Por LETÍCIA ROCHA*
Considerações sobre o livro de Emiliano José
1.
Querido Emiliano, fui incitada por você a escrever as minhas impressões sobre O cão morde a noite e, de fato, não poderia deixar de fazê-lo. A relevância da matéria ali tratada e a pungência do seu relato me convocaram à tomada de posição para testemunhar, na posição de leitora, os efeitos de horror e de liberdade que emanam do seu texto.
Li o seu livro atravessada por uma questão: o que teria possibilitado que uma situação-limite como a tortura ficasse “circunscrita”, “delimitada”, de modo que você pudesse ter seguido a sua vida reservando um lugar relevante a essa vivência – haja vista os diversos livros escritos e publicados –, prosseguir na luta política, ao tempo de viver outras diversas e significativas experiências.
Pareceu-me que a experiência da tortura e da prisão não havia adquirido um caráter avassalador, traumático, para você. Refiro-me ao trauma num determinado viés da acepção freudiana, ou seja, um acontecimento que rompe as barreiras de proteção do aparelho psíquico e produz uma repetição compulsiva do acontecimento.
Você destaca na “Nota do Autor” o efeito da prisão: “muitas passagens pós-prisão envolvendo situações políticas recheadas de riscos pequenos fossem era são liminarmente riscadas da memória, como se me obrigasse a apagá-las face ao risco de uma nova prisão”. Ou seja, os efeitos citados referem ao apagamento de conteúdos específicos que poderiam ou podem (chamou a atenção os tempos dos verbos sem o conectivo) lhe expor frente ao risco de nova prisão, efeito delimitado.
No decorrer da leitura, passei em revista os conceitos de trauma e sintoma do próprio Freud e ascontribuições do psicanalista Jaques Lacan. Lacan dará uma dimensão mais estrutural a tais conceitos, atando-os à própria estruturação do sujeito do inconsciente, sujeito estruturado no campo da linguagem.
O trauma diz respeito a algo que escapa à simbolização, rompe o campo dos sentidos, não possui imagem, e retorna sempre, no mesmo lugar, um excesso. Está referido aos impasses estruturais do sujeito frente à sexualidade: impossibilidade de representação do que é serhomem e do que é ser mulher; inexistência de uma fórmula que asseguraria a complementaridade entre os sexos; divisão do sujeito nos registros do amor, do desejo e do gozo. O sintoma seria a forma única que cada sujeito encontra para lidar com esse excesso, sustentando desse modo a sua existência.
2.
De saída, você avisa ao leitor ser um sujeito atravessado pelo inconsciente, um sujeito dividido. Portanto, ao tempo que apaga lembranças, quer escrevê-las “para que não esqueçamos jamais dos horrores da ditadura”. Outros desafios se insinuam. Como dizer a experiência da tortura, situação-limite, puro horror, limiar da morte?
Não será possível falar dessa experiência sem situá-la na história de vida. Uma autobiografia traz desconfiança, você assim o diz na sua dedicatória a mim, falar de si mesmo é deparar-se com nevoeiros, territórios insondáveis e, muitas vezes, o que é encontrado são fragmentos, retalhos.
Não recuará. Escolhe, no exercício da escrita, suportar um caminho errático, de desvios não calculados, impostos, “outra mão a lhe guiar”. Apresentará ao leitor os escapes, as fragmentações, os atalhos, as montagens, as construções e costuras possíveis. “Testemunhar, por incompleto, torto, embaralhado que seja”.
O título do livro O cão morde a noite, chamou atenção. O cão morde à noite? Teria faltado uma crase? A primeira impressão é que faria menção à violência da ditadura, considerados os seus aspectos sombrios e a sua ausência de luz, que é corroborada pela sua dedicatória para mim: “onde o cão me mordeu, e a centenas de companheiros e companheiras, no Brasil e em outros países”. Entretanto, no corpo do livro, surge a referência a outra mordida, em outra noite. Uma fantasia infantil que provocou terror em você.
“Uma imagem terrível assoma à mente, e não há jeito de responder sobre a realidade dela nem às circunstâncias: um cão grande, esbelto, luzidio, negro, morde violentamente o rosto de menino que resta desfigurado, e sai correndo na noite escura. Aquele menino, que deveria ser um pouco mais novo do que eu, atormentava minhas noites, tal qual assombração, tormento, medo. São as noites, as noites de criança”.
