O civismo e as utopias públicas

Imagem: Natalia Slastnikova
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Por LUIZ MARQUES*

A primavera democrática que se anuncia exige mais que vitórias conjunturais; é o resgate de um civismo substantivo, que substitua a lógica do consumidor pela do cidadão e restaure as utopias públicas como antídoto ao privatismo que nos define há décadas

O descaso com a coisa pública tem início com o putsch que derruba o governo constitucional de João Goulart e institui o regime de exceção para bloquear a reestruturação dos setores educacional, político, fiscal, urbano e rural. A iniciativa para vencer o atraso e destravar o progresso aproveita os estudos elaborados por técnicos da gestão anterior, ainda sob a presidência de Juscelino Kubitschek.

As “reformas de base” visam a propagar emprego, renda, produção de alimentos, desenvolvimento econômico, maior taxação sobre ganhos de empresas estrangeiras e pagamentos da desapropriação em terras improdutivas com títulos da dívida pública. O movimento confronta os “pequenos” (o povo) e os “grandes” (os ricos), para evocar a formulação maquiaveliana. Com a chancela do afeto majoritário da nação para uma transformação de viés distributivista – entre capitalista e socialista.

À época, Jango tem a aprovação de 70% dos eleitores em uma sondagem feita pela Fecomércio/SP e sonegada aos brasileiros por várias décadas. A pesquisa de opinião vem à luz no momento de uma doação à Unicamp, pelo Ibope, em idos de 2003. Desmente as classes dominantes sobre a suposta fragilidade do governo trabalhista. Frágil era e é a estima das Forças Armadas pela democracia.

O último ato do governante destituído reúne 200 mil manifestantes na Praça da República/RJ, em 13 de março de 1964, quando assina o decreto que desapropria suas próprias terras para estimular a justiça no campo. O evento lança a série de comícios em dez cidades que culminaria no 1° de Maio, Dia do Trabalhador. Denotava a fé nas ruas para quebrar a resistência do Congresso às mudanças. A semelhança daquela revolução democrática com os dias atuais não é uma simples coincidência.

Sob a ditadura crescem os serviços privados, em prejuízo do público a partir de 1970. A Unimed se espalha pelo território nacional com 340 cooperativas de médicos. Em Porto Alegre, observa-se a decadência do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, cobiçado por todas as classes via um exame de admissão. Em São Paulo, a Escola Caetano de Campos, uma referência pedagógica no passado, hoje apresenta níveis baixos de rendimento com muitos problemas de infraestrutura e de manutenção.

Na redemocratização, o descaso resulta da inserção subalterna na globalização do capital. Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso filiam-se à modernização vira-lata com a desindustrialização. O patrimônio de gerações sofre um desmonte. Enclaves homogêneos de educandários, condomínios, academias de ginástica e clubes de tênis privados destroem o sentido do civismo: “a dedicação e a fidelidade ao interesse público; patriotismo”, explica o Dicionário Houaiss. Verdadeiros patriotas celebram o bem comum. Falsos patriotas, ocultos no fetichismo militar, praticam um entreguismo. Nem disfarçam o velho lema, “algumas coisas têm de mudar para que tudo permaneça o mesmo”.

O mal-estar crônico

Michael J. Sandel, em O descontentamento da democracia, desdobra esse raciocínio ao investigar a atividade da guarda privada nos Estados Unidos, “na década 1980 uma das categorias ocupacionais de rápida expansão”. Para arrematar com um paroxismo: “a demanda dos serviços em shopping centers, aeroportos, lojas de varejos e projetos residenciais é tamanha que vigilantes ultrapassam o número de policiais no país, em 1990”. A vigilância particular excede o controle público do crime.

Em vez de formar cidadãos para o autogoverno com experiências inspiradas na ética comunitária de compartilhamento, qual o Orçamento Participativo (OP), políticas impúblicas naturalizam pagar por prerrogativas confundidas com serviços. Já no código postal (CEP) decifra-se o que comem, bebem e pensam os segregados na periferia cuja vontade geral é sempre secundarizada pela plutocracia. Os direitos restringem-se às castas, ao passo que os deveres do Leviatã estatal caem num ostracismo.

