Por Lincoln Secco*
Uma das características fundamentais de um fascista é dizer que não o é. Ele pode se declarar como um católico que frequenta cultos evangélicos; combater a corrupção para se locupletar; defender as instituições militares, mas criar suas próprias milícias
O governo de Jair Bolsonaro é fascista e liberal[1]. Como isso foi possível?
Depois da derrota militar do fascismo histórico[2], muitos liberais e conservadores apressaram-se em se desvincular daquela experiência catastrófica. O filósofo Benedetto Croce viu no fenômeno um parêntese, um desvio de uma história europeia cujo sentido era a realização da ideia de liberdade. Ele foi mais longe: recusava-se a compreender o fenômeno porque o odiava.
Os estudiosos da Escola de Frankfurt desconfiaram totalmente da erradicação do fascismo após a Segunda Guerra Mundial e perceberam o quanto ele podia sobreviver no interior de sociedades capitalistas liberais[3].
O pai do neoliberalismo Von Mises via no nazismo boas intenções. Friedrich Hayek que foi muito mais um propagandista de vanguarda que economista de relevo, difundiu a noção de que o fascismo foi uma mera deformação causada pelo excesso de Estado[4]. Zbigniew Brzezinski preferiu o termo “autoritarismo” para justificar a persistência do fascismo na Península Ibérica: seriam “ditaduras técnicas” e instrumentais na defesa da democracia[5]. Não por acaso ele também incorporou o conceito de totalitarismo, desenvolvido por Hannah Arendt para aproximar o fascismo e o comunismo como regimes de massas totalitários[6].
A lista de autores e autoras poderia prosseguir, especialmente se incorporarmos a historiografia que se alimentou do conceito de populismo. Na acepção vulgar que passou a ser utilizada no hemisfério norte ele não deixa de ter a mesma função de demonizar a esquerda, igualando-a ao neofascismo. Totalitarismo e populismo são palavras invocadas para salvar a pele do centro liberal, o qual seria a única garantia dos requisitos racionais de uma vida normal alicerçada no individualismo, nos contratos e na liberdade.
Só que o casamento do capitalismo com a democracia foi uma excepcionalidade vigente por curto período histórico em alguns países europeus e da América do Norte, como reconhece Yasha Mounk autor do best seller O povo contra a democracia. (Companhia das Letras). Mesmo assim ele atribuiu a crise democrática ao “populismo” vigente em países tão diversos como Polônia, Rússia ou Venezuela[7].
No Brasil
O fim do socialismo real europeu em 1989 assinalaria uma vaga de exaltação do liberalismo na América Latina, mas pensadores à esquerda e à direita já pressentiam uma nova viragem ao fascismo. A esse respeito Paulo Arantes[8] resgatou um artigo de Edward Luttwak publicado em 1995[9]. O autor, que estava longe de simpatias pela esquerda, anteviu que o capitalismo turbinado pela globalização e pela informática traria uma “insegurança econômica pessoal completamente inédita da massa trabalhadora, dos trabalhadores industriais e burocráticos de colarinho branco até os executivos médios” e que a direita moderada e esquerda moderada ofereceriam qualquer solução.
Ele descrevia um conjunto de camadas médias da população que não eram exatamente pobres e, portanto, não podiam receber benefícios sociais oferecidos pela esquerda. E podemos acrescentar que elas também não estariam interessadas numa redistribuição de renda que ameaçasse sua posição social relativa.
A direita moderada, ao celebrar “as virtudes da competição desenfreada e da mudança estrutural dinâmica” também não mais interessaria àqueles segmentos. Eles tenderiam a aderir a um “partido fascista melhorado”[10].
Em 1998 Fernando Haddad aventou a hipótese de que o colapso do sistema soviético e do estado desenvolvimentista inclinariam os países semiperiféricos ao neoliberalismo e ao velho fascismo[11].
História
Antonio Negri que visitou o Brasil antes da catástrofe política de 2018 definiu muito bem o neofascismo do século XXI como “a face dura do neoliberalismo”. Segundo ele, isso “o distingue dos fascismos dos anos 1920-30 em que os reacionários certamente estiveram no campo político, enquanto no terreno econômico eles poderiam ser relativamente progressistas, pseudokeynesianos”[12].
Ainda assim, essa definição não é exata mesmo para a época do fascismo histórico que também recorreu à ortodoxia liberal quando lhe foi conveniente. O historiador Federico Chabod mostrou que em seus primeiros anos o fascismo italiano foi mais liberal que os governos liberais anteriores: aboliu subvenções oficiais e entregou empresas estatais ao capital privado.
Após a Primeira Guerra Mundial o velho Giolitti que marcou uma época da política italiana buscou melhorar a arrecadação. Para fazer frente ao aumento de despesas estatais contraídas durante a Guerra ele exigiu em 24 de setembro de 1920 que as ações fossem nominativas e não ao portador a fim de combater fraudes. No mesmo dia aumentou o imposto sobre heranças e, em casos específicos (parentes longínquos, v.gr.) a taxa podia significar o confisco da propriedade.
O programa do Partido Nacional Fascista em 1921 previa simplificação tributária, equilíbrio orçamentário, publicidade dos rendimentos tributáveis (redditi imponibili)[13] e das heranças. Mas somente treze dias depois da marcha sobre Roma que levou Mussolini à presidência do Conselho de Ministros, as leis de Giolitti foram revogadas[14] e aquela parte do programa fascista esquecida.
