Estabilidade relativa

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Por VALERIO ARCARY*

Quatro notas sobre o novo momento da conjuntura

1 – Não houve mudança qualitativa na relação social de forças, mas assistimos nas últimas quatro semanas a uma oscilação quantitativa desfavorável na relação política de forças. Trata-se, por enquanto, de uma alteração transitória.

Na estrutura da sociedade, onde as classes em luta têm que medir forças todos os dias, a catástrofe sanitária assume a dimensão de um cataclismo e, pela primeira vez na história, há uma maioria da força produtiva da sociedade fora do mercado de trabalho, a evidência catastrófica da pior recessão da história. Na superestrutura, espaço em que a luta política se concentra nas instituições, seria obtuso não reconhecer que, infelizmente, a estabilidade relativa do governo aumentou em julho.

A questão central é que estamos diante de uma operação política de “naturalização” da pandemia quando, paradoxalmente, ela atinge o seu auge com cem mil mortos e, provavelmente, mais de dez milhões de pessoas contagiadas, uma calamidade humanitária. O governo aposta na apatia, na insensibilidade, na indiferença. Esmagadas pela tragédia na luta pela sobrevivência, massas desesperançadas formam filas noturnas nas portas das agências da Caixa Econômica Federal, enquanto as mortes se concentram entre os desamparados nos bairros populares.

Esta operação política tem responsáveis: a oposição liberal burguesa no Congresso, os governos estaduais, como o de Dória, e a mídia comercial banalizam o massacre. A perda da capacidade de empatia é um síntoma do grau de embrutecimento da classe dominante. Assistimos a uma crescente flexibilização das regras de isolamento social, que culminam com o anúncio da abertura das escolas por todo o país.

Mais de mil mortos todos os dias ao longo de dois meses, um desemprego em torno, provavelmente, de vinte milhões de pessoas, e uma escalada nos incêndios na Amazônia que horroriza o mundo e, por enquanto, não há indicação de que o desgaste de Bolsonaro tenha dado um salto. Mas a hipótese mais provável é que esta dramática lentidão da experiência seja apenas uma tendência temporária.

2 – Aumentou a relativa estabilidade do governo nas últimas semanas.

Acossado pelos inquéritos no STF, que criminalizam a sua rede de fakenews, e escancaram as relações do gabinete de seu filho senador com as milícias cariocas, e no TSE, que investiga as ilegalidades da campanha eleitoral, Bolsonaro suspendeu a avalanche de provocações, e se recolheu depois da prisão de Queiroz e do contágio do vírus. Mas não há razões para duvidar que se trata somente de um recuo efêmero.

O governo ganhou tempo com a operação de blindagem contra o perigo de impeachment, liderada pelos generais do Palácio, conseguiu a consolidação de um pacto do Centrão, um frankenstein político de partidos de aluguel, liderado por Artur Lira, com o Planalto. A ampliação de mais duas parcelas do auxílio emergencial até agosto, e uma possível extensão até dezembro reduziram os danos de um empobrecimento explosivo; as viagens pelo nordeste para fazer uma foto de vaqueiro em cima de uma égua, e as negociações para uma votação parcelada da reforma tributária avançaram, ainda que haja resistência á volta da CPMF.

Porém, o fracasso de Lira na votação do Fundeb, e a reação de Maia, com a formação de um bloco com o MDB e, possivelmente, o PSDB, sinalizam a formação de um terceiro campo parlamentar, supostamente, independente, mas que deixou claro que não será oposição. Maia esclareceu que é contra o impeachment, porque não considera que Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade. Portanto, negociará a pauta e a votação, projeto por projeto, o que nas atuais circunstâncias, favorece a governabilidade. Há um imenso receio na classe dominante que uma crise social explosiva possa estar se desenhando no horizonte com o fim do auxílio emergencial, se não houver dinâmica para uma recuperação econômica.

Entretanto, três governadores eleitos durante a onda bolsonarista, Wilson Witzel no Rio de Janeiro, Carlos Moisés de Santa Catarina e Wilson Lima da Amazônia já estão enfrentando complicados processos de impeachment. A oposição burguesa decidiu moderar o tom, e suspender a hostilização do bolsonarismo às vésperas do início das campanhas eleitorais municipais. Não podem prescindir dos votos da extrema-direita para aspirar ter candidatos viáveis em segundo turno.

3 – Antes das eleições de novembro a segunda turma do STF deverá decidir o destino de Lula.

O destino de Lula é uma das chaves semiocultas de compreensão da conjuntura brasileira. A criminalização de Lula foi, evidentemente, decisiva em 2018. Ninguém pode hoje prever se Bolsonaro não será derrubado antes de 2022. Mas Lula é a personificação do Fora Bolsonaro. Se as sentenças vierem a ser anuladas, Lula poderia concorrer em 2022, e disputaria, provavelmente, em condições muito competitivas, um lugar no segundo turno contra o próprio Bolsonaro, Sergio Moro e um candidato da oposição liberal, Dória, Huck ou outro qualquer.

Gilmar Mendes sinalizou que encaminharia para votação em uma primeira sessão plenária. Celso de Melo terá aposentadoria compulsória até 31 de outubro, e é improvável que não queira participar. O pedido de um Habeas Corpus para Lula significa que terão que decidir sobre a suspeição de parcialidade de Sergio Moro.

Mas a crise da Lava Jato muda de patamar com a ofensiva do Procurador Geral da República Aras contra os procuradores de Curitiba. Aras denunciou, bombasticamente, que a Lava Jato tem dados de 38 mil pessoas, armazenando um volume de dados maior que todo o sistema do Ministério Público Federal.

Há uma fratura aberta entre os representantes da classe dominante sobre o futuro da Lava Jato. Não são mais somente os setores atingidos pela explosão, ainda que parcial, do sistema de partidos da Nova República, DEM, MDB e PSDB, mas o próprio bolsonarismo que se deslocam depois da ruptura de Sergio Moro com o governo. Mas ao mesmo tempo, prevalece uma posição, praticamente, unânime, de manutenção de uma interdição de Lula.

4 – Há, entretanto, alguns sinais positivos.

Mesmo considerando as condições de quarentena impostas pela pandemia, começou uma reação popular com a mobilização nacional pioneira dos trabalhadores de aplicativos, e de setores, sindicalmente, mais organizados: metalúrgicos da Renault, metroviários, e Correios.

Um manifesto com a assinatura de mais de 150 bispos e o apoio de mais de 2000 padres contra Bolsonaro revelaram que há uma fração da Igreja Católica disposta a desafiar, publicamente, o governo Bolsonaro. Mas os dois fatores objetivos chaves mais de fundo que continuam pressionando a situação são a evolução da pandemia e da recessão econômica.

Não sabemos quando virá a ocorrer uma onda de mobilizações de massas contra o governo. Não há “sismógrafo” social que permita fazer prognósticos, não por ausência de causas, mas porque elas são muitas. Mas, em algum momento, ela virá.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história(Xamã).

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