Por GILBERTO LOPES*
Estamos chegando no fim da ordem criada no final da Segunda Guerra Mundial, embora ainda não saibamos o que a substituirá
Um novo cenário para a economia mundial
O capitalismo prevaleceu na Guerra Fria porque foi capaz de impor a “disciplina econômica”, a política de ajuste, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. O comunismo entrou em colapso porque não conseguiu fazer isso na Europa do leste. É esta a conclusão de Fritz Bartel, em seu notável livro sobre o fim da Guerra Fria e a ascensão do neoliberalismo, a relação íntima entre o capitalismo financeiro global dos anos 1970 e a frágil estabilidade do socialismo.
Seu livro é a história desse momento de ajuste nos anos 1970 e 1980, que provocou mudanças fundamentais no cenário mundial.
Nas primeiras décadas da Guerra Fria – nos anos 1950 e 1960 –, observou-se um período de elevado crescimento da economia de grande parte do mundo. Entre 1950 e 1973, o PIB per capita cresceu a uma média anual de 4,1% na Europa Ocidental, 2,5% nos Estados Unidos e 3,8% na Europa do leste.
Em meados dos anos 1970, este crescimento econômico desacelerou-se. O sistema de Bretton Woods estabelecia valores fixos para a troca de moedas dos países ocidentais e regulava o fluxo de capitais de curto prazo. Em 1971, Nixon eliminou a taxa fixa de convertibilidade do dólar em ouro, permitindo a flutuação da taxa de câmbio, a fim de enfrentar a crescente competitividade da indústria europeia e do Japão e o declínio do papel relativo dos Estados Unidos na economia internacional.
Os preços do petróleo quadruplicaram-se em 1973, depois da guerra do Yom Kippur. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) registrou um superávit da conta de transações correntes de 60 bilhões de dólares e, a partir de 1974, a rápida expansão do Euromarket tornou viáveis planos que apenas um ano antes pareciam impossíveis.
Um novo cenário, formado pelas mudanças nos mercados energéticos e financeiros e pelas políticas de ajuste econômico, começou a moldar-se, de modo a definir o resultado da Guerra Fria.
O aumento dos preços do petróleo tornou impossível manter o mesmo esquema de subsídios com que a URSS abastecia seus aliados. O petróleo que estes países recebiam era vendido ao Ocidente a preços de mercado, tornando-se a principal fonte de divisas para os parceiros do mercado comum socialista (Comecon).
O modelo entrou em crise e os países da Europa do leste só conseguiram enfrentá-la graças ao crescimento explosivo do mercado de capitais, que os seguiu financiando. Os créditos em Eurocurrency ao mundo comunista aumentaram 36% em 1976, para 3,2 bilhões de dólares, e pareciam não ter fim. O custo dos empréstimos em dólares era praticamente zero.
A economia do mundo socialista desmorona-se
Confrontada com sua própria crise, a URSS acabou alterando sua política de subsídios. A URSS fornecia à Polônia 13 milhões de toneladas de petróleo a 90 rublos por tonelada. O preço internacional era de 170 rublos. O mesmo acontecia com os outros países do bloco. O Kremlin fornecia ¾ do petróleo à Europa do leste. Em 1975, decidiu ajustar os preços de seu petróleo de acordo com uma fórmula baseada no preço médio dos últimos cinco anos. A economia soviética já não estava em condições de continuar subsidiando tão generosamente seus aliados.
Era uma decisão que custava milhões de dólares. Para os países da Europa Oriental, representava um encargo extraordinariamente pesado – mais do que um aumento anual do PIB, no caso da RDA – e deixava-os diante de um cenário de eventual quebra, incapazes de cumprir seus compromissos financeiros.
Ao mesmo tempo, a indústria energética soviética estava em crise. Seus aliados pretendiam aumentar a demanda por energia em 47% por volta de 1990, muito acima do aumento da produção, estimado em apenas 23%.
As únicas fontes de financiamento para os países da Europa do leste eram os bancos ocidentais e os organismos financeiros internacionais (ou a República Federal da Alemanha, da qual dependia especialmente a RDA), que operavam com uma condicionalidade crescente, exigindo ajustes fiscais severos e a privatização de empresas públicas.