Fascismo pragmático
Mussolini levou à prática a política prescrita por Vilfredo Pareto, o teórico das elites: destruir o liberalismo político e instituir o econômico; retirar impostos das classes privilegiadas; e oferecer às trabalhadoras uma educação com dogmas religiosos nos quais ele mesmo não acreditava[15].
Os velhos políticos liberais ficaram satisfeitos e acreditaram que a entrada de fascistas no gabinete de governo iria domá-los e permitir sua absorção no sistema liberal[16], como tinha ocorrido com os socialistas. Proveniente de uma composição bizarra de sindicalismo revolucionário, socialismo e nacionalismo o fascismo tinha sua base mobilizada nas camadas médias e atraía os ressentidos de todo tipo. Entretanto, ele não teria se estabilizado no poder sem aquela condescendência dos políticos profissionais. Além, é evidente, de uma aliança com o grande capital e o apoio do exército, polícia e magistratura[17].
É claro que a política de Mussolini mudou: ele impôs uma ditadura pessoal e, movido por novas circunstâncias internacionais adotou uma linha estatizante: em 1939 percentualmente a Itália tinha o segundo maior setor público no mundo, somente menor do que a União Soviética[18].
Mas o liberalismo pragmático não foi peculiaridade do início do regime fascista italiano. Na Espanha Franco adotou inicialmente o sistema corporativo e buscou autarquia econômica, mas nos anos 1950 promoveu o ingresso de seu país na ONU, a abertura econômica e a submissão ao FMI. E os arquitetos do liberalismo espanhol foram tecnocratas vinculados ao Opus Dei, organização católica ultrareacionária.
Qualquer ideia fascista é descartável porque o fascismo não tem nenhuma. Ele é pura ação. Ele é um oportunismo absoluto. Ele desembarca no poder trocando de fantasia conforme o país, a ocasião e a cultura (ou a ausência dela).
Conclusão
Não há e nem jamais houve um projeto político, ideológico ou econômico definitivo dos fascistas. Nem mesmo o termo “fascismo” foi em geral reivindicado por eles fora da Itália. Na Inglaterra Sir Oswald Mosley (1896-1980) criou a British Union of Fascists, mas depois alterou o nome.
Uma das características fundamentais de um fascista é dizer que não o é. Ele pode se declarar com toda a naturalidade um católico que frequenta cultos evangélicos; combater a corrupção para se locupletar; defender as instituições militares mas criar suas próprias milícias; servir-se da “revolução” para proteger a Ordem; e eliminar antigos aliados em nome de uma ou outra conforme a conveniência.
O clerical fascista Dollfuss (1892-1934) reprimiu os nazis austríacos até ser assassinado por eles. Mas onde a ala conservadora fascista podia dispensar a radical, isso foi feito. A ferro e sangue se necessário. O ditador romeno Antonescu (1882-1946) esmagou os seus compatriotas fascistas mais radicais da Guarda de Ferro. Franco prendeu políticos falangistas espanhóis depois de usá-los na Guerra Civil[19]; o líder fasciomonarquista dos camisas azuis portugueses Rolão Preto (1893-1977) envolveu-se numa intentona contra Salazar e foi expulso do país. Nenhum deles usava na testa o número da besta.
*Lincoln Secco é professor no Departamento de História da USP.
Notas
[1] Em discurso na Fiesp o General Hamilton Mourão, vice-presidente da República, leu um texto que dizia: “O neoliberalismo, ou liberalismo, nada mais é que a defesa intransigente do direito à propriedade privada. Pois onde não há propriedade não há o único sistema econômico que deu certo no mundo, que é o capitalismo”. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47715967. Consulta em 27/03/2019.
[2] Aquele vigorou entre as duas Guerras Mundiais.
[3] Adorno, T. W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.38.
[4] Soares, Thiago C. Make it New: Hayek e a Invenção do Neoliberalismo. USP, tese de doutorado, 2019, p. 162.
[5] Fernandes, Florestan. Apontamentos sobre a Teoria do Autoritarismo. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 5.
[6] Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, p. 434.
[7] Mounk, Yasha. O Povo contra a Democracia. Trad. C. Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p.81.
[8] https://www.youtube.com/watch?v=-qrBKYakOnM&feature=youtu.be
[9] Arantes, Paulo. “Filosofia e vida nacional: Por que filósofo hoje?”, https://www.youtube.com/watch?v=-qrBKYakOnM&feature=youtu.be.
[10] Luttwak, Edward. “Por Que o Fascismo é a Onda do Futuro”, Novos Estudos CEBRAP N.° 40, novembro 1994, pp. 145-151.
[11] Haddad, Fernando. Em Defesa do Socialismo: Por Ocasião dos 150 Anos Do Manifesto. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 65.
[12] Negri, Antonio. “Primeiras observações sobre o desastre brasileiro”, in https://revistacult.uol.com.br/home/antonio-negri-desastre-brasileiro/
[13] Felice, Renzo De. Mussolini il Fascista. La Conquista del Potere. 1921-1925. Torino: Einaudi, 1995, p.759.
[14] Chabod, Federico. L´Italia Contemporanea. Torino: Einaudi, 1961, p. 64.
[15] Borkenau, Franz. Pareto. México: FCE, 1978, p. 8.
[16] Blinkhorn, Martin. Mussolini and fascist Italy. London: Routledge, 1997, p.22.
[17] Carocci, Giampero. Storia d´Italia dall´Unità ad Oggi. Milano: Feltrinelli, 1975, p.250.
[18] Blinkhorn, Martin. Op. cit, p. 34.
[19] Bernardo, João. Labirintos do Fascismo. Porto: Afrontamento, 2003, pp.116-125.