Manifestos e editoriais

Imagem: Pavel Danilyuk
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Por RENATO DAGNINO*

Cabe à universidade desconstruir a tecnociência capitalista e, mediante processos semelhantes, mas, contaminados com outros interesses e valores, orientá-la na direção da tecnociência solidária

Se depurados das pueris acusações trumpistas que fazem a quem denominam “comunidade acadêmica”, os recentes editoriais da FSP merecem análise.

Deles vou destacar a visão crítica de um segmento mais esclarecido da nossa classe proprietária sobre a habitual defesa da universidade feita pela elite científica reproduzida no Manifesto assinado pela presidenta da ABC e o presidente da SBPC, de 19 de maio.

Em 21 de maio, clamando pela “revisão do seu financiamento” e uma “maior integração com o mercado” e, dois dias depois, sugerindo “maior financiamento privado” e reclamando de seu “modelo custoso e de baixo incentivo à eficiência”, esse segmento reiterou seus bem conhecidos argumentos.

De modo distinto do que fazem seus analistas que participam de debates acadêmicos defendendo medidas coerentes com eles, os Editoriais, evitaram tocar pontos que neles são essenciais.

Meu objetivo é, decodificando os eficazes apitos de cachorro dos Editoriais, ir apontando como esses dois atores  – aquele segmento mais esclarecido e não trumpista, e a elite científica  – se posicionam em relação a esses pontos essenciais. E, pouco a pouco, ir formulando a proposta alternativa que quero submeter à discussão.

Meu propósito? É convidar colegas que se sentirem motivados, a discutir esses achados.

1.    A crítica que propõe um “outro modelo”

Em duas palavras: Dada a ineficiente relação que a universidade estabelece com as empresas  – embora se omita que em proveito de seus donos imaginam serem elas as responsáveis pelo crescimento econômico que gera o recurso que a mantém, ela deve ter seu “modelo” alterado. Pesquisas que gerem conhecimento passível de ser aproveitado pelas empresas carentes de tecnologia para enfrentar a competição globalizada, e profissionais que sirvam para otimizar o seu desempenho, supõem um “outro modelo”.

Essa crítica é tão velha quanto a promessa defensiva que a elite científica que habita nosso enclave universitário periférico vem desde seu estabelecimento fazendo à sociedade baseada numa espécie de análise de custo-benefício que realiza.

2.    A resposta da elite científica

Em síntese, ela aponta que o custo de uma atividade com qualidade semelhante à que se faz no Norte, comparado com o benefício que ela proporciona para o desenvolvimento do País, é baixo. Não vou entrar aqui em considerações a respeito de que essa elite é formada em sua maioria pelos que vem da ilha dos desumanos do nosso arquipélago (como são considerados os das Ciências Exatas pelos das Humanidades), onde emulam a custosa ciência dura do Norte. Tampouco vou citar o fato de que a ausência de pontes para a ilha dos inexatos (como são considerados os das Humanidades pelos das Exatas) dificulta a explicitação do conteúdo de politics envolvido na policy cognitiva (de Educação e de C&T) que induz seus comportamentos. Vou me deter na explicação da resposta que ela formula.

Buscando legitimar-se e granjear apoio, pela via de sua contribuição a uma consensual imagem de desenvolvimento, ela reproduz as agendas de ensino e pesquisa com que seus pares do Norte, coerentemente com os valores e interesses de sua classe proprietária, exploram a fronteira da tecnociência capitalista .

3.    A política cognitiva e a promessa da elite científica

Os consentimentos da elite científica e daquele segmento, fundados na imagem desenvolvimentista culturalmente dependente e no mito transideológico da neutralidade da tecnociência capitalista, explicam a reiteração da promessa, por um lado, e, por outro, a recorrência da crítica.

Essa imagem é uma expressão biunívoca do caráter atípico da política cognitiva periférica, que é como passamos a referir o que os nossos gurus do Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade  – cepalinos e dependentistas  -, como Amilcar Herrera, diagnosticaram.

Em relação ao mito transideológico da neutralidade da tecnociência capitalista, apontamos como sua recorrente reificação, também na periferia, tem reforçado seu caráter anômalo em relação às políticas normais. Diferentemente daquelas onde o projeto político do ator está refletido na sua agenda particular, e sua média ponderada é a expressão da agenda decisória, a da política cognitiva é por construção a agenda do ator hegemônico, a elite científica e seus tecnocratas.