Entre 1970 e 1976, os membros do Comecon, com exceção da URSS, acumularam um déficit comercial com o Ocidente de 26 bilhões de dólares. De 1971 a 1975, a dívida do bloco socialista com o Ocidente passou de 764 milhões de dólares para 7,4 bilhões de dólares. Só a dívida da RDA com o mercado financeiro ocidental, no final de 1974, era de cerca de 3,5 bilhões de dólares e as projeções de seu crescimento já indicavam que o processo se tornara inviável.
Em março de 1977, os responsáveis econômicos da RDA avisaram Erick Honecker, secretário-geral do partido, que, pela primeira vez, enfrentavam graves dificuldades de pagamento. As divisas obtidas com as exportações não eram suficientes para cobrir as necessidades de importação. Se a RDA tivesse que comprar no Ocidente o petróleo fornecido pela URSS, teria que desembolsar mais 4,5 bilhões de Valutamarks (VM, a moeda de contas da RDA) entre 1974 e 1976.
Com os fornecimentos de petróleo para o quinquênio 81-85 congelados ao nível de 1980, eram 19,5 milhões de toneladas de petróleo a menos do que o inicialmente previsto nos planos quinquenais. Cerca de 3,2 bilhões de dólares teriam que ser importados do Ocidente. Seriam necessários novos empréstimos, no momento em que a confiança dos bancos ocidentais na economia dos países socialistas começava a enfraquecer.
No final de dezembro de 1979, a URSS invadiu o Afeganistão. O presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, reagiu decretando um embargo aos grãos soviéticos e propondo que os bancos norte-americanos revissem suas políticas de crédito ao mundo socialista.
Com a instabilidade, os bancos estrangeiros começaram a sacar seus depósitos de curto prazo dos bancos estatais da Europa do leste num ritmo alarmante. No segundo trimestre de 1982, os assessores econômicos da Alemanha Oriental advertiam que, se não obtivessem novos créditos, teriam que declarar insolvência.
Estamos sendo atacados, disse o banqueiro húngaro János Fekete à Euromoney em 1982. Não se tratava de uma ameaça militar, mas que as instituições financeiras de todo o mundo estavam retirando seus recursos do bloco comunista. As portas do Euromarket foram fechadas para o Comecon. Na primavera de 1982, os bancos estrangeiros retiraram 1,1 bilhão de dólares da Hungria, deixando-lhe apenas 374 milhões de dólares para efetuar seus pagamentos.
Em 1981, o governo polonês tentou impor um racionamento. Os preços dispararam, os salários caíram e muitos poloneses foram direcionados a “novos empregos”. Para enfrentar os protestos, o presidente Wojciech Jaruzelsky decretou a lei marcial em dezembro, com graves consequências políticas para um governo já enfraquecido.
A mudança de cenário da Guerra Fria
Em setembro de 1983, na Inglaterra, Margaret Thatcher anunciou seu plano de fechar 75 minas de carvão e de reduzir a força de trabalho de 202.000 mineiros para 138.000. A ideia era quebrar a espinha dorsal da força sindical inglesa, para impor a política de ajuste ao país.
Diante da proposta, o poderoso National Union of Mineworkers (NUM) entrou em greve. Mas, depois de três meses, as sondagens mostravam que 71% do país era a favor do fechamento das minas deficitárias; 51% da população preferia o triunfo do governo; e apenas 21% apoiavam os trabalhadores.
Em 3 de março de 1985, após mais de um ano de greve e já sem recursos, os mineiros começaram a retornar ao trabalho, sem terem obtido qualquer concessão do governo. Cinco anos depois, 170 minas, mais da metade das existentes, foram fechadas e 79.000 mineiros perderam seus empregos.
As mesmas forças conservadoras que apoiavam as reformas na Inglaterra sustentavam a oposição na Polônia. Enquanto o líder dos mineiros, Arthur Scargill, não conseguiu construir uma base de apoio popular para sua greve, na Polônia, o sindicato Solidariedade tinha o apoio de dez milhões de pessoas em seus protestos contra o governo. O governo socialista não dispunha dos mesmos recursos para impor uma política de austeridade que o governo conservador inglês, um aspecto que Fritz Bartel, na minha opinião, não destaca.
