O dilema silencioso da geração X

Imagem: Miquel Rossy
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Por RODOLFO DAMIANO*

A resiliência da Geração X, forjada na adversidade, tornou-se sua própria armadilha. O verdadeiro legado que precisam construir não é mais de resistência silenciosa, mas de aprender a finalmente cuidar de quem sempre cuidou de todos – inclusive de si mesmos

1.

A geração X, formada por aqueles que nasceram entre 1965 e 1980, vive hoje um dos maiores desafios geracionais da história contemporânea. Criados sob a promessa de que estudo, trabalho e disciplina garantiriam estabilidade, muitos chegaram à vida adulta em um cenário que desmentiu essas expectativas. As últimas quatro décadas foram marcadas por crises econômicas sucessivas, mudanças tecnológicas radicais e um mercado de trabalho cada vez mais instável. O resultado é um grupo que, apesar de resiliente, enfrenta pressões simultâneas que afetam profundamente não apenas sua saúde física, mas sobretudo sua saúde mental.

Um dos dilemas mais marcantes é a chamada “geração sanduíche”, expressão usada para descrever adultos que cuidam, ao mesmo tempo, de filhos que ainda não conquistaram independência e de pais que envelhecem com crescente necessidade de apoio. No Brasil, quase metade dos jovens adultos ainda mora com os pais por dificuldades financeiras, desemprego ou salários insuficientes para manter uma vida autônoma (IBGE, 2023).

Ao mesmo tempo, a longevidade aumenta, mas nem sempre é acompanhada de autonomia: cresce o número de idosos dependentes de cuidados diários, exigindo tempo, energia e recursos. Para a geração X, isso significa viver em permanente estado de alerta, equilibrando responsabilidades múltiplas sem espaço para si.

Essa sobrecarga tem repercussões claras na saúde mental. Sintomas de ansiedade generalizada, depressão e burnout são cada vez mais comuns nessa faixa etária, frequentemente mascaradas pelo discurso da “resiliência”. Estudos mostram que o bem-estar subjetivo costuma atingir seu ponto mais baixo na meia-idade, fenômeno conhecido como a “curva em U da felicidade” (Blanchflower & Oswald, 2008). É exatamente nesse período, entre os 45 e 55 anos, que muitos gen xers enfrentam crises de identidade, frustrações profissionais e sobrecarga familiar, fatores sabidamente associados a maior risco de transtornos mentais (WHO, 2022).

2.

No campo do trabalho, os impactos psíquicos são evidentes. Muitos acreditaram que a ascensão social seria consequência natural do esforço, mas se depararam com um mercado hostil, instável e acelerado. A recessão de 2008, a pandemia de Covid-19 e as sucessivas transformações tecnológicas trouxeram perdas salariais, insegurança crônica e necessidade de reinvenção constante. Esse cenário alimenta sentimentos de inadequação, fadiga emocional e desesperança – todos reconhecidos pela psiquiatria como gatilhos importantes para quadros depressivos e transtornos de ansiedade (APA, 2019).

No plano cultural, a geração X enfrenta ainda a sensação de não pertencer. São jovens demais para se aposentar e velhos demais para se integrar plenamente ao universo digital dominado por TikTok e influenciadores. Suas referências culturais são tachadas de “vintage”, enquanto seus filhos navegam com naturalidade em ambientes virtuais que eles apenas decifram superficialmente. Essa experiência de deslocamento cultural reforça a sensação de isolamento e pode agravar quadros de solidão – hoje reconhecida pela OMS como um fator de risco comparável ao tabagismo para a saúde mental e física (WHO, 2022).

Apesar de tudo, a geração X desenvolveu notável capacidade de adaptação. Aprendeu a lidar com mudanças, a sobreviver em cenários de incerteza e a encontrar soluções criativas. No entanto, é urgente quebrar o mito de que resiliência significa suportar indefinidamente. A literatura em saúde mental mostra que essa geração apresenta níveis elevados de estresse crônico e desgaste emocional, especialmente entre aqueles que conciliam múltiplas funções familiares e profissionais (APA, 2019). Cuidar de si, nesse contexto, é não apenas legítimo: é uma necessidade de saúde pública.

Estratégias individuais e coletivas são fundamentais. No nível pessoal, buscar apoio psicológico, praticar autocuidado e aprender a compartilhar responsabilidades são passos importantes. No nível social, políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental, incentivem o envelhecimento ativo e apoiem financeiramente famílias cuidadoras são urgentes.

O Brasil já ultrapassa os 15% de população idosa, mas o investimento em saúde mental segue abaixo das recomendações internacionais (The Lancet Commission, 2018). Sem uma rede sólida de apoio, o peso recai desproporcionalmente sobre essa geração.

No fim, a geração X está redefinindo o que significa “meia-idade” em um mundo de transformações aceleradas. Ao equilibrar cuidado com os outros e cuidado consigo mesmo, pode inaugurar uma forma mais honesta e sustentável de atravessar esse período da vida. Porque, afinal, quem cuida de todos também merece ser cuidado – inclusive por si próprio. Essa talvez seja a principal lição silenciosa que a geração X pode deixar: resiliência não se mede pela capacidade de resistir sozinho, mas pela coragem de reconhecer os próprios limites e buscar apoio.

*Rodolfo Damiano, médico psiquiatra, é pós-doutorando na USP. Autor, entre outros livros, de Compreendendo o suicídio (Editora Manole). [https://amzn.to/4nvpe7E]

Referências


American Psychological Association (APA). Stress in America™: Stress and Current Events. Washington, DC: APA, 2019.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BLANCHFLOWER, D.G.; OSWALD, A.J. Is well-being U-shaped over the life cycle? Social Science & Medicine. 2008;66(8):1733-1749.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.

The Lancet Commission. Global Mental Health and Sustainable Development. The Lancet. 2018;392(10157):1553-1598.

World Health Organization (WHO). World Mental Health Report: Transforming mental health for all. Geneva: WHO, 2022.


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