Os valores democráticos cedem aos privilégios individuais. O Estado recusa o caráter republicano, converte-se em um organismo adestrado na lógica da financeirização de funções e monetização de logradouros. O privatismo (saúde, educação, segurança) se alinha à austeridade e aos ajustes fiscais. A “crise” torna-se o mantra do discurso do homo economicus para o mal-estar crônico no calvário. Há cinquenta anos, crise é a palavra mais usada para descrever o mundo – petróleo, inflação, FMI.

A pátria vira o Free Shop de cidadãos que mimetizam consumidores indiferentes à proveniência dos produtos e ao destino do dinheiro das compras. Municípios são alvos do Airbnb especulativo para os aluguéis de curta duração, que aumentam os custos de morar para jovens nativos. Gaiolas douradas impactam os empregos no circuito produtivo da hotelaria, além de congelar os salários. Barcelona proíbe a prática predatória, que sequestra das habitações a dimensão social da vida em comunidade.

A concepção consumista de liberdade e cidadania exprime o ethos da mercadoria, no capitalismo. A gramática empresarial e a sintaxe do lucro fazem as leis na moderna selva de pedra. O desafio é: (a) suplantar a narrativa financista que justifica o rentismo parasitário; (b) regulamentar os monopólios tecnológicos indutores de políticas que diluem, no consumo, o espírito cívico e o interesse público.

Tempo de primavera

“A sociedade não existe, só o que existe são os indivíduos e as famílias”, lacra Margaret Thatcher ao apagar as incumbências sociais do Estado. “A globalização não é coisa que possamos adiar ou desativar”, prega Bill Clinton. “É o mesmo que debater se o outono deve seguir o verão”, engrossa o coro Tony Blair. Como se as autoridades eleitas para governar estivessem proibidas de intervir na história, subjugadas pelos sacros mandamentos da economia, ditados pelos think tanks neoliberais.

O globalismo se caracteriza pelo Estado mínimo e a rede de instituições multilaterais difusoras da ordem institucional, a exemplo da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Acordo de Paris sobre o Clima, etc. Mas o imperialismo estadunidense se olha no espelho e não se reconhece. Troca o cosmopolitismo pelo isolacionismo. Contrariado com a temida concorrência da China, desconta o recalque nas tarifas febris de importação contra moinhos quixotescos, outrora no rol dos aliados.

Se o liberal podia defender a escravidão na metade do século XIX, por que não pode metamorfosear o ressentimento em ideologia de guerra para reaver sua posição geopolítica ímpar, no século XX? Fazem parte do luto a negação, a raiva e a barganha. Antes da aceitação, oCapitão América & os Vingadores dispõem ainda de um argumento forte para negociação, o arsenal de ogivas nucleares.

Os ingênuos se espantam porque preferem a ilusão à realidade. Acham que o liberalismo rima com a democracia. Engano. “Não se deve esquecer que os clássicos da tradição liberal não apenas falam com frieza, hostilidade e às vezes com aberto desprezo da democracia, mas consideram seu advento como uma ruptura arbitrária e intolerável do pacto social e, portanto, como uma causa legítima de apelo aos céus, isto é, às armas”, observa Domenico Losurdo, em Contra-história do liberalismo.

Com bandeiras da liberdade, igualdade e fraternidade a esquerda enfrenta a hipocrisia do centro e o cinismo da ultradireita, avançando na direção do Sul Global. Países-membros do Brics representam 40% da população mundial e do PIB, com projeção acima da média. A sustentabilidade ambiental e a paz social cobram cooperação e readequação ao novo ordenamento sistêmico, pelo Conselho de Segurança da ONU. Um ciclo chega ao fim e deixa as ruínas de legado para as gerações futuras.

Libertas quae sera tamen. A primavera proclamada no domingo épico pela Frente Popular Brasil e o Brasil Sem Medo, junto a ícones da cultura, acena a conjuntura favorável em nome da democracia e da soberania nacional. Tarefa que exige compromisso com o pluralismo político e sinceridade ao acolher o princípio do “direito a ter direitos”. Cabe aos progressistas sedimentar uma consciência de autêntico civismo na sociedade e reafirmar o universalismo das utopias públicas. – Aqui e agora.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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