Fritz Bartel argumenta que, ao contrário do que alguns pensam, a crise do mundo socialista não surgiu com a perestroika nos anos 1980, mas com a crise do petróleo de 1973 e seu crescente endividamento.
A grande demanda de capitais por parte dos Estados Unidos, consequência de seus déficits orçamentários e das elevadas taxas de juro pagas, graças às políticas de ajuste do presidente da Reserva Federal, contribuiu para desviar para a economia norte-americana empréstimos anteriormente investidos na Europa do leste. Esta situação, associada à redução do abastecimento soviético de energia subsidiada, levou as economias do leste europeu a uma inevitável renegociação de seus empréstimos com os bancos ocidentais.
A Hungria negociou um acordo com o FMI em dezembro de 1982, que lhe rendeu 700 milhões de dólares em empréstimos do Banco Mundial. Mas, para criar um superávit fiscal e começar a pagar suas dívidas, teve que adotar medidas drásticas: aumento de preços, corte de subsídios, fechamento de empresas, redução do déficit fiscal e desvalorização de sua moeda, o florim.
A Polônia aderiu ao FMI no verão de 1986. Os soviéticos não gostaram da medida, mas não podiam evitá-la. A dívida da Polônia era de 30 bilhões de dólares.
A Alemanha Oriental não queria fazer um acordo com o FMI. Preferiu negociar com a RFA condições para a abertura da fronteira em troca de novos recursos. Foram emprestados dois bilhões de marcos, entre 1983 e 1984, “o que tornou a RDA dependente do marco alemão como um viciado em heroína depende desta”.
Estes resgates significaram uma mudança dramática no equilíbrio de poder no cenário da Guerra Fria.
O “sucesso” do capitalismo democrático ou a decadência do Ocidente
Para Fritz Bartel, o capitalismo democrático prevaleceu porque foi capaz de impor ajustes econômicos a seus cidadãos, ganhando apoio para um discurso que insistia na indispensabilidade de tais reformas. O comunismo colapsou porque não conseguiu fazer isso. Foi o triunfo do “There is no alternative” de Margaret Thatcher.
A perestroika, o processo de reformas promovido por Mikhail Gorbachev na URSS nos anos 1980, é vista como a versão socialista da “economia pelo lado da oferta”. Procurou alterar a política de pleno emprego, de preços e de subsídios.
Para Fritz Bartel, a tentativa fracassou porque os dirigentes soviéticos não conseguiram impor reformas econômicas dolorosas, entre outras razões, porque lhes faltava a tradição ideológica liberal, que priorizava o individual. Em sua opinião, as crises polonesa e inglesa mostraram que o “capitalismo democrático” produz um Estado mais forte e mais legítimo do que o “socialismo autoritário”.
Mas a análise de seu próprio texto nos permite destacar a diferente situação econômica dos dois mundos como o fator-chave para estes resultados: a de um socialismo enfraquecido, cada vez mais dependente dos recursos do Ocidente, contra um capitalismo “fortalecido” pelas políticas de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, cujas reformas estavam na mesma direção dos interesses do capital.
Na reunião anual do FMI, em 1986, Janos Fekete argumentou que, desde a crise da dívida dos anos 80, o fluxo de capitais tinha tomado uma direção errada: dos países pobres para os países ricos, dos países em desenvolvimento para os países desenvolvidos.
Na primeira metade dos anos 1980, a combinação das políticas de ajuste promovidas por Paul Volcker; o aumento das despesas militares (resultado da corrida armamentista em que as duas superpotências estavam envolvidas); a queda dos preços internacionais do petróleo e da produção na URSS, criaram dois blocos políticos com capacidades materiais e econômicas muito diferentes.
Se, entre 1972 e 1982, 147 bilhões de dólares entraram nos países em desenvolvimento, a tendência inverteu-se. Entre 1983 e 1987, 85 bilhões de dólares foram transferidos para os países desenvolvidos. Ajustes severos enfraqueceram a possibilidade de crescimento futuro, enquanto o superávit obtido através de grandes sacrifícios destinava-se ao pagamento de juros.
