A tripartição do PT

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LINCOLN SECCO*

O PT até pode se reconstituir como a principal expressão partidária do bloco popular. Mas a política, como a guerra, comporta o acaso e depende dos erros e acertos das lideranças.

Fora de situações revolucionárias podemos entender por esquerda os grupos que conferem centralidade estratégica à disputa eleitoral. A rigor são partidos que aceitam a Ordem vigente ou se declaram por uma Revolução dentro dela. Pequenos agrupamentos revolucionários e clandestinos e coletivos anarquistas prosseguem no campo da propaganda e educação política contra a Ordem e podem desempenhar papel relevante em crises políticas como em junho de 2013. Mas aquela oportunidade histórica foi perdida e o horizonte da esquerda se rebaixou.

O sistema partidário brasileiro, quando visto apenas formalmente, é instável e descontínuo. Mas quando lido do ângulo da História e das notáveis permanências surpreende. A comparação de PT, PMDB e PSDB com PTB, PSD e UDN é trivial por causa disso. Na esquerda ainda se podia agregar o PCB que agia indiretamente por outras legendas e mantinha notável trabalho de propaganda com cursos, atividades culturais, edição de livros e uma rede de jornais. Sua incidência no debate econômico jamais foi desprezível e o seu programa mobilizava a inteligência nacional.

A Ditadura de 1964 pretendeu sufocar aquela experiência semidemocrática, mas uma esquerda de massas emergiu novamente nos anos 1980. Sem entrar no mérito do que teria sobrado do PSDB e do PMDB, depois do golpe de 2016 os partidos oposicionistas com algum grau de coesão ideológica foram o PT, Psol e PC do B. Políticos da Rede, PDT, PMDB e PSB eventualmente se deslocaram para este campo constituindo um segundo agrupamento de forças oposicionistas com menor grau de organicidade.

No interior desse arco político há diferenças ideológicas. O PC do B guarda maior semelhança com um partido de quadros com alguma influência de massas, emulando o antigo PCB. O Psol se posta à esquerda, mas enquanto organização de tendências sua função (não seu programa) talvez se assemelhe à do antigo PSB que abrigava marxistas independentes, trotskistas e socialistas reformistas; e o PT é uma agremiação mais complexa por combinar um pouco de cada uma dessas agremiações.

Para uma história das ideias seria interessante cotejar resoluções, programas e propostas parlamentares dos partidos, mas isso diria pouco sobre estrutura e bases sociais. Para uma história social não importa muito se um partido se diz comunista e na prática desempenha um papel típico de uma organização eleitoral reformista. O caso do PT é exatamente esse: seus dirigentes rejeitaram (e alguns ainda o fazem) a chancela de “social democrata”. Já seus adversários à esquerda e à direita o acusaram de populista ou social liberal. Outros o definiram como um partido da ordem.

Essas caracterizações são um recurso legítimo de disputa política, mas não tem relevância teórica e nem base histórica. A Socialdemocracia remonta ao século XIX, mas sua experiência de governo decisiva (com algumas exceções) é posterior à Segunda Guerra Mundial e coincide com os trinta anos de crescimento econômico mundial.

Curiosamente, essa “experiência” em muitos casos foi mais indireta do que direta. Fora da Escandinávia solidamente social democrata o Welfare State foi erguido por conservadores acuados pelos sindicatos e partidos reformistas da esquerda. Em algum momento dos anos 1950 os políticos no poder dos principais países que representaram o pacto social democrata eram conservadores: Eisenhower (EUA), Harold MacMillan (Gran Bretanha), De Gaulle (França), Adenauer (Alemanha Ocidental), Diefenbaker (Canadá) e os primeiro ministros democrata-cristãos italianos. Nenhum ousou desmantelar políticas sociais [1].

Uma inversão aconteceu nos anos 1980 depois da crise fiscal do Estado e da queda da taxa de lucro média nos países desenvolvidos e quem implantou a política econômica liberal foi tanto a esquerda socialista de François Miterrand na França e Felipe González na Espanha, quanto a “nova” direita de Margareth Tatcher e Ronald Reagan na Grã Bretanha e Estados Unidos.

Não era costume chamar os partidos socialdemocratas e trabalhistas de sociais liberais, termo que tem um uso muito elástico e pode se referir tanto aos liberais de esquerda da resistência italiana como a líderes de centro atacados pela nova direita como é o caso do presidente francês Macron. Ora, a palavra “democrata” que forma o nome de alguns partidos europeus poderia ser substituída por “liberal”, já que a democracia com a qual eles se comprometeram historicamente foi a liberal.

Três vezes PT

O PT é a ponta do iceberg partidária de um vasto campo popular que se formou nos anos 1980 com setores da Igreja, a liderança de Lula, CUT, MST etc. O petismo, portanto, é mais que o PT e às vezes está em contradição com ele. É um fenômeno tão complicado quanto o peronismo porque se encontram políticos que se acreditam apenas gestores eficientes até militantes que se consideram marxistas.