O mito transideológico, profundamente arraigado desde estabilização de nossa cultura judaico-cristã e tributário, depois, do pouco êxito da experiência socialista, é hoje pervasivo para além do capital. Sua crítica nos levou a inventar, aqui na periferia, algo que nossos colegas dos países centrais não deram atenção. O entendimento de que existe uma relação de causalidade entre o mito da neutralidade e a anomalia da política cognitiva foi o que induziu à formulação de um conceito ao mesmo tempo genérico, global e aparentemente não exclusivamente capitalista.

Esses dois componentes do discurso da elite científica aparecem, como é habitual,  embaralhados no Manifesto. Na frase “garantir o pleno funcionamento das universidades federais [é], condição indispensável para o avanço da ciência, da educação e da soberania nacional”, surgem como inspiração, nesta ordem, o mito da neutralidade e a imagem desenvolvimentista.

E na passagem que se inicia dizendo que o corte de recursos “destrói um dos principais mecanismos de ascensão social no Brasil. As universidades públicas são a porta de entrada para milhares de estudantes pobres, negros e periféricos que dependem delas para romper o ciclo da desigualdade, empurrando os mais vulneráveis para o ensino privado e o endividamento” traz consigo a imagem desenvolvimentista misturada com manipulação ideológica tranquilizadora do capital associada ao mito da neutralidade que condiciona a excepcionalidade da elite científica.

Ela seria capaz de indicar como aplicar uma mítica ciência (exata, universal, neutra, no sentido de que alavancadora de qualquer projeto político) para gerar uma tecnologia que, por um lado, promova ascensão social e livre “os mais vulneráveis [do] ensino privado e o endividamento”. E, por outro, potencializada pela “entrada para milhares de estudantes pobres, negros e periféricos” e sua incorporação enviesada por seus valores e interesses ao mundo da ciência universitária, assegurar que ela seja usada (para o bem, de modo ético, ambientalmente sustentável etc.) para gerar tecnologia a serviço de uma sociedade melhor para todos…

A frase “Sem pesquisa pública, não haverá inovação, nem soluções para crises sanitárias, ambientais ou econômicas”, reforça, por um lado, o mito da neutralidade ao reafirmar que a tecnociência capitalista que professoramos na universidade pode ser usada, simplesmente, para implementar qualquer projeto político: um que promova a saúde do povo ou que favoreça e a inovação com que lucram as empresas.  

Declaração que, inclusive, pode deixar transparecer que o conhecimento tecnocientífico orientado para a inovação, algo que é responsabilidade da empresa, a ela interessa e não pode ocorrer sem ela, pode atenuar as crises que ela própria engendra.

E que, como mostrarei, quando sugiro uma solucionática,  a menos que a tecnociência capitalista seja objeto de processos de Adequação Sociotécnica como os que se trata mais adiante, esse desejo dificilmente realizar-se-á[i].

4.    A relação universidade-empresa e a modalidade transferencista

Voltando às características da política elaborada (formulada, implementada e avaliada) pela elite científica, é conveniente mostrar como a sua promessa se baseia numa suposição equivocada. Ou seja, a de que o conhecimento tecnocientífico desincorporado originado pela pesquisa universitária, ao ser transferido às empresas, nos países centrais, é causa importante de sua lucratividade.

E que, por isso, elas financiam essa pesquisa mediante projetos que possibilitam a transferência e que, na outra ponta, contribuem significativamente para o custeio da universidade.

Os indicadores que mostram que nos EUA apenas 1% daquilo que a empresa gasta em pesquisa é alocado com essa finalidade, e que aquilo que a universidade recebe por essa via, coincidentemente, é apenas 1% de seu orçamento, parecem teimar em se esconder da mirada da elite científica.

Essa cegueira situacional, como diria nosso inesquecível Carlos Matus, faz com que a modalidade transferencista da relação universidade-empresa se mantenha no núcleo de nossa política cognitiva.

5.    A relação universidade-empresa e a modalidade do “centro”

Por não perceber e escassa importância dessa modalidade transferencista de relação universidade-empresa para impulsionar os sistemas de inovação dos países centrais que ela quer emular, nossa elite científica, que hegemoniza a política cognitiva, a mantém numa direção inadequada.  Medidas de política são idealizadas para promover um arranjo societal que se considera positivo e, ele próprio, dotado de alto poder de indução do comportamento. Isso sem que se atente para o fato que se trata de atores sociais pertencentes e imersos em ambientes muito distintos.

A elite também parece não ter percebido que nos países centrais não é a universidade que atrai a empresa oferecendo o conhecimento resultante da sua pesquisa. Na realidade, o interesse da empresa pelo que faz a universidade não se situa no conteúdo da pesquisa que ela realizava.[ii] O importante para a empresa é que alguém tinha aprendido a fazer pesquisa na universidade; sem custo para ela, ademais.

