A situação na Nicarágua

Imagem: Aboodi Vesakaran
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Por GILBERTO LOPES*

É inegável a responsabilidade dos Estados Unidos no caos econômico criado na Nicarágua

Um relatório da empresa subcontratadora Chemonics International Inc. para a USAID [Agência dos Estados Unidos para o desenvolvimento interncional] avalia os resultados de vários programas desenvolvidos na Nicarágua entre abril de 2013 e fevereiro de 2018. Em suas 61 páginas, definem-se os objetivos e os resultados dos diversos programas de apoio a 17 organizações da sociedade civil nicaraguense.

Entre os objetivos do programa estava o de fortalecer a capacidade destas organizações “para melhor defender as demandas dos cidadãos através do projeto de promoção das capacidades da sociedade civil”. Tratava-se de fornecer à USAID informações úteis para que as organizações-chave – que já recebiam recursos da USAID para atividades que o projeto chama de “democracia e governabilidade” – pudessem atingir da melhor maneira seus objetivos comuns. Pretendia-se aumentar a capacidade das ONGs para conscientizar e mobilizar os cidadãos; “incrementar a capacidade de coordenação das ONGs e dos indivíduos, do setor privado e dos meios para promover a conscientização, a defesa e o ativismo”.

O projeto visava fortalecer as capacidades de comunicação por meio da criação de “ferramentas de meios digitais”. Veríamos mais tarde o conteúdo destas campanhas de conscientização e ativismo. O documento especifica algumas organizações beneficiárias, a realização de seminários com jornalistas e grupos de direitos humanos, particularmente importantes para o que descreve como um “contexto político desafiante” na Nicarágua.

Os participantes “aprenderam a encriptar informação em seus telefones celulares, computadores e outros equipamentos para prevenir ataques cibernéticos e a manipulação de seus dispositivos de comunicação ou sites com informação importante para os nicaraguenses”. Os recursos do programa concederam também às ONGs uma maior capacidade para “propor reivindicações e desenvolver ações específicas de reivindicações”.

Uma interferência multimilionária

O documento a que nos referimos não é o único sobre as atividades da AID na Nicarágua. No site da USAID, afirma-se que “o governo dos Estados Unidos forneceu quase 2,5 bilhões de dólares em ajuda ao desenvolvimento da Nicarágua, principalmente através da AID”, desde a sua criação em 1962.

De acordo com sua estratégia atual – cuja definição pode ser vista na internet –, a USAID “fornece formação e assistência técnica a organizações da sociedade civil sobre as normas internacionais e as melhores práticas para reivindicar efetivamente as práticas democráticas e os direitos humanos”. Dos 2,5 bilhões de dólares que a agência investiu na Nicarágua, 507 milhões foram empregados em “esforços para estabilizar a economia, enfrentar o aumento da inflação e pagar dívidas com instituições multilaterais”, além dos 36,3 milhões investidos “em programas de geração de emprego” nos anos 1990.

Recorde-se que em 25 de abril de 1990, Violeta Barrios de Chamorro assumiu como presidente, eleita após anos de guerra organizada e financiada pelos Estados Unidos contra o governo sandinista. Realizadas no meio do caos provocado pela intervenção militar, com a economia afetada pelas sanções econômicas, não havia possibilidade de vitória dos sandinistas naquelas eleições, considerando, ademais, que o governo norte-americano tinha prometido continuar a guerra se isso acontecesse.

Em síntese, os Estados Unidos dedicaram milhões de dólares para combater a revolução sandinista nos anos 1980, para provocar o caos em sua economia, incluindo os recursos do escândalo conhecido como “Irã-contras”, para mais tarde aportar outros milhões para apoiar os planos de reconstrução de seus aliados. Como não reconhecer a responsabilidade dos Estados Unidos no caos econômico criado na Nicarágua, que depois tentou resolver com pouco mais de 540 milhões de dólares, o que se revelou insuficiente para reorganizar a economia do país, como se tornou evidente se olharmos para os resultados 30 anos após essa intervenção.