A título de mera analogia didática e histórica poder-se-ia dizer que o partido é como o antigo PSD na cúpula, onde as lideranças se articulam no mundo estabelecido dos acordos; é o velho PCB nos quadros intermediários onde sobrevivem as tendências de esquerda; e se parece ao velho PTB na base.

Não se trata apenas de três níveis estanques [2], mas de três díades marcadas por nuances, tensões, acordos provisórios, rupturas e às vezes conflito aberto. No primeiro andar é comum que haja ações pontuais de direita tomadas por algum mandatário executivo e uma tentativa da Direção Nacional de contê-las.

No segundo nível está a máquina burocrática interna. Ali a clientela do primeiro patamar ocupa majoritariamente os cargos, mas como é desprovida de um discurso articulado e coerente submete-se à direção intelectual e moral dos quadros de esquerda. Essa disputa é fundamental porque é a partir desta contradição interna que as lideranças e as bases se vinculam. O exemplo de São Paulo em 2020 com a escolha de uma candidatura sem vínculos nos meios culturais e intelectuais da cidade tem muito a ver com a formação de uma opinião interna que se filtra e se adensa na base.

Por fim o terceiro patamar diz respeito à capacidade que as lideranças e os quadros têm de fazer indivíduos e o partido serem (re) conhecidos pelo campo popular. Isso não está dado e a cada ritual eleitoral é preciso que haja uma cerimônia de batismo em que a presença de Lula tem sido fundamental [3].

As pessoas não vivenciam conscientemente a política no cotidiano e nem o partido tem espaços de sociabilidade permanente. Quando as eleições se aproximam é que o PT pode voltar a existir para além dos seus dois primeiros níveis. Não por outra razão é que a preferência partidária pelo PT em anos eleitorais é maior no segundo semestre. O partido não tem garantia de que representará sua base social. Pode ser punido. Entretanto, em todas as disputas presidenciais e também na cidade de São Paulo ocupou a primeira ou segunda colocação.

É por causa disso que todas as suas rupturas internas ainda não ensejaram uma alternativa à sua esquerda ou à sua direita. Houve desde o início algumas tentativas. Entre os trabalhadores rurais do Acre Osmarino Amâncio saiu do partido pela esquerda, mas deixou de ter o reconhecimento passado. Os agrupamentos que romperam pela esquerda formaram partidos revolucionários sem intenção eleitoral.

Mais comum foi a ruptura pela “direita”, mas nesse caso ela foi feita por depositários de mandatos relevantes: Luiza Erundina, José Fortunatti, Cristovam Buarque e Marina Silva buscaram partidos mais ao centro que o PT mas não lograram conquistar cargos mais importantes do que os que já possuíam. O mesmo se deu com Heloisa Helena e Luciana Genro que romperam à esquerda. Marina Silva teve um bom desempenho na campanha de 2014, conseguindo captar votos de um espectro político inorgânico que já teve outras representações como Mario Covas, Enéas, Heloisa Helena e depois Ciro Gomes. Não há aqui uma apreciação ideológica das candidaturas e sim da base eleitoral.

Decerto os demais partidos de esquerda têm experiências semelhantes. Há neles um deputado que procura se autonomizar da máquina interna mais programática; outro que rompe com algum agrupamento revolucionário; há uma base social que se preocupa com temas que podem ser negligenciados pela direção etc. Mas nada disso acontece na mesma amplitude do campo popular em que o PT se desenvolveu.

Faz parte do anedotário petista uma frase que David Capistrano Filho teria dito: “O PT é composto por soldados vietnamitas, capitães norte-americanos e generais paraguaios”. Os soldados continuarão lá, resta saber se haverá um Giap para liderá-los.

O PT até pode se reconstituir como a principal expressão partidária do bloco popular. Mas a política, como a guerra, comporta o acaso e depende dos erros e acertos das lideranças no campo de batalha. Já a superação do PT exigiria uma crise histórica combinada a uma nova direção capaz de aproveitá-la.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

Notas

[1] Levinson, Marc. An Extyraordinary Time. London: Penguin, 2017, p.24.

[2] Embora Gramsci tenha destacado os três elementos do partido enquanto moderno príncipe, a analogia só faria sentido se os partidos sociais democratas visassem uma revolução contra a ordem. Cf.: Magela, G. Gramsci e o moderno príncipe: a teoria do partido nos cadernos do cárcere. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, p. 183.

[3] Se se fizesse uma análise mais profunda seria preciso ressaltar que se trataria de tipos ideais. O PTB, por exemplo, num grau menor que o PT teve intelectuais trabalhistas e sociais democratas e quadros sindicais importantes e na sua base também houve uma permanente tensão entre os mandatos eletivos e a imensa massa popular das margens inorgânicas do partido. O PT herdou poucos políticos trabalhistas quando surgiu, mas muitos quadros do antigo PSB e do PCB.

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES