O golpe contra o livro

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARISA MIDORI DEAECTO*

Por que o projeto de Paulo Guedes representa um retrocesso às políticas de incentivo ao livro e à leitura no Brasil

No dia 21 de julho a Câmara aprovou, em dois turnos, o Projeto de Emenda Constitucional (pec 1515) que torna permanente o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento e Valorização dos Profissionais da Educação). Vitória dos professores, das crianças e dos jovens que há quase dois anos são hodiernamente ultrajados pelos ataques e desmandos do Governo à cultura e à educação do país. E os placares foram esmagadores: 499 votos a 7, no primeiro turno; 492 a 6, no segundo. O “gasto é pesado”, limitou-se a dizer o Presidente abatido. Sem dúvida, um início de semana estranhamente alvissareiro.

Mas, como ensina o dito popular, a vingança vem a cavalo. Paulo Guedes, Ministro da Economia, encaminhou à Câmara dos Deputados o famigerado projeto da reforma tributária. Nem bem terminara a semana e um novo golpe contra a inteligência foi anunciado. É que oprojeto do Ministro recua no tempo e taxa o livro.

Lembremos que a imunidade tributária ao livro, também chamada de imunidade cultural, está prevista na Constituição de 1988: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [VI] – instituir impostos sobre:d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”.

Sem dúvida, um grande avanço da carta cidadã, em um país que apenas acabara de se libertar das trevas da ditadura. E o caminho era ainda árduo, tanto para os profissionais do livro, quanto para toda uma geração de brasileiros alijada do mundo das letras e das leis.

Consoante ao espírito da Carta Magna, as vendas de livros realizadas por gráficas, comerciantes atacadistas e varejistas ficaram isentas das alíquotas do PIS (Programa de Integração Social) e do Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), conforme autorizado pelo inciso vi do art. 28 da Lei nº 10.865 de 2004.O clima era de esperança e urgia enriquecer o tesouro para dividir o pão. Mas livro é alimento; é aposta em um país livre e pensante; livro é mercadoria e fermento cultural.A alíquota zero para as vendas de livros atendiam a uma dupla prerrogativa: o acesso à leitura e a dinâmica do mercado. O que certamente atraiu investimentos de pequenos e médios empresários em um setor de alto risco, considerando a baixa capilaridade do mercado de bens culturais em um país em desenvolvimento.

Galopando na contramão, o projeto de reforma tributária apresentado pelo Ministro Paulo Guedes fere, moralmente,os princípios constitucionais,embora se realize na letra da lei. A proposta consiste na criação de uma alíquota única, a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (cbs),em substituição ao PIS e ao Cofins. Porém, o documento não prevê muitas isenções. Salvo para as entidades beneficentes, os templos de qualquer culto, os partidos políticos, os sindicatos e os condomínios. Sim, aos templos foi mantida a alíquota zero. O setor livreiro, ao contrário, foi lançado à sanha devoradora do mercado.

 Um mercado em queda livre

E o mercado editorial sangra, desde 2016. Os programas governamentais, que nesses últimos vinte anos alavancaram a produção de didáticos e de literatura infanto-juvenil – lançando, inclusive, talentos editoriais e literários no Brasil e no mundo – mitigaram frente ao sacerdócio desconcertado do Ministério da Educação, nesses quase dois anos do governo Bolsonaro.