Os interesses especiais num possível canal interoceânico através da Nicarágua, em concorrência com o Canal do Panamá, fizeram das intervenções militares norte-americanas na Nicarágua uma política habitual. Como resultado, a resistência a tal intervenção tornou-se particularmente relevante com a rebelião do general Sandino, assassinado em fevereiro de 1934 pelas forças políticas e militares nicaraguenses instaladas no poder por Washington. Desde então, a política nicaraguense tem sido incapaz de encontrar um cenário em que sandinistas e anti-sandinistas possam enfrentar-se, sem que a intervenção norte-americana desequilibre o que deveria ser uma disputa política “normal” sobre diferentes visões do país.

A intervenção massiva dos anos 1980 deu origem a uma nova etapa política, em que o sandinismo e o anti-sandinismo, deformados, procuraram reacomodar-se e sobreviver, fazendo com que o sandinismo se dividisse, e Ortega assumisse o poder em sucessivas eleições, com a oposição cada vez mais encurralada, até chegar aos protestos de 2018 e à repressão que se seguiu. A divisão do sandinismo na sequência da derrota eleitoral de fevereiro de 1990 é um dos acontecimentos que contribuiu para o desenvolvimento da atual ordem política no país. A prisão, exílio, expropriação e retirada da nacionalidade de destacados líderes da revolução sandinista dos anos 1980 só pode ser vista como o fracasso de um processo que conseguiu unir naquele momento uma vontade majoritária em apoio ao processo revolucionário.

Conhecendo os programas e recursos postos à disposição da oposição pela AID e revisando seus objetivos e o período de desenvolvimento destes programas (2013-2018), é, no mínimo, uma ingenuidade pensar que os protestos de abril de 2018 foram uma rebelião espontânea. A oposição saiu para derrubar o governo e o governo respondeu, matando e prendendo os opositores. Tal como em outros lugares do mundo, outro Maidan, outra revolução colorida, gerou um confronto que um desenvolvimento sem essas interferências talvez pudesse tê-lo evitado.

O ar refrescante da América Latina

É neste contexto que a oposição nicaraguense desenvolve uma intensa campanha para minar o apoio da “esquerda” latino-americana a Ortega. Esta campanha – intitulada “A esquerda latino-americana de costas para a ditadura” – é organizada pelos meios digitais da oposição nicaraguense.

Uma campanha dessa natureza poderia oferecer à esquerda latino-americana uma alternativa ao governo Ortega. Mas se limita a argumentar que o governo de Ortega não é de “esquerda”. Seria lógico pensar, portanto, que a “esquerda” está na oposição. Mas não é assim.

Dada a desarticulação da oposição, sua impossibilidade de organizar-se dentro do país devido à repressão governamental, ela define-se ou aglutina-se por detrás do objetivo de depor o governo. Mas é praticamente impossível encontrar uma visão explícita do país que pretendem construir, da ordem econômica que pretendem organizar, ou de sua visão do cenário internacional.

Nessas condições, uma forma de vislumbrar o caráter político dessa oposição é rever as posições dos candidatos presidenciais da oposição nas últimas eleições, todos eles presos e depois extraditados e expropriados por Ortega. Um verdadeiro caos, aplicado com uma crueldade inaceitável. Não há nada nesta oposição que possa ser descrito como de “esquerda”, como a campanha midiática pretende sugerir.

A “esquerda” latino-americana está presa neste jogo. Entre os que apoiam rigorosamente Ortega e os que consideram impensável qualquer apoio a seu governo, um atalho quase desaparecido tem sido ocultado pela floresta. Um atalho que nos leva à casa centro-americana, onde duas janelas precisam ser abertas: uma para deixar sair o ar sufocante de Washington. A outra, para que entre o ar refrescante da América Latina.

Novas realidades

Há 45 anos, era impensável que a América Latina pudesse estender seus interesses a uma região submetida há mais de um século à influência e aos interesses norte-americanos, nascidos não só da proximidade geográfica, mas principalmente de uma localização estratégica, capaz de facilitar o trânsito entre o Atlântico e o Pacífico.

Hoje, não apenas a situação é diferente, como está em rápida e profunda mudança. Na nova ordem mundial, uma maior presença política latino-americana na região parece ser possível e necessária. Questionado sobre a situação na Nicarágua, o presidente brasileiro Lula disse que não estava muito bem informado. Esta já não parece ser uma resposta razoável.

É inaceitável a política norte-americana de sanções unilaterais contra países latino-americanos, cuja principal expressão é a que é imposta há mais de 60 anos a Cuba, apesar da rejeição praticamente unânime, ano após ano, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Seria completamente inconveniente para a América Latina ver um governo nicaraguense que, em caso de vitória da oposição, se juntaria à política de sanções de Washington contra países da região. Mas a oposição nicaraguense não fala publicamente dessas coisas, embora o faça em privado.

Tal como setores importantes da esquerda latino-americana se sentem incomodados com a situação na Nicarágua, a oposição evita cuidadosamente definir-se no cenário político, o que alguns de seus representantes preferem explicar dizendo que já não existe nem esquerda nem direita. Naturalmente, os setores mais conservadores, que lideram a oposição, sentem-se à vontade na direita.

O caos centro-americano

É evidente que o século de intervenção norte-americana não é alheio à incapacidade de organização política dos países centro-americanos. Também não é alheio à sua pobreza e desigualdade econômica, fundamento da riqueza dos velhos magnatas norte-americanos, bem descritos pelo ensaísta costa-riquenho Vicente Sáenz em seus livros, ainda na primeira metade do século passado.

A Costa Rica é a exceção neste caos. Mas há uma explicação para isso. A meu ver, foi graças à obra de um político notável, José Figueres, o mesmo homem que, no final dos anos 1940, aboliu o exército nacional (algo constantemente lembrado por políticos e acadêmicos), mas que fez algo ainda mais importante: nacionalizou o sistema bancário. Esta foi a chave para que o país contasse com recursos para atender a demanda de sua população de uma forma melhor do que outros países da região e pudesse organizar uma ordem política e administrativa que respondesse melhor a essas necessidades.

É verdade, porém, que desde o início dos anos 1980, quando o modelo neoliberal ganhava terreno no mundo e tentavam convencer-nos de que não havia alternativa, um governo que afirmava ser da mesma linha de Figueres iniciou um processo de privatização que, com recursos da AID, visava em primeiro lugar os bancos nacionalizados. Nos 40 anos seguintes, o mesmo partido (o social-democrata Libertação Nacional) consolidou o caminho neoliberal, incluindo uma campanha para a aprovação do Acordo de Comércio Livre com os Estados Unidos baseado numa estratégia conhecida como o “Memorando do medo”. Hoje, o país sente também que perdeu o rumo, que uma certa ordem, sustentada por um Estado preocupado com a vida de seus cidadãos, foi sendo pouco a pouco desmantelada.

A dívida latino-americana

Se o fator de desequilíbrio na política centro-americana, particularmente na Nicarágua, é a intervenção norte-americana, é verdade que a ausência latino-americana não só deixou todo o cenário à disposição de Washington, como também privou de outras opções os setores políticos nicaraguenses que não se sentem confortáveis com o atual cenário.

O novo governo brasileiro optou por não se associar às condenações interessadas, ao uso abusivo da questão dos “direitos humanos”, transformados em instrumento político graças a disposições às quais Washington nunca aderiu, concebidas especialmente para colocar os latino-americanos a brigarem entre si. O governo brasileiro manifestou seu desacordo com medidas como a extradição, a expropriação e a retirada da nacionalidade aos líderes da oposição, mas quis deixar aberta a porta do diálogo. Não é suficiente a proposta de uma política alternativa cujos resultados só serão visíveis a médio e longo prazo. Há uma situação em desenvolvimento que requer uma atenção mais urgente.

A mudança de governo no Brasil, na Colômbia, a posição de López Obrador no México, ou a de Alberto Fernández na Argentina, são uma base importante para a coordenação destas políticas. Os partidos políticos do Sul precisam estar presentes na América Central. Uma direita muito conservadora, a de Piñera e Macri, de Calderón e Fox, de Aznar e Rajoy, uniu-se para fortalecer “a liberdade e a democracia” na região.

É inconcebível que políticos latino-americanos possam encontrar-se com colegas como o espanhol Aznar, precisamente quando se completam 20 anos da invasão do Iraque, que ele justificou jurando ter provas de armas de destruição em massa mantidas por Saddam Hussein. Suas afirmações na época podem ser vistas aqui. Com seus aliados, ele tem a destruição de um país e centenas de milhares de mortos nas mãos.

São estas pessoas que se propõem defender “a liberdade e a democracia” na região. Para confrontá-los, devemos propor uma visão diferente e organizar uma alternativa que responda aos interesses latino-americanos.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros libros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.


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