empregada em 2022 soa como um ato falho. No fundo, o recado que uma parte dos manifestantes, apresentando-se como fiadores da democracia, quis dar e deu aos militares foi: “fiquem onde estão, não caiam em uma aventura; se for necessário um golpe, 2016 ofereceu o modelo”. Nesse sentido, as analogias que aberta e reiteradamente se fez entre este episódio e outro, de 1977, são mais do que pertinentes.

O ambiente que se criou em torno do lançamento da Carta e da posse de Moraes no TSE são, enfim, sinais de um movimento de reorganização da direita. A novidade é que, às voltas com a combinação entre uma abstrata afirmação da democracia e do Estado democrático de direito, de um lado, e a necessidade de recrudescer as práticas estatais de sujeição e criminalização, de outro, a direita tem hoje um homem em uma posição privilegiada para liderar esse processo, unificando em torno de si o que Florestan Fernandes chamava de Estado autocrático.

Por tudo isso, há que se examinar com lupa a produção teórica e a atuação de Alexandre de Moraes, antes do STF e como ministro. É o caso de examinar, por exemplo, seu voto contrário à proibição de operações policiais em favelas no Rio de Janeiro durante a pandemia, quando, alegadamente “em defesa da sociedade”, sustentou que a proibição representava um risco para “toda a sociedade do Rio de Janeiro”. Na ocasião, Moraes defendeu a “harmonia”, “coesão” e “lealdade” entre os poderes do Estado, contra o que ele vem chamando de “guerrilhas institucionais”. A nomenclatura, sugestiva, designa o que outros teóricos consideram ser apenas e tão somente o exercício de “freios e contrapesos”.

As operações policiais não só continuaram após a proibição, em 2020[i], como se intensificaram, resultando em dezenas de mortes, em uma clara e evidente afronta da polícia do Rio de Janeiro à suprema corte, esta provavelmente vista como desleal por aqueles que mandam na polícia. Por baixo da polarização eleitoral, relações de hegemonia vão sendo construídas. E como já foi dito, desconhecê-las é uma resposta fora do lugar.

*Antônio David é historiador e professor na Escola de Comunicação e Artes da USP.

 

Nota


[i]Dos 11 ministros do STF, 9 votaram pela concessão da liminar que pedia a proibição, e 2 votaram contra: Luiz Fux e Alexandre de Moraes.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Priscila Figueiredo Mariarosaria Fabris Celso Frederico Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Musse Luiz Marques Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay Michael Roberts Heraldo Campos Carlos Tautz Francisco Pereira de Farias Valerio Arcary Vinício Carrilho Martinez Paulo Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Henri Acselrad Henry Burnett Manuel Domingos Neto Renato Dagnino Liszt Vieira Antonino Infranca Sergio Amadeu da Silveira Tadeu Valadares João Carlos Salles Marcos Aurélio da Silva Antônio Sales Rios Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. Afrânio Catani Eduardo Borges Marcus Ianoni Gabriel Cohn Leonardo Avritzer Thomas Piketty José Geraldo Couto Eugênio Bucci Gilberto Lopes Daniel Brazil Mário Maestri Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Jorge Luiz Souto Maior Flávio Aguiar José Dirceu Chico Alencar Paulo Capel Narvai José Raimundo Trindade José Costa Júnior João Carlos Loebens Bento Prado Jr. Leonardo Boff Slavoj Žižek Érico Andrade Matheus Silveira de Souza Lorenzo Vitral Yuri Martins-Fontes Fábio Konder Comparato Michel Goulart da Silva Marcelo Guimarães Lima Antonio Martins Alexandre de Lima Castro Tranjan Rodrigo de Faria Ricardo Antunes João Paulo Ayub Fonseca Eliziário Andrade Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Alysson Leandro Mascaro Michael Löwy Valerio Arcary Luiz Bernardo Pericás Eugênio Trivinho Luís Fernando Vitagliano Atilio A. Boron Flávio R. Kothe Luiz Renato Martins Elias Jabbour Sandra Bitencourt Anselm Jappe Julian Rodrigues Marcos Silva Tarso Genro André Singer Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Módolo Jorge Branco Francisco Fernandes Ladeira Luiz Roberto Alves Armando Boito Jean Marc Von Der Weid Maria Rita Kehl Leda Maria Paulani Manchetômetro Denilson Cordeiro Berenice Bento Remy José Fontana Luiz Eduardo Soares Salem Nasser José Luís Fiori Everaldo de Oliveira Andrade Luciano Nascimento Ricardo Fabbrini Gilberto Maringoni Ari Marcelo Solon Lucas Fiaschetti Estevez Bruno Machado Luiz Werneck Vianna Fernando Nogueira da Costa José Micaelson Lacerda Morais Claudio Katz Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Pierre Chauvin Dennis Oliveira Caio Bugiato Carla Teixeira Chico Whitaker Tales Ab'Sáber Bernardo Ricupero Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Afonso da Silva João Lanari Bo Paulo Fernandes Silveira Leonardo Sacramento Otaviano Helene Marilena Chauí Ladislau Dowbor Annateresa Fabris Rafael R. Ioris João Feres Júnior Benicio Viero Schmidt José Machado Moita Neto Ronald Rocha Rubens Pinto Lyra Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Lincoln Secco Celso Favaretto Alexandre Aragão de Albuquerque Alexandre de Freitas Barbosa Kátia Gerab Baggio Gerson Almeida Vladimir Safatle Fernão Pessoa Ramos João Adolfo Hansen Samuel Kilsztajn Andrés del Río Boaventura de Sousa Santos André Márcio Neves Soares Eleutério F. S. Prado Ronald León Núñez Dênis de Moraes Andrew Korybko Walnice Nogueira Galvão Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Costa Milton Pinheiro Igor Felippe Santos Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Sette Whitaker Ferreira Airton Paschoa

NOVAS PUBLICAÇÕES