A crise é muito mais profunda. Entre 2017 e 2018, segundo os dados apurados pela Fipe, o setor de “obras gerais” apresentou variação negativa tanto em termos de faturamento, quanto de vendas (- 3,27% e -9,66%). A queda mais eloquente se deu no subsetor de livros científicos, técnicos e profissionais (ctp), que compreende as obras de Direito, Medicina, Farmácia, Saúde Pública e Higiene, Ciências Humanas e Sociais, Economia Administração e Negócios, Línguas e Linguística. A variação no mesmo período ficou na ordem de -17,33%, enquanto a de exemplares vendidos foi registrada em -20,43%.O encolhimento dos programas de financiamento às pesquisas e seu impacto sobre as edições universitárias merece uma reflexão à parte, embora tenha relação direta com o projeto de desmonte da educação e da cultura do país. Notemos, outrossim, que apenas os livros religiosos apresentaram uma pequena variação positiva (1,07%).O que não deixa de ser um dado curioso, dado o caráter messiânico que se deseja imprimir às questões do Estado. Ainda assim, houve perdas em termos de exemplares comercializados no biênio 2017-2018 (-2,47%)[i]. Não existem dados sobre o comportamento do mercado em 2019-2020. Alguém acredita em uma tendência de recuperação?

As livrarias, por seu turno, minguaram. Segundo balanço divulgado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (cnc), houve o fechamento de 21 mil papelarias e livrarias em todo o país, no período de 2008 a 2018. De acordo com a mesma fonte, o encolhimento das livrarias foi mais acentuado a partir de 2013, atingindo em cheio o estado de São Paulo, que “perdeu 8.764 estabelecimentos. O Rio Grande do Sul perdeu 2.449; Minas Gerais, 2.251; Paraná, 1.659 e Rio de Janeiro, 971. O único estado que apresentou crescimento no número de livrarias foi o Amazonas, que ganhou 62 lojas nos últimos dez anos”[ii].

Na lógica mais armas, menos livros, a economia perde

Parece evidente que o mercado editorial brasileiro não pode ser abandonado à sua própria sorte. Tanto quanto a saúde, a assistência social e a educação, os incentivos governamentais que alicerçam o setor livreiro devem ser encarados como investimento essencial para o bem da saúde e da inteligência da população. E não há exagero nisto. Nem mesmo nos países mais desenvolvidos, onde o setor editorial se apresenta bem consolidado, livreiros e editores são tratados segundo as regras selvagens do mercado. As livrarias francesas recebem subsídios das municipalidades, pois as vendas mais significativas são sazonais e acompanham o calendário escolar, sobretudo nas cidades mais modestas. Os programas de publicação de pesquisas universitárias, por seu turno, alimentam um setor editorial internacionalmente reconhecido, o que eleva o capital simbólico do país e atrai novos investidores.

Devemos ainda considerar que a economia do livro é bastante dinâmica e heterogênea. Ela movimenta capitais oriundos de diferentes setores e, além disso, comporta a presença de pequenos, médios e grandes empresários, os quais representam, inclusive, grupos transnacionais. Estes últimos abocanharam na última década o setor de didáticos e investiram alto em literatura de autoajuda e ficção. Livros que vendem, poderíamos protestar. Mas tudo isso gera um ciclo virtuoso da economia livreira. É preciso lidar com a quantidade e a diversidade em todos os setores, ainda mais, no livreiro. Isso porque a fragilidade da economia do livro se situa nas próprias condições de sua manutenção: uma população alfabetizada, que acolhe a leitura como rotina e, quiçá, como lazer.

Portanto, há um ciclo virtuoso óbvio, que se inicia nas instituições de ensino e de cultura, transferindo-se para a produção editorial e, em seguida, para as livrarias, até atingir o público alvo (ou a clientela). Tudo isso já é bastante conhecido, o que torna o fim da alíquota zero ao livro, tal como previsto no projeto de reforma tributária e, especialmente, na Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (cbs), um ato imoral e irresponsável.

O fim da isenção tributária aos livros inibe novas inversões em um setor incerto e em crise; atinge toda a classe empresarial e os trabalhadores partícipes da cadeia produtiva do livro; além de penalizar o público leitor e os projetos de universalização da leitura, o que certamente deve ser o alvo visado pelo governo atual.Ou seja, ao confundir investimento com gasto, o governo dá mais um tiro no pé.

Não há futuro para um país que faz a apologia às armas e dificulta a circulação de livros.

Até quando esta desrazão?