A essa modalidade de relação universidade-empresa damos o nome de do “centro”. Diferentemente da transferencista, o agente principal é a empresa. Cabe à universidade o papel de, recebendo os sinais de relevância emitidos pelo mercado (e, no melhor e mais otimista dos casos, pela sociedade), ir com ele interagindo.     

Materializar aqui, na periferia, a modalidade “do centro” impunha à universidade tornar-se mais atraente: isso está claro nos Editoriais. Uma vez que se partia da constatação de que a empresa, seja por atraso, falta de ambiente ou clima de inovação, seja ou uma outra avaliação mais sensata (envolvendo características da nossa formação econômico-social), a glamorização global da universidade foi a coqueluche dos noventa.

6.    Encenando a modalidade do “centro” na periferia

É plausível que, ainda hoje, a maioria da elite científica não tenha percebido que a emulação da modalidade do “centro” supõe um comportamento da empresa que contradiz o capitalismo periférico. Por isso, ingressamos no terreno da cienciometria, em busca de um indicador que explicitasse essa noção.

Um outro indicador que, este sim, explica a pujança dos sistemas de inovação dos países centrais e a competitividade de suas empresas, e condiciona seu enorme gasto governamental em P&D, parecia teimar em não aparecer.

E, em consequência, a conspirar para a manutenção daquela suposição equivocada e daquela promessa que afasta a universidade pública dos interesses de quem efetivamente a mantêm.

Era fundamental preencher esta lacuna. Para isso, chegamos a um indicador que tem como denominador o total de mestres e doutores formados em ciência dura (e que por isso aprenderam a fazer P&D que interessa à empresa), e os que são por ela contratados; algo que nos EUA ultrapassa os 50%.

Um indicador análogo, para o Brasil  – comparável aos 50% estadunidense  -, que mostrasse quantos daqueles que o Manifesto reitera como “profissionais altamente qualificados, essenciais para o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do país” eram necessários para garantir o lucro da empresa coerente com a imagem do desenvolvimentismo que temos.

Ao ser produzido, esse indicador revelou empiricamente uma situação que colocava em xeque a imagem produzida pela elite científica e seus tecnocratas. Ele traduzia a situação que, desde os anos de 1960, era apontada pelos analistas da política cognitiva latino-americana (entre os quais por dever de ofício me incluo). Mas que, apesar disso, não foi capaz de explicitar a fragilidade da interpretação que a elite científica faz das relações entre os atores dos sistemas de inovação dos países centrais e colocar em discussão a inconsistência do modelo de nossa política .  

Uma tentativa de dimensioná-lo sem subavaliá-lo levou-me a considerar o período 2006-2008. Ele talvez tenha sido o mais favorável economicamente para os empresários e poderia tê-los levado a aumentar sua atividade inovadora e, para isso, contratar os mestres e doutores em ciência dura (formados, vale lembrar, majoritariamente, na universidade pública). Nesses três anos, nós formamos 90 mil, mas foram contratados para fazer P&D em empresas somente 68 pessoas!

Curiosamente, esse indicador continua escondido… Tragicamente, ao desconsiderar esse componente estrutural de nossa condição periférica há tanto tempo diagnosticado e agora empiricamente comprovado, nossa elite científica e seus tecnocratas passaram a buscar novos modelos. Não foi ainda a vez de uma mudança como a que se propõe mais adiante.

7.    A relação universidade-empresa e a modalidade empreendedorista

Na ânsia em se defender da crítica daquele segmento à sua promessa, e percebendo que a universidade não é capaz de mudar a escassa propensão da empresa a fazer P&D, eles se deixaram contaminar por dois filhotes cognitivos do neoliberalismo: o inovacionismo e o empreendedorismo. Seus adeptos, com sua cada vez mais influente terceira modalidade de relação universidade-empresa, a empreendedorista, querem nos convencer que, na periferia do capitalismo, serão capazes de substituir a empresa que não faz P&D pelas suas startups.

No nosso capitalismo periférico culturalmente dependente, tudo o que a empresa produz e lança no nosso mercado imitativo já existia no Norte;  já foi engenheirado no Norte. E a opção mais rentável, mais economicamente razoável e racional é comprar equipamento para produzir esses bens e serviços. De fato, 80% das empresas inovadoras brasileiras, quando perguntadas pelo IBGE, como é que você inova responderam que o fazem comprando máquina e equipamento. Para que fariam P&D?