Ronald Reagan conseguiu resolver o problema do déficit crescente norte-americano com a entrada massiva de capitais estrangeiros, na sequência do aumento das taxas de juro decretado por Paul Volcker. Confrontado com seus próprios problemas, o governo soviético teve que se preocupar com as condições de vida de sua população. Para Mikhail Gorbachev, a alternativa para resolver suas dificuldades econômicas era acabar com o sistema de preços subsidiados de trocas com o Comecon e fixá-lo em moedas fortes, a preços de mercado.
Mikhail Gorbachev começou a sugerir que cada país resolvesse seus próprios problemas. A política de subsídios não podia continuar como antes, nem voltariam os dias de intervenção militar nos países em crise, como acontecera na Hungria em 1956 ou na Tchecoslováquia em 1968. Foi uma mudança fundamental, de enormes consequências para a época, que lançou as bases das novas relações da Rússia com seus antigos aliados.
Mas é na reforma econômica, que pôs a economia russa de pé, que reside um fator-chave para explicar a Rússia de hoje. O que era então sua fraqueza, lançou as bases para a fortaleza que hoje demonstra face às sanções draconianas do Ocidente no contexto da guerra da Ucrânia. Ao substituir o sistema de subsídios, que sangrava sua economia, pela troca a preços de mercado, estabeleceu as bases para seu próprio desenvolvimento, baseado em seus recursos naturais.
Nas mudanças que já fazem cerca de 50 anos e que alimentaram o voo curto dos que sonhavam com o “fim da história”, escondiam-se os fundamentos de uma história muito diferente, em que se encontravam as raízes da decadência do Ocidente.
A unificação alemã e as ambições de Washington
Na República Democrática Alemã (RDA), a situação econômica e política continuava deteriorando-se. Nos últimos dois meses de 1985, o preço do petróleo nos mercados internacionais despencou. O petróleo refinado era o principal produto de exportação da RDA. Era produzido a partir de petróleo cru fornecido pela URSS a preços subsidiados. Em 1985, a RDA exportou 2,5 bilhões de volutamarks (VM), valor que baixou para 1 bilhão em 1986 e para 900 milhões no ano seguinte.
A austeridade parecia ser a única forma de evitar a insolvência do Estado. Se o país quisesse manter o fluxo de capitais aberto, teria que duplicar suas exportações, mantendo-se constantes as importações. Para isso, seriam necessárias reformas econômicas, incluindo o aumento dos preços, eliminação de subsídios, fechamento de empresas e desemprego. Contudo, o secretário-geral do partido e presidente da RDA, Erick Honecker, estava relutante em reduzir os benefícios do sistema social alemão.
A dívida com o Ocidente tinha aumentado de dois bilhões de VM em 1970 para 49 bilhões de VM em 1989, o que deixava o país completamente dependente do capital ocidental, e 65% das despesas eram financiadas por créditos. Em 1990, só para manter a dívida estável, seria necessário reduzir o consumo entre 25% e 30% e obter um superávit comercial de 2 bilhões de VM.
A RDA só poderia sobreviver com empréstimos de sua rival, a RFA, a menos que conseguisse obter apoio da URSS. Em 1 de novembro de 1989, Egon Krenz, que tinha substituído Erich Honecker como chefe de Estado e do partido em outubro, viajou a Moscou para se encontrar com Mikhail Gorbachev. O líder soviético teria ficado surpreso com a gravidade da situação econômica da RDA, mas reiterou que não lhe podia fornecer mais do que o previsto no plano quinquenal 86-90.
Em 4 de novembro, cerca de meio milhão de pessoas reuniram-se na Alexander Platz, em Berlim, exigindo reformas. Era a véspera da queda do muro. Alexander Schalk, diretor da Seção de Coordenação Comercial da RDA, viajou a Bonn para se encontrar com o ministro federal de assuntos especiais, Rudolf Seiters, e com o ministro do interior, Wolfgang Schauble. Informado dos resultados da reunião, o chanceler Kohl decidiu impor condições a Krenz: exigiu uma data para a realização de eleições, com a participação política da oposição, em troca de apoio financeiro. Os recursos da RFA só seriam disponibilizados se a RDA criasse condições de mercado para a economia e a abrisse à atividade privada.