A outra referência noturna mencionada no livro foi a noite situada entre o primeiro e o segundo dia da tortura. Foram dois dias de tortura. No primeiro dia, foi brutalmente batido, de modo que o corpo ficou cheio de hematomas, seguiu uma sessão de afogamentos.Logo após, foi posto no pau-de-arara, com choque elétrico no corpo. Já noite, foi jogado em uma cela sem cama, sem colchão, nem sanitário. Não entregou aos torturadores nenhuma informação, era a sua lei, temia não sustentá-la.
Aquela noite foi povoada de devaneios e pesadelos: fugia daquele lugar, escapava, para, de súbito, ser lançado no chão frio da realidade. “O pesadelo tornado realidade pesadelo com suas terríveis faces real, real, real…”
Essas referências me instigaram: qual o estatuto dessas duas referências, estariam articuladas? Na fantasia infantil, um cão arranca um pedaço do corpo de uma criança, que resta desfigurado, e foge na noite escura. Você assiste horrorizado. Na prisão, é você quem está com o corpo desfigurado, pela ação dos torturadores. Estes, sorridentes diante do seu corpo convulsionado. O cão foge na noite escura, você estava ali sem poder fugir. Como essas inversões de posições resultariam na frase do escritor Um cão morde a noite?
3.
Quanto ao terror infantil, uma referência ocorreu-me imediatamente: a metáfora da “libra de carne”, utilizada por Lacan para se referir ao inevitável preço subjetivo pago pelo ser humano para habitar o campo da linguagem e da lei simbólica. A metáfora adveio da peça O mercador de Veneza”, de Shakespeare, onde o personagem Shylock exige como garantia de uma dívida uma libra de carne do corpo do devedor.
Para Jacques Lacan, a dívida do sujeito é simbólica, trata-se da perda de gozo inerente ao ser falante. O sujeito, constituído pela linguagem, é atravessado por ela e, ao habitá-la, fica submetido às suas leis, que impõem limites ao corpo e ao desejo.
No início, o pai. Um comunicado do pai abre a narrativa do livro: “meu filho, nós vamos pra capital, você vai parar de estudar”. Você estava com 13 anos de idade, no quarto ano primário, ajudava o pai nos trabalhos do sítio das cinco às dez da manhã, depois seguia para a escola, quatro quilômetros a pé, sem calçado, pois não os tinha. Apesar das condições adversas era excelente aluno. Sozinho, chorou.
A infância lhe escapou pelas mãos. Infância vivida em sítios e nas periferias de diversas cidades As condições de vidas foram muitos duras, labuta de trabalho extenuante, as marcas no corpo dessa exaustão podem estar presente até hoje, quase fome, ingresso tardio na escola. Aos 14 anos já possuía carteira assinada de office-boy, deixara de estudar e todo o dinheiro recebido era entregue ao pai para ajudar nas despesas.
A família foi composta pelo pai, mãe e cinco irmãos. Emiliano era o mais velho, nasceu em 1946 em Jacareí, São Paulo, pequena distância de idade entre os irmãos. O avô paterno era proprietário de um sítio. O seu pai, no terceiro ano científico escolhe parar de estudar, casa com a sua mãe e passa a trabalhar nessa propriedade onde, quiçá, por um conflito com o irmão, sai dessa propriedade, compra um caminhão e torna-se caminhoneiro. A pobreza se instala na família, até então eram de classe média. Em algum momento, o pai volta a trabalhar em fazendas e, quando você está com treze anos, muda para a capital do Estado de São Paulo. A mãe cuidava dos filhos e do trabalho doméstico e prestava serviços nas casas dos proprietários das terras, quando surgia oportunidade, ou auxiliava nos pequenos negócios abertos pelo marido nas cidades. Os irmãos ajudavam nos trabalhos como podiam.
Há que considerar as idas e vindas do pai. Além de se deslocar, por ser caminheiro, estava frequentemente mudando de cidade e moradia, “não esquentava lugar”, expondo a família a uma vida “de cigano” ou mesmo de“trupe de circo”. Quando possuía 11 anos de idade, o pai os deixou com um familiar. “Papai nos deixou a todos lá, não se sabe com que argumentos. Pegou seu caminhão e sumiu no mundo. Vazou. Tornou-se clandestino”. Voltou após cerca de um ano “sem explicação nenhuma… Um atordoante e ensurdecedor silêncio”.
Quando você estava com dezessete anos, nova ausência do seu pai, agora por dois anos. Dessa feita, porque foi preso por envolvimento com uma adolescente de quatorze anos, “sedução de menor”, era como se dizia à época.
4.
O relato dessas lembranças não é linear, “outra mão a guiar”. As lembranças relativas ao pai estão mencionadas de modo a entremear os seus feitos com as suas “quedas”. Queda é um significante destacado na narrativa. Cito: “As viagens de charrete para Monte Alto eram um de nossos momentos mágicos. Papai sempre no comando, íamos atrás feito reis. Mas elas também evocam medo: charrete toda equipada, papai sobe a escada da farmácia antiga do centro de Monte Alto, bonita que só o diabo, não me leva, e de repente o cavalo dispara, eu sentado no banco da frente, assustado, apavorado, sem ação, que com aquele veículo e aquele cavalo não sabia lidar, por menino que era aos cinco, seis anos”.
“Vinha montado no meu pequeno cavalo e sei lá por conta de que movimento caio e o meu pé fica preso no estribo, e a montaria se assustou e correu, minha cabeça batendo no chão até que o papai o alcançasse e me salvasse”.
“Papai parou de repente. Queria atravessar o córrego. Soltar de um lado a outro. Montado. Economizar caminho. Eu olhando desconfiado daquela tentativa, e preocupado. Mas pai que é pai sabe o que faz. Puxou o cavalo no freio, tocou-lhe a espora na virilha e mergulhou. Mergulhou mesmo. Ele e o cavalo afundados no córrego de muita lama e pouca água. Senti compaixão. Atravessou. Subiu no animal, recuperou o garbo, eu olhando pra ver o que vinha de á, em cima de meu pequeno cavalo”.
“– Salte! – ordenou. Tremi. Gelei. Pensei: se ele no seu cavalo caiu nesse precipício, imagine eu! Será verdade? – perguntei-me. É, o pai sempre me quis homem, muito cedo quis me ensinar a ser homem. Salte! Era um rito de passagem”.
“Puxei o cavalo no freio, coloquei o bicho no ponto, soltei as rédeas e pulei. Fechei os olhos por milésimos de segundos e senti a lama, eu e a minha pequena montaria afundados na água barrenta. Sabia: ia repetir o pai. Quando abri os olhos estava do outro lado, vitorioso e ainda assustado.
Prá que aquilo?_ criança se indaga da utilidade das peças preparadas pelos adultos. A única coisa a me alegrar eram apenas os olhos orgulhosos do pai, reconhecendo o filho homem”.
5.
A fantasia infantil, que provocava terror, é relatada em um contexto de densas referências relativas ao pai. São sete páginas com escrita entrecortada. A prisão do pai é referida em dois ou três parágrafos ao longo do livro, a fantasia aterrorizante é mencionada logo após a menção do processo jurídico contra o pai.
O livro, de 436 páginas, é dividido em 13 capítulos não numerados. Cada capítulo é precedido por uma epígrafe constituída por uma citação do próprio autor, extraída do capítulo que se anuncia, e de trechos dedois outros autores, sendo que o principal deles advém de um texto da sua irmã. Essa irmã é citada em dez epígrafes. Interessa a função dada por você às citações do texto da sua irmã, que lhe fornecem “sustentação às narrativas sobre a família, acrescentando fatos que o meu texto não incorpora, ou incorpora pela palavra dela”.
A sua história de vida até os vinte e dois anos, época da prisão, ocupa somente três capítulos, sendo que as referências sobre a vida familiar seguem na voz da sua irmã nas já mencionadas epígrafes. A sua descrição muda de rumo, passando a ocupar-se da vida prisional. A voz da sua irmã ressoa como pano de fundo, ecoando o enigma da articulação entre as narrativas.
Ao relatar a prisão, você faz uso de um significante que chama a minhaatenção: No nosso léxico,“queda“ era prisão. “Nunca vi termo tão adequado, “queda sem fim”. Outro significante que destaquei foi amante exigente: “A revolução me tomara nos braços, não me soltaria mais, amante exigente”.
Farei recortes de algumas epígrafes:
Capitulo 3. “O sujeito vinha atrás eu corria e olhava sacou da arma e atirou umas duas vezes não sei se três não era bom do ofício estou aqui a contar a história”. Você.
“Em novembro estourou uma bomba em minha cabeça. Lembro de minha mãe dando um tapa na cara da garçonete…..Assim que colocou a moça para fora de nossa casa minha mãe despejou sobre mim que o meu pai era um sem-vergonha e tinha se aproveitado da moça por isso teríamos que mudar da cidade imediatamente. (Hoje, penso que Elza foi notificar a abertura do processo de sedução de menores contra meu pai)”. Sua irmã, Maria Aparecida da Silva Vasconcelos
Capítulo 4. “Quando aquelas garras me tocaram, percebi: a ditadura chegara a mim”. Você.