Como me disse um técnico de laboratório de uma empresa química, “quem gosta de fazer pesquisa é pesquisador; o empresário gosta (e tem que!) de ganhar dinheiro, senão no outro dia estará fora do mercado e eu sem emprego, mano”.

Além do que, como costumo dizer, o Brasil é o país da mais-valia absoluta, e não da mais-valia relativa. Ao contrário do que ocorre no Norte, o aumento da produtividade do trabalho que possibilita o lucro via sua apropriação pela classe proprietária sancionada pelo Estado capitalista, não é a forma com ela ganha dinheiro. O sucesso empresarial tende a decorrer, fundamentalmente, não do que se costuma chamar inovação tecnológica e sim da superexploracao da nossa classe trabalhadora.[iii]

8.    Politizando a problemática

Retomo o fio da meada dirigindo-me a colegas  que como eu fazem ensino, pesquisa e extensão. Nós temos um desafio enorme, que não é para fora da universidade, é para dentro. É o desafio de mudar as nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão.

Há muito, me disse um amigo físico: nossas universidades mais renomadas tentam emular o que se faz em Stanford, em Berkeley etc.; e as demais replicam o que se faz nelas…

Até mesmo por ter sido evidenciado ha muito, esse circuito da tecnociência capitalista, do Norte, em que nós voluntariamente (é importante que se diga) nos inserimos, tem que ser criticado.

Essa reflexão crítica tem que estar em cada sala de aula, em cada laboratório, em cada reunião de departamento, em cada reunião de congregação.

A análise da problemática não ficaria completa sem a apresentação dos metafórica dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1) o Cientificismo (a ciência universal, a boa, a que se faz no Norte, é a que nós devemos fazer aqui, porque eles é que sabem fazer ciência); (2) o Produtivismo (inclusive, colegas de esquerda dizem que para recompensar o pobre que paga o imposto que sustenta o seu laboratório equipado, devem publicar nas revistas do Norte); (3) o Inovacionismo (a inovação, que só se faz na empresa, deve ser alavancada pela tecnociência capitalista que professoramos, com nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão que deveriam possuir caráter público); (4) o Empreendedorismo (sobre este cavaleiro, nem preciso falar; existem muitos colegas que falam da sua hipocrisia que o cerca).

9.    Em busca de uma solucionática

Os curtos prazos que temos obrigam a misturar estratégia e tática: como enfrentar esses cavaleiros?

Um caminho que vai sendo trilhado é o de trazer para dentro da universidade as demandas cognitivas, as demandas tecnocientíficas, embutidas nas necessidades materiais coletivas insatisfeitas.

O fato de que temos hoje no Brasil, metade da população sem esgoto, água potável, de que é necessário duplicar muitas coisas que todos precisamos, tem que ser encaminhado de uma forma distinta. Ela tem que ir mais além do pé fraco do tripé constitucional da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão. E para abranger todas elas será necessário, entre muitas outras coisas, questionar o mito transideológico da neutralidade da tecnociência capitalista e a imagem desenvolvimentista.

Uma cadeia de derivação pode ajudar a pensar em como organizar nosso trabalho: como abordar uma necessidade material coletiva insatisfeita? Devemos tentar resolvê-las como os países centrais fizeram há 100 anos? Ou há outras soluções melhores? Existem desafios tecnocientíficos extremamente originais e complexos embutidos nessas necessidades que cabe às nossas instituições públicas de ensino e pesquisa  resolver.

Nós temos que aprender, construindo pontes entre os arquipélagos, a fazer o que a empresa capitalista faz desde que existe Ela identifica demandas tecnocientíficas nas necessidades da população, traz essas demandas cognitivas para seus laboratórios e, utilizando sua tecnociência capitalista (ou o que, equivocadamente no minha visão, se entende como uma mistura de ciência, tecnologia, religião, conhecimento empírico, quilombola etc.), produzir os bens e serviços que vai vender no mercado.

Nós temos que fazer algo parecido. Temos que desconstruir e reconstruir a tecnociência capitalista com base em processos semelhantes, mas, contaminados com outros interesses e valores, orientados na direção da Tecnociência Solidária.

Esse desafio envolve mudar as nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão, que é, digamos, a palavra de ordem que eu considero necessário discutir para sulear nossa universidade.

Para fazer isso, temos que nos apoiar no ator que em todo o mundo vai sendo identificado como portador de futuro, os arranjos de produção, consumo e finança que se baseiam na solidariedade (em vez de na competição), na propriedade coletiva dos meios de produção (e não privada ou estatal), e na autogestão. Ou seja, as redes solidárias.