*Marisa Midori Deaecto é professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (Edusp; Fapesp).

Notas

[i]http://cbl.org.br/downloads/fipe

[ii]https://www.publishnews.com.br/materias/2018/12/10/pesquisa-mostra-que-o-brasil-perdeu-21-mil-livrarias-nos-ultimos-10-anos

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Yuri Martins-Fontes Walnice Nogueira Galvão Berenice Bento Igor Felippe Santos João Feres Júnior Jorge Branco Julian Rodrigues Alysson Leandro Mascaro Annateresa Fabris João Adolfo Hansen Gilberto Lopes Valerio Arcary Antônio Sales Rios Neto Liszt Vieira Alexandre de Freitas Barbosa Fernando Nogueira da Costa Armando Boito Carla Teixeira Rafael R. Ioris Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Carlos Tautz José Machado Moita Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Marjorie C. Marona Boaventura de Sousa Santos Otaviano Helene Lucas Fiaschetti Estevez Francisco Pereira de Farias Marcos Aurélio da Silva Marcos Silva Afrânio Catani Luciano Nascimento Antonio Martins João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bento Prado Jr. Luís Fernando Vitagliano Dênis de Moraes Michel Goulart da Silva Luiz Marques Celso Frederico Manuel Domingos Neto Marcus Ianoni Vinício Carrilho Martinez Kátia Gerab Baggio Priscila Figueiredo Samuel Kilsztajn Thomas Piketty Flávio R. Kothe Heraldo Campos Luis Felipe Miguel Luiz Eduardo Soares Eleutério F. S. Prado Remy José Fontana Flávio Aguiar Maria Rita Kehl Paulo Capel Narvai Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares Leonardo Avritzer Jean Pierre Chauvin Chico Alencar Andrew Korybko Airton Paschoa Antonino Infranca Atilio A. Boron Lorenzo Vitral Ricardo Antunes Ronald Rocha Daniel Brazil Henri Acselrad João Carlos Loebens José Geraldo Couto Mário Maestri Paulo Sérgio Pinheiro Bernardo Ricupero Milton Pinheiro Celso Favaretto Ronald León Núñez André Singer Elias Jabbour Tales Ab'Sáber Denilson Cordeiro Paulo Fernandes Silveira Lincoln Secco Paulo Martins Valerio Arcary Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr. Érico Andrade Ricardo Abramovay Eduardo Borges Benicio Viero Schmidt Andrés del Río Sergio Amadeu da Silveira Daniel Afonso da Silva Ladislau Dowbor Luiz Roberto Alves Sandra Bitencourt Bruno Machado André Márcio Neves Soares Juarez Guimarães José Dirceu Fernão Pessoa Ramos José Costa Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Jorge Luiz Souto Maior Eliziário Andrade Mariarosaria Fabris Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Roberts Luiz Werneck Vianna Tarso Genro Ari Marcelo Solon Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Renato Martins Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fábio Konder Comparato Marilia Pacheco Fiorillo Francisco Fernandes Ladeira Marilena Chauí Vanderlei Tenório João Sette Whitaker Ferreira Eleonora Albano Luiz Bernardo Pericás João Paulo Ayub Fonseca Rodrigo de Faria Leda Maria Paulani Michael Löwy Jean Marc Von Der Weid Rubens Pinto Lyra Gabriel Cohn Vladimir Safatle Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Fabbrini Eugênio Trivinho Claudio Katz Leonardo Sacramento Manchetômetro Salem Nasser José Micaelson Lacerda Morais Daniel Costa Ronaldo Tadeu de Souza Chico Whitaker Slavoj Žižek José Raimundo Trindade Renato Dagnino Ricardo Musse Marcelo Módolo Eugênio Bucci João Carlos Salles José Luís Fiori Marcelo Guimarães Lima Caio Bugiato Henry Burnett Leonardo Boff Everaldo de Oliveira Andrade Anselm Jappe Gilberto Maringoni

NOVAS PUBLICAÇÕES