“Com três filhos bonitos e saudáveis e sem nenhuma preocupação, Maria Aparecida Barbosa da Silva se ocupava em copiar modelos de atrizes de Hollywood e fazer cenas de ciúmes porque meu pai era um homem muito assediado pelas mulheres. Ela gostava de exibir os filhos bonitos e bem vestidos, mas jamais fazia um elogio. Não era de muito chamego, não”. Vasconcelos.
Capítulo 5. “Um joguete nas mãos deles fala filho da puta fala viado o pau cantando pensava: com esse tipo de tortura me matam e eu não falo porra nenhuma”. Você.
“Como administrava a fazenda (e era bom nisso), estava sempre ocupado com o dia a dia, mas não deixava de dar a atenção aos filhos. Claro, enaltecia as qualidades de Emilianinho (filho que lhe herdou o nome), que já montava a cavalo….” Vasconcelos.
6.
É aqui, nessa citação entre parêntese, feita pela irmã, que ficamos sabendo que você tem o mesmo nome que o seu pai. No final do livro encontram-se fotografias com as respectivas descrições de personagens e circunstâncias. Você se refere como Emiliano José e o seu pai é citado como Emiliano José da Silva, presumiu-se que o seu nome de batismo é Emiliano José da Silva Filho.
“Liberdade para Emiliano”, pichação que aparece em diversos muros da cidade de Salvador. A Ação Popular, organização a quem você era filiado, ao saber da sua prisão, resolve denunciá-la, como forma de protegê-lo, pois ficaria mais fácil para a Ditadura fazer desaparecer alguém sem identificação.
A autobiografia, segundo o seu prefaciador, João Carlos Sales, é um “Um livro de nomes. Nomes próprios, apelidos, nomes de coisas e lugares, cidades, recantos; nome de animais, de heróis, de torturadores. O livro dá nome às coisas, às virtudes e às covardias. Nome de autores, nomes e livros. Nomes e codinomes. É como se ele pudesse nos reconstruir cada cena e cada personagem chamando-as pelo nome”.
Após a prisão, formou-se em jornalismo, foi deputado estadual e federal, tornou-se um escritor consagrado, reconhecido como Emiliano José. Na nota técnica da Edufa, a editora de O cão morde a noite, encontra-se registrado como Emiliano José.
Possuía um sentido aguçado para situações de risco, esquivava. Na ocasião em que foi preso resistiu bravamente. A prisão significou um giro brutal na sua vida, conseqüência do contexto da luta política à época. As manifestações de primeiro de maio de 1968, em São Paulo, marcaram o seu batismo nas ruas, na luta política. Os estudantes brasileiros fizeram grandes movimentações em março, quando do assassinato de Edson Luís. O maio de 68, francês, ainda a advir. O contexto histórico, revoluções: Revolução Vietnamita, Revolução Cubana, Revolução Chinesa, maoísmo, leninismo….
Os desdobramentos dessas lutas, o destino desses militantes foi configurado pelas singularidades de continentes, de países e de sujeitos. Na França a repressão foi violenta por parte da polícia, porém não há registros de tortura institucionalizada. O que ocorreu na América Latina e no Brasil, este em regime ditatorial.
Enfrentou os torturadores e os representantes da ditadura com “alma e corpo retesados, sentidos aguçados: era a luta, era a guerra”. Luta desigual, “matou-se uma mosca com um martelo-pilão”, como costumava afirmar um dos torturadores.
Da sua narrativa surgem sujeitos nas suas radicais particularidades: há quem foge da prisão e ganha liberdade de forma cinematográfica; há quem, em pânico, se oferece à prisão; há quem tenta suicídio na prisão; há quem se suicida após anos de liberdade; há quem considera felizes os anos vividos na prisão; há quem não delata; há quem abre tudo; há quem vira cachorro (passa para o lado da ditadura).
O cão morde a noite. Você, na condição de escritor, na contramão das distorções e tentativas de silenciamento promovidas pelo Estado brasileiro, faz um testemunho histórico. Toma a palavra, escancara os crimes da ditadura, aponta a sua vilania, a esburaca, “Morde a noite”. Enquanto escritor constrói um nome, Emiliano José, sem sobrenome.
*Letícia Rocha é psicanalista.
Referência

Emiliano José. O cão morde a noite. 2a. edição. Salvador, EDUFBA, 2024, 440 págs. [https://amzn.to/46i5Oxb]
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