Quando começarem a ser alvo da compra pública (os quase 15% do PIB que todos os anos vai para as empresas[iv] para adquirir os bens e serviços com que o Estado nos retribuir pelo imposto que pagamos), irá emergir essa demanda cognitiva represada com a qual devemos trabalhar na universidade.

À medida que isso for ocorrendo, a universidade irá (ou terá que) se envolver com as redes solidárias na solução de problemas de cada vez maior intensidade cognitiva.

Sempre é difícil prever o futuro, mas para se ter uma ideia do potencial dessa orientação de parte da compra pública para as redes solidárias basta saber que o governo nelas aloca apenas 0,02% do PIB.

10.  Concluindo…

Um rota de natureza mais estratégica que leva a fazer nascer dentre Manifestos e Editoriais uma nova universidade e introduzir aqueles problemas originais e complexos a que fiz referência em nossas salas de aula e laboratórios.

Como me disse um ex-ludita: Fazer Adequação Sociotécnica da tecnociência capitalista, professorar tecnociência solidária, não quer dizer jogar a criança com a água do banho. Aqui ninguém é louco e ninguém rasga dinheiro. Nós temos que reprojetar a tecnociência capitalista na direção da tecnociência solidária.

Isso é fácil? Alguém já fez isso antes? Não, a experiência do socialismo real, que é a única que a gente poderia tomar como referência, não fez isso. E disso decorre, no meu entender, do fato de ele ter sofrido um processo de degenerescência ao se tentar utilizar a tecnociência capitalista para construir o socialismo…

Esses temas não podem ser aqui aprofundados, mas eu queria deixar com vocês ideias como essas. Eu acho que elas podem promover um debate com a radicalidade que nossa situação exige. E que Dentre Manifestos e Editoriais, nasça uma nova universidade.

E quando eu falo de radicalidade, eu estou falando de ir até as raízes. A gente tem que ir até as raízes dos problemas. Ou seja, temos que perseverar, por um lado, no questionamento do mito transideológico da neutralidade da tecnologia capitalista e, por outro, na concepção de uma visão de futuro que substitua o desenvolvimentismo e suas consequências sociais, econômicas e ambientais indesejáveis. Dessa forma vamos transitar por uma via que coloque a universidade que queremos construir à salvo das acusações trumpistas, da crítica do segmento mais esclarecido da nossa classe proprietária e da forma como a elite científica elabora nossa política cognitiva.

A gente não pode se dar o luxo, no momento que estamos vivendo, de tratar os problemas de forma leviana, de achar que mais dinheirinho aqui, mais dinheirinho ali, vai resolver.

O que mais que eu poderia dizer? Eu acho que eu já disse muito, eu acho que eu já estou escrevendo bem mais do que eu havia previsto e do que vocês tolerariam. Então, eu vou parar por aqui e me colocar à disposição, se houver possibilidade, para ouvir vocês e esclarecer melhor o que eu escrevi.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular) [https://amzn.to/4gmxKTr]


[i] Para caricaturar a tecnociência capitalista, tenho me referido aos seus “Sete Pecados Capitais”: (1) Deterioração programada (é necessário um excelente engenheiro para fazer uma coisa quebrar no dia 367; (2) Obsolescência planejada (e para maquilar o produto antigo de maneira a convencer-nos de que o “novo”, mais caro, é melhor); (3) Desempenho ilusório (a maior parte das coisas que a gente usa são anunciadas e vendidas como tendo um desempenho fabuloso que para nós não faz o menor sentido); (4) Consumismo exacerbado (mesmo que não queiramos, somos submetidos a ele); (5) Degradação ambiental (para onde vai todo este lixo?); (6) Adoecimento sistêmico (coisa que ficou muito clara com a gripe aviária, a Covid); (7) Sofrimento psíquico (além do físico que historicamente tem mutilado os trabalhadores, todos hoje estamos com ele sofrendo).

[ii] É interessante notar que esse relativamente escasso interesse pelo conteúdo da pesquisa universitária, pelos seus resultados desincorporados que a elite científica imagina transferíveis para a empresa, é muito semelhante ao que ocorre no Brasil, como atesta a PINTEC.

[iii] Temos um dos menores salários mínimos do mundo e uma das maiores taxas de juro; o que significa que se existe alguém produzindo um alfinete (e ainda existe), é porque nossa taxa de lucro é uma das mais altas do mundo.

[iv] A classe proprietária dessas redes privadas já ganha 7% do PIB de serviço da dívida; 5% do PIB de renúncia fiscal; 10% de sonegação dos impostos…

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