Em dezembro, um mês após a queda do muro, Krenz foi substituído pelo secretário do partido em Dresden, Hans Modrow. Kohl chega a Dresden em 19 de dezembro para se encontrar com Modrow: voltou a defender que uma lei que garantisse eleições livres e um marco jurídico que protegesse os investimentos estrangeiros na RDA eram condições indispensáveis para a ajuda. Modrow antecipa as eleições, inicialmente previstas para maio, para 18 de março de 1990 e solicita aos alemães ocidentais um novo empréstimo de 15 bilhões de marcos alemães.
As eleições foram vencidas pela opositora “Aliança pela Alemanha”, com 48% dos votos, e o líder da União Democrata-Cristã (CDU), da Alemanha Oriental, Lothar de Maizière, tornou-se o novo primeiro-ministro.
Em 6 de fevereiro, Kohl tinha anunciado sua intenção de iniciar imediatamente negociações para unificar as moedas das duas Alemanhas. O processo de unificação acelerava-se, mas uma Alemanha unida era vista com desconfiança tanto pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher como pelo presidente francês François Mitterrand. O norte-americano George Bush, no entanto, não parecia estar preocupado. Ao contrário, os Estados Unidos buscava consolidá-la. A Alemanha era o suporte de sua presença na Europa, por isso sua adesão unificada à OTAN era de importância vital para Washington.
A perestroika e os ajustes econômicos na URSS
A economia da URSS também estava em queda livre. No primeiro semestre de 1987, Gorbachev tinha transformado a perestroika numa campanha de reformas radicais. A ideia era substituir a coerção administrativa do Estado pela coerção econômica do mercado. A ideia era fazer com que os lucros privados (das empresas públicas), as falências, a desigualdade salarial e a mobilidade do trabalho passassem a fazer parte das regras econômicas.
Há quem considere que este foi o início do abandono do socialismo, uma ideia que não compartilho. A este respeito, gostaria de salientar que, para mim, o aspecto fundamental – a propriedade – continuava pertencendo ao Estado.
Mas os dirigentes soviéticos não tinham sido capazes, em quatro anos, de deter a deterioração de sua economia. A reforma do sistema de preços, essencial para a perestroika, revelou-se politicamente impossível. A liberalização dos preços e o desemprego só se concretizaram realmente quando Boris Iéltsin chegou ao poder na Rússia, em 1992.
Mikhail Gorbachev perguntava-se qual seria a saída: aumento dos preços? Os vastos recursos naturais da Rússia permitiram-lhe evitar a dependência do capital ocidental. Mas o colapso dos preços do petróleo em 1985-86 e as reformas econômicas dos primeiros anos da perestroika tinham deteriorado a balança de pagamentos.
Em abril de 1990, o presidente do banco de comércio exterior da Rússia, Yuri Moskovskii, avisou Mikhail Gorbachev da dificuldade de obter novos recursos diante de uma atitude cada vez mais negativa dos credores estrangeiros. O problema não era tanto o montante da dívida, mas o ritmo do crescimento: tinha passado de 16 bilhões de dólares em 1985 para 40 bilhões em 1989.
A experiência de vários países nos anos 1980 (como México, Brasil e outros países latino-americanos, assim como a Polônia e a Iugoslávia) mostrava que o adiamento do pagamento da dívida tinha consequências econômicas e políticas adversas. Mas renegociar a dívida não estava nos planos dos soviéticos, pois isso os deixaria nas mãos do FMI.
As negociações sobre a OTAN
Em 14 de maio de 1990, os líderes soviéticos reúnem-se com enviados da RFA para discutir sua situação econômica. O governo alemão afirma que o apoio financeiro só será concedido se fizer parte de um pacote que inclua uma solução para o “problema alemão”: unificação do país, adesão à OTAN e retirada das tropas soviéticas.
Quando o secretário de estado James Baker chegou a Moscou, em meados de maio, disse a Gorbachev que a OTAN deixaria de ser uma ameaça para a URSS porque passaria de uma organização militar para uma organização de caráter político, que não se ampliaria à Alemanha Oriental. Apresentou-lhe uma lista de nove reformas nesse sentido. Quando o Pacto de Varsóvia se desfez, seus antigos membros, incluindo a URSS, foram convidados a enviar uma representação diplomática para a sede da OTAN em Bruxelas.
Os Estados Unidos considerava a possibilidade de dar à URSS os 20 bilhões de dólares que esta pedia para retirar suas tropas da Europa central e permitir que a Alemanha aderisse à OTAN. Mas a oferta de Baker não era a única sobre o assunto em Washington. Bent Scrowcroft, conselheiro de segurança nacional de George Bush, escreveu-lhe um memorando em 29 de maio. Garantiu-lhe que a ajuda econômica era uma forma direta e rápida de garantir a vitória do Ocidente na Guerra Fria, que seria uma opção estratégica para conseguir a unificação da Alemanha na OTAN e a retirada dos militares soviéticos da Europa do leste.
Se Mikhail Gorbachev estivesse disposto a aceitar estes termos, a assistência financeira poderia definir o armistício da Guerra Fria a nosso favor, afirmou. Na sua opinião, as mudanças em curso seriam irrelevantes se os Estados Unidos não conseguissem perpetuar seu próprio poder no continente.
As exigências da URSS
A união monetária alemã estava prevista para 1 de junho, o que significava que o custo da manutenção das tropas soviéticas na Alemanha dispararia. O custo teria que ser pago agora em marcos alemães e não na moeda desvalorizada da RDA. Dos seis milhões de toneladas de petróleo que custava, passaria para 17 milhões, se nada mudasse. Este valor era muito superior ao que a URSS fornecia a toda a RDA.
Ficava pendente a reação da Rússia. Qual seria o lugar desta Alemanha: na OTAN, no Pacto de Varsóvia, neutra? Para Gorbachev, manter a Alemanha fora da OTAN era fundamental. A URSS ainda tinha 380.000 soldados na Alemanha. A Guerra Fria não podia terminar sem resolver esta questão. “Ninguém devia esperar que uma Alemanha unificada aderisse à OTAN”, disse Gorbachev. “A presença de nossas forças não o permitiria. Podemos retirá-las, se os Estados Unidos fizerem o mesmo”.
O Kremlin exigiu que a RFA assumisse os compromissos da RDA com a URSS. Esta demanda era compatível com a estratégia de Kohl, que estava disposto a resolver estes problemas com os recursos financeiros alemães. Quando Gorbachev se encontrou com o chanceler alemão, em 15 de julho, pediu-lhe um plano de retirada das tropas soviéticas do país e um acordo sobre a adesão da Alemanha à OTAN. Disse-lhe que, se a URSS garantisse a total soberania da Alemanha, estava disposto a financiar a retirada das tropas e a assinar um amplo tratado de cooperação. Se decidissem aceitar a unidade da Alemanha, os alemães os ajudariam a manter sua economia em funcionamento.
No final de agosto, sentaram-se para negociar esta ajuda. Os soviéticos pediram 20 bilhões de marcos e Kohl ofereceu oito. Depois, aumentou sua oferta para doze e, finalmente, para quinze. Gorbachev concordou com a adesão da Alemanha à OTAN, mas exigiu que esta não fosse estendida à Alemanha Oriental enquanto as tropas russas lá estivessem, o que poderia demorar de três a quatro anos, de acordo com os direitos de ocupação da Segunda Guerra Mundial.
Em 12 de setembro, as potências ocupantes da Alemanha assinaram um acordo em Moscou renunciando a esses direitos. Em 3 de outubro de 1990, Kohl celebrou a absorção da RDA pela RFA na Porta de Brandemburgo. Um mês depois, no aniversário da queda do Muro de Berlim, Gorbachev e Kohl assinaram um acordo sobre a retirada das tropas soviéticas da Alemanha em três anos.
Promessas não cumpridas? Uma nova ordem mundial
O debate sobre o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Unidos e pela Alemanha diante da União Soviética nas negociações de 1990 sobre a ampliação da OTAN para o leste, ganhou renovada atualidade com o conflito na Ucrânia.
