Por LINCOLN SECCO*
Em tempos “normais” o crime é oculto e depois solucionado com a punição individual que reconcilia a sociedade burguesa consigo mesma. Em momentos de crise o fascismo exalta o crime publicamente. Por vias tortas ele rompe com a culpa individual e revela as raízes sociais do delito
“Assusta-me o aqui / não o ontem nem o amanhã” (Bruno Palma)
Em sua Literatura Nazista na América[i] Roberto Bolaño construiu biografias fictícias de sub celebridades literárias. Elas transitam por espaços em que aristocratas decaídos e aproveitadores do submundo se encontram; cruzam em suas vidas com pessoas reais do mundo político e, particularmente cultural.
Tem-se a impressão que somente a mistura de realidade e imaginação dá conta de um movimento irracional. A vida de uma poeta argentina, a imaginada Edelmira Thompson Mendiluce que ascendeu à oligarquia terrateniente, é muito mais crível do que a breve alusão que Bolaño faz ao contista brasileiro (este real) Ruben Fonseca, um ex-delegado de polícia e ideólogo do IPES[ii], think thank da extrema direita brasileira financiado por empresas estrangeiras para preparar um golpe no Brasil[iii].
Aqueles escritores são sempre pessoas de um convívio aceitável. Muitas vezes medíocres, em casos excepcionais importantes como Pound ou D’Annunzio. Transitam das altas rodas às sociedades secretas e explanam ideias confusas sem que isso cause perplexidade. Antes passam como excentricidades de artistas. Uma delas a de servir de elo entre a mansão e o bas-fond, entre o roubo legalizado (a mais valia) e o crime.
Pelo fascismo imaginário de Bolaño desfilam filósofos incompreendidos, poetas sem renome, decoradores, marginais, lacaios, ermitões, psicopatas, um membro do esquadrão da morte brasileiro e o próprio Ruben Fonseca, protégé e costas quentes da ditadura. Mas as personagens de Literatura Nazista na América não são meras alegorias da violência e nem estão isoladas das altas rodas por uma divisória estanque.
O Cobrador de Ruben Fonseca, por exemplo, é um poeta lúmpen, justiceiro, estuprador e assassino que se une a uma entediada mulher rica. Ele poderá então passar dos homicídios individuais para o terror coletivo. Sua trajetória de brutalidade é envolta por uma prosa naturalista e chula e não é tão convincente quanto a meticulosa construção histórica e literária de Bolaño.
O cobrador de Fonseca adentra o apartamento de uma ricaça jovem e o estupro dela necessita de uma descrição detalhada para que o conto funcione. Entre o seu mundo e dos que lhe “devem” não há incertezas nem uma zona de penumbra e transição. Em Bolaño o excêntrico não penetra o recôndito andar de cima só pela brutalidade explícita. Há uma área comum e cinzenta entre o estabelecido e o outsider, entre a estética estabelecida e o Kitsch.
O Crime
Decerto, não há nada mais na moda do que exibir um suspeito na sala de jantar pour épater le bourgeois.
A atração que a alta sociedade sente pelo submundo foi demonstrada por Hannah Arendt[iv]. A ideia de crime perfeito em que a brutalidade convivia com maneiras refinadas e o assassinato com jogos de inteligência nunca abandonou as histórias policiais. No Romance de Sonho de Arthur Schnitzler há uma sociedade paralela permitida só a iniciados da elite.
Marx, com ironia, escreveu que o criminoso não produz só crimes, mas também a polícia, os professores de Direito Penal, juízes, fechaduras, arte, literatura e até sentimentos morais no público. Egresso da população “supérflua”, o criminoso faz algo ainda mais importante: “quebra a monotonia e a segurança cotidiana da sociedade burguesa”[v].
Quando simplesmente não usavam seus próprios agentes públicos em ações ilegais, os serviços reservados da polícia sempre recorreram a criminosos, maníacos, fracassados sociais ou simples invejosos como informantes (ganso, na velha gíria brasileira).
O que o fascismo permitiu foi uma troca de posições em que milícias paramilitares de direita pudessem fazer o serviço policial sem as amarras da justiça e os limites da lei. E a polícia podia se tornar uma espécie de serviço de proteção e informação dos fascistas dentro da legalidade.
Bases Econômicas
O processo de acumulação de capital no século XIX gerou três subprodutos: uma alta burguesia endinheirada e autoconfiante; um crescente proletariado industrial; e uma população flutuante que integrava tanto uma reserva para regular o preço da força de trabalho, quanto o lúmpen proletariado sem função econômica.
Essa ralé colhida em todas as classes, no entanto, podia servir tanto ao crime quanto à repressão de Estado, à espionagem e ao neocolonialismo. Podia incorporar tanto um dedo duro ocasional esfarrapado quanto um aristocrata apaixonado por teorias da conspiração secreta de judeus e maçons.
Em tempos “normais” o crime é oculto e depois solucionado com a punição individual que reconcilia a sociedade burguesa consigo mesma. Em momentos de crise o fascismo exalta o crime publicamente. Por vias tortas ele rompe com a culpa individual e revela as raízes sociais do delito. Ele encontra os culpados pelos seus próprios crimes numa raça, num grupo político ou num inimigo externo. Com tal pretexto consegue reprimir qualquer descontentamento social e conquista o apoio das classes dominantes porque as defende melhor do que os órgãos judiciários habituais.
Mas o fascismo só viola instituições que já estavam desmoralizadas. Para derrotar uma revolução real ou imaginada as forças armadas, os tribunais, a imprensa e até a polícia precisam desmentir sua neutralidade, abandonar seus ritos, desacreditar seu discurso e violentar o devido processo legal. Em nome do combate ao crime as instituições se fazem meio criminosas; e os autênticos criminosos se passam por políticos meio honestos. O fascista não força sua entrada pela democracia, ele apenas chuta uma porta que já se lhe tinha sido aberta.
Não é por outro motivo que os heróis policiais (sempre ficcionais, é claro) fazem justiça com métodos ilegais e defendem a moral dos cidadãos imoralmente. O fascismo é um fenômeno de fronteira entre a ilegalidade e a legalidade e por isso encontra na polícia uma fonte de recrutamento.
A esquerda social costuma atribuir o crime a causas gerais eliminando responsabilidades individuais[vi]. Decerto isso não é convincente para quem acredita poder ser vítima de um criminoso. Que o fascismo exalte o crime em defesa da Ordem não é nenhuma contradição. Que o considere um fenômeno coletivo e ainda assim consiga apelar a indivíduos inseguros é a explicação do seu sucesso.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Gramsci e a revolução (Alameda).
Notas
[i]Bolaño, Roberto. A Literatura Nazista na América. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. O livro é de 1996 e foi escrito imaginariamente num futuro próximo. Seu olhar para o passado parece estranhamente dirigido ao nosso presente. E devemos levar a sério o seu título. Ele fala da América, a mesma que em algum momento passou a ser governada por fascistas no Brasil e nos Estados Unidos.
[ii]Djurovic, Camila. Impressões da direita: a ação editorial do IPES (1962-1966). Universidade de São Paulo, Dissertação de Mestrado (em andamento), 2020.
[iii]Que Fonseca depois tenha tido um livro censurado e reinventado seu passado como o de um liberal democrata não importa aqui. Sobre sua trajetória vide: Corrêa, Marcos. “Cenas de um casamento perfeito: a ação burocrático política do escritor José Rubem Fonseca no Ipes entre os anos de 1962/1964”. Terceira Margem, n. 21, ago.-dez. 2009, pp. 65-78.
[iv]Arendt, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 229 e 274.
[v]Marx, K. Teorias da Mais Valia, V. I. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Bertrand, 1987, p. 383.
[vi]Na transição da Ditadura a experiência e a narrativa da ameaça comunista foi substituída no Brasil pelo crime, com “discursos que brotam, de uma lógica absolutamente protofascista”. Pierucci, António Flávio (1987). “As bases da nova direita”. Novos Estudos CEBRAP, n. 19, dez 1987, p. 32. Sob esse ângulo parece que Rubem Fonseca continuou de forma menos consciente (e por isso mais convincente) a fazer a propaganda do fascismo. Vide Lísias, Ricardo. “Do Ipês à Polícia – obra de Rubem Fonseca durante a redemocratização”, Intellèctus, Ano XVIII, n. 1, 2019.