O fantasma da inutilidade

Imagem: Sateesh Reddy Patlolla
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Por LUIZ MARQUES*

O “fantasma da inutilidade” é um produto direto da financeirização da economia, que subordina o trabalho e o Estado à tirania dos acionistas e da especulação de curto prazo. Este novo capitalismo, ao demolir laços de lealdade e proteção social, gera uma precarização existencial

Na expressão do sociólogo Richard Sennett em conferências na Universidade de Yale, reunidas sob o título A cultura do novo capitalismo, o “fantasma da inutilidade” ronda a sociedade neoliberal. Inovações tecnológicas / estruturais deixam à deriva os ideais do Estado previdenciário, enquanto a economia submete a política. A empatia simulada pelo sistema no pós-guerra ao frear desigualdades era resultado de um planejamento sério, demonizado no laissez-faire. A mudança do poder gerencial para o poder acionário, na derrocada dos acordos de Bretton Woods na década de 1970, com o fim da conversabilidade do dólar em ouro, libera um enorme superávit de capital para investimentos.

Se o decênio 1980 anuncia o boom do enriquecimento a curto prazo, o desencanto dá sinais nos anos seguintes. O preço das ações desloca os preceitos de estabilidade e confiança nas corporações e suas gerências ao cassino das Bolsas de Valores, em escala internacional. “Em 1965 os fundos americanos de pensão retinham estoques em média por 46 meses; em 2000 boa parte das carteiras desses investidores institucionais tinha rotatividade média de 3,8 meses”, informa Richard Sennett.

O jogo com a valia dos estoques supera as formas tradicionais para a mensuração do desempenho, como a relação preço e lucro. Empoderados, investidores pressionam as empresas e o Estado-nação para se fazer atraentes aos olhos do primeiro voyeur, insinuando-se rentáveis e flexíveis. Prato cheio para as manipulações contábeis. As reestruturações corporativas tornam-se dependentes da cotação nas ações estabelecida pelos mercados financeiros, e não pelo funcionamento da empresa por si.

A ortodoxia econômica encarna o estilo do futuro, na crença de que a reformatação do trabalho, do talento e do consumo resultam em mais liberdade na modernidade líquida. Então, tudo que é sólido desmancha no ar. As oscilações mercadológicas, a pressa dos investidores no retorno e as migrações dinamizam a destruição criativa. As classes dominantes repudiam intromissões no livre mercado e apoiam as privatizações do patrimônio público, arrochos salariais, gentrificação – a necropolítica.

A noção de solidariedade perde o crédito. A assistência de saúde é questionada – o SUS é um ponto fora da curva no cenário mundial hegemonizado pelas finanças. As habilidades proporcionadas pela educação formal mostram-se inadequadas na ótica da financeirização. Privilegia-se os aportes para pesquisas nas áreas acadêmicas abertas às parcerias mercadistas. A nova economia tem um papel normativo para o próprio Estado, comparado a uma empresa; na eleição cotejado a uma família por pura demagogia. O discurso da austeridade e os ajustes fiscais convencem a mídia corporativa.

Um novo normal

O controle do trabalho se sofistica com a vigilância panóptica foucaultiana e as tecnologias que projetam, na tela, o desempenho on-line. A competição entre os trabalhadores é um instrumento de aferição de competências. Não há distinção entre colega e concorrente; há estresse e ansiedade. A desigualdade material e social entre o salário dos executivos e o dos escalões inferiores interrompe a comunicação intersetorial e enfraquece o ânimo dos empregados, que fingem contentamento.

Como se apegar ao emprego que trai as expectativas de recompensa pela dedicação, é o nó górdio. A contratação de consultores externos para uma reengenharia empresarial exime o gerenciamento de responsabilidade pelas decisões dolorosas. Enxugamentos para redução da folha de pagamento são sinônimos de maiores dividendos para os acionistas. Se a autoridade carismática não protege a massa de peões e a autoridade burocrática desmonta os mecanismos de proteção, logo os vínculos internos se dissolvem e os laços de pertencimento são fragilizados na guerra de todos contra todos.

Com a reconfiguração do labor e a aquisição de empresas por controladores indiferentes à sorte dos funcionários, a lealdade desaparece. O contexto explica as terceirizações e os contratos temporários. A precarização estende os tentáculos também aos servidores públicos. O hábito sedimenta um novo normal, com o azedo ressentimento dos excluídos. A gente somos inútil, canta o Ultraje a Rigor.

Três forças agitam o fantasma da inutilidade hoje: a oferta global de mão de obra, a automação com inteligência artificial e a gestão do envelhecimento. Nenhuma é o que parece. O sistema empurra as empresas às regiões em que a mão de obra é capacitada e barata. A meteórica ascensão da China é favorecida pela desindustrialização (não planejada) dos países ocidentais. O medo dos estrangeiros, às portas dos Estados Unidos e da Europa, é de que estejam melhor e mais equipados para as tarefas de sobrevivência. Não à toa, a extrema direita desfralda a bandeira da xenofobia que nutre o ódio.

A automação com Inteligência artificial reatualiza o antigo temor de a máquina substituir os seres humanos e aumentar a produtividade, reduzindo o número de operários na produção e aperfeiçoando a fiscalização sobre a qualidade; coisa que ocorre com efeito. O progresso espelha o Angelus Novus, de Paul Klee; atrás deixa as ruínas. Já a velhice esbarra em limitações motoras e preconceitos arraigados no etarismo. A capacitação não é o suficiente para os cargos. Os jovens nos postos de ocupação custam mais barato e causam menos problemas. Crescem sob o signo da digitalização e dos algoritmos das Big Techs.

Autoconsciência

Márcio Pochmann, no artigo “A transformação do Brasil”, postado no site A Terra é Redonda, sublinha a desestruturação do mercado de trabalho e o recuo nas chances de mobilidade para cima da classe média. “O atraso econômico imposto pelo receituário neoliberal se destaca tanto pelo estancamento da produtividade do trabalho como pelo declínio da taxa de lucro em vários setores produtivos, que ainda resistem em se manter ativos diante da abertura econômica e financeira”.

O presidente do IBGE sublinha que a desindustrialização ao se aprofundar aponta a emergência de um arcabouço conceptivo no centro-oeste do país, com o protagonismo do setor agrário exportador. Um projeto estratégico é vital para transcender o estatuto de entreposto comercial de commodities, rumo ao Estado de bem-estar. Só planejando o futuro é possível superar os rebotalhos colonialistas.

A precariedade é uma dimensão do processo de mercantilização que atinge, com mais intensidade, as camadas sociais com dificuldade de organização. A dispersão territorial é um óbice à identidade classista na defesa de direitos, não as reformas cumulativas para pôr os pobres no orçamento. A vida é dura em aplicativos e no telemarketing onde batalhadores são superexplorados e humilhados, em atividades repetitivas. “É isto uma pessoa?” indagam na volta para casa. As variáveis importam.

Nem as políticas públicas e nem a satisfação hipotética com os ganhos mínimos têm a ver com a reticência do subproletariado em aderir a atos de protestos ou em aceitar sua condição de existência. Para entender a aparente apatia histórica é preciso interpelar a dialética da modernização periférica. O problema acha-se na história da dominação e na atrofia da participação sindical e partidária no campo da esquerda, ao que se soma ainda a fragmentação dos movimentos e das reivindicações. Fatores importantes a considerar na análise concreta da realidade concreta, sem impressionismo.

A dependência do aparelho estatal acompanha a falta de vontade autônoma dos brasileiros, desde a Independência. Trata-se da herança remanescente das estruturas autoritárias da escravidão. Assim as vitórias alcançadas pelos movimentos e partidos soam como benesses, sempre pelo alto. O fantasma da inutilidade persegue a nação como se esta fosse espectadora do teatro político. A convergência da sociedade civil com o Estado resume-se a episódios esportivos, na memória coletiva. O povo ensaia a autoconsciência nascente sobre suas lutas, com a questão da democracia e da soberania nacional.

Ao atribuir a condenação do golpe bolsonarista à coragem de uma instituição, vale lembrar: sem a dignidade de Lula, a heroica vigília de 580 dias, a tenaz resiliência cidadã ao desgoverno neoliberal e a unidade progressista para a prática da sociabilidade plural – não festejaríamos agora a justiça. Parafraseando Bertolt Brecht, louvado seja quem arrastou os blocos de pedras para construir Tebas.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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