Em novembro de 1990, um ano depois da queda do Muro de Berlim, os países membros da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) assinaram a “Carta de Paris para uma nova Europa”. “A Europa está libertando-se da herança do passado”. “A era da confrontação e da divisão da Europa terminou”, afirmam no primeiro parágrafo do documento. Trinta e quatro anos depois, é evidente que nada disto era verdade.
“Havia ou não garantias ocidentais de que a OTAN não se expandiria para leste em troca do acordo soviético para a reunificação alemã?”, perguntava a acadêmica norte-americana Mary Elise Sarotte num artigo publicado em 2019, trinta anos após a queda do Muro de Berlim. Na verdade, tratava-se da atualização de um artigo que a mesma autora tinha publicado em 2014 na revista Foreign Affairs. Não é possível pretender resolver esta questão aqui, mas o trabalho de Mary Elise Sarotte está atualizado, com referências a arquivos oficiais recentemente desclassificados, sendo meticulosa sua análise destas referências.
A que conclusões ela chega? “As provas mostram que, ao contrário do que se pensa em Washington, a questão do futuro da OTAN – não apenas na RDA, mas em toda a Europa Oriental – surgiu em fevereiro de 1990, pouco depois da queda do Muro”.
“Altos responsáveis estadunidenses, trabalhando em estreita colaboração com os líderes da RFA, deram a entender a Moscou, durante as negociações deste mês, que a Aliança não poderia se expandir, nem mesmo para a metade oriental de uma Alemanha ainda por reunificar-se”.
As provas documentais, diz Mary Elise Sarotte, mostram que “os Estados Unidos, com a ajuda da RFA, foram rápidos a pressionar Gorbachev para que concordasse com a reunificação, mas sem fazer quaisquer promessas escritas sobre os futuros planos da Aliança”. Em poucas palavras, acrescenta, sobre esta questão “nunca houve qualquer acordo formal, como alega a Rússia”.
Parece evidente que não existe um acordo formal, escrito. Mas também parece evidente que a questão foi discutida e as promessas, feitas por alguns, foram mais tarde revistas por outros altos funcionários norte-americanos.
Mary Elise Sarotte acrescenta que, de acordo com documentos conservados no ministério das relações exteriores da RFA, Hans Dietrich Genscher, então ministro das relações exteriores, disse a seu colega britânico Douglas Hurd, em 6 de fevereiro de 1990, que “Gorbachev queria eliminar a possibilidade de uma futura expansão da OTAN para a RDA e para o resto da Europa Oriental”. Genscher propôs que a Aliança declarasse publicamente que a organização não tinha “intenção de expandir seu território para leste. Tal declaração deveria ser de carácter geral e não deveria fazer referência apenas à Alemanha Oriental”.
O debate prossegue nesta linha. Na ausência de um compromisso escrito, há quem defenda que não existe qualquer compromisso, como Mark Kramer, diretor do projeto de Estudos sobre a Guerra Fria na Universidade de Harvard, que discorda de Sarotte. Outros – incluindo os russos – reiteram as diferentes ocasiões em que a questão foi discutida e as promessas feitas de não ampliar a OTAN para o leste.
Como sabemos, para a Rússia, a promessa não foi cumprida. Vladimir Putin referiu-se a este caso em seu grande discurso na Conferência de Segurança de Munique, em 2007. “O que aconteceu com as garantias que nossos parceiros ocidentais nos deram após a dissolução do Pacto de Varsóvia?”, perguntou.
O fato é que a OTAN continuou expandindo-se para o leste, até às fronteiras da Rússia, criando uma realidade política muito diferente daquela que os países europeus imaginaram em 1990, em sua “Carta de Paris”.
Um novo muro foi percorrendo mais de mil quilômetros para o leste, até que a Rússia decidiu rompê-lo em fevereiro de 2022, quando suas tropas atravessaram a fronteira ucraniana. Moscou declarou inaceitável sua adesão à OTAN, criando uma nova realidade política na Europa com repercussões mundiais, cujo resultado porá fim à ordem criada no final da Segunda Guerra Mundial, embora ainda não saibamos o que a substituirá.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Para ler o primeiro artigo dessa série clique em https://aterraeredonda.com.br/o-fim-da-guerra-fria-e-a-decadencia-do-